Meu discípulo numa estrada ao anoitecer

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Deveria ser apenas mais uma missão simples, do tipo que Shen Qingqiu e seu precioso discípulo realizavam ao menos duas vezes no mês. Um espírito demoníaco aterrorizando uma família. Era aquele clichê, aquele instrumento de plot básico do qual Shen Qingqiu se aproveitava para A) angariar pontos de experiência para ele e seu discípulo e B) entreter tal discípulo. Que os céus tivessem piedade de quem tentasse manter aquele jovem confinado numa montanha treinando apenas segundo manuais.

Ele era, sim, estudioso e dedicado. Inventivo, também, talvez até demais. Ele leria todos os livros e aprenderia todas as notas da qin, mas montaria engrenagens e bateria seus pés no chão falando sobre seu desejo de ajudar "as pessoas comuns". Qingqiu não ousaria tirar desse pequeno protagonista a perspectiva de ser um grande lorde imortal – afinal, sua história era sobre ascensão e glória, embora fosse tão vaga e clichê que Shen não se recordasse os detalhes específicos de alguns pontos. Ele havia lido dezenas – centenas – delas, antes de transmigrar para aquela em específico, lembrava-se apenas de ficar com a impressão de que faltava um enredo real, talvez um antagonista ou interesse amoroso que fizesse o belo protagonista parecer humano, mostrar-se frágil em qualquer aspecto. Mas ele era o perfeito imortal desde a página 1, e provavelmente desde sua concepção. Perfeito imortal esse que agora caminhava até Shen Qingqiu com expressão séria, um pequeno vinco entre as sobrancelhas retas.

- Shizun, o estalageiro disse que dois cultivadores estiveram aqui há pouco e expulsaram o espírito demoníaco. Devemos procurá-los? Não parecem ser conhecidos ou membros da Montanha Cang Qiong.

Foi a vez de Shen franzir um pouco as sobrancelhas e mover suavemente o leque enquanto pensava.

- Sim, deveríamos ao menos saber quem são esses cultivadores errantes e quais suas intenções ao perambularem pelas terras protegidas pela nossa seita.

E eles partiram na direção indicada pelo estalageiro com a intenção de encontrar a dupla e, com sorte, partir para seu lar ainda naquele dia.

Ao saírem da pequena vila, apareceu diante dos olhos de Shen uma janela verde, visível apenas para ele. Era aquele Sistema, uma entidade misteriosa que o acompanhava desde sua transmigração, vinda sabe-se lá de onde e cheia de tarefas para ele realizar, como alguém jogando The Sims diretamente no seu cérebro:

[Atualização detectada. Baixar dados?]

Ele apertou [sim], pensando que era como aqueles updates horríveis do Windows ou do iOS e que pelo menos tinha surgido quando não havia perigo iminente ou em hora inapropriada. Quem sabe a atualização não viesse com Paciência Spider, né?

Era apenas mais uma missão simples, mas Shen Qingqiu falhou em lembrar de todas as histórias de transmigração que havia lido em sua vida anterior: o enredo nunca sai como o original.

*

Eles foram a pé pela estradinha para o próximo vilarejo, seguindo o pouco de informação que tinham ouvido das pessoas da cidade. Era uma tarde agradável, mas que logo se transformou num lusco-fusco frio, os insetos saindo da toca e a sinfonia de pássaros ao redor.

Shen estava se perguntando se havia sido um erro não ter buscado a carruagem, já que agora não conseguiriam voltar para a estalagem a tempo e a perspectiva era dormir no meio do mato. Não seria a primeira vez, mas ele odiava. Seu discípulo não falaria nada, acenderia o fogo e meditaria toda a noite até o alvorecer, como o perfeito jovem mestre que era. Shen Qingqiu estava quase sugerindo voltar e deixar os malditos cultivadores errantes para lá, quando ouviram risadas.

O Sistema deu sinal de vida:

[Nova fonte de energia detectada. Atualizar provedor do sistema?]

[Sim], [sim], [sim], que inferno, que hora para aparecer! Shen não refletiu realmente sobre aquela mensagem antes de responder.

Mestre e discípulo apertaram o passo um pouco e finalmente encontraram a dupla misteriosa após uma curva na estrada.

- Com licença, mestres cultivadores! – Ele se adiantou, a parte inferior do rosto oculta pelo leque delicado.

As duas figuras se viraram ao mesmo tempo, ambos vestidos em tons escuros.

O mais alto tinha um sorriso largo ladeado por covinhas fundas, a pele do rosto brilhando dourada no sol poente. Seu cabelo balançou no rabo de cavalo amarrado com a fita azul e seus olhos brilharam púrpura por uma fração de segundo. Tinha nariz com uma suave curva, sobrancelhas grossas e ombros largos, num conjunto belo e muito masculino, embora inegavelmente selvagem. Suas roupas eram de modelagem prática, mas era visível até de longe que o tecido tinha qualidade. Havia um discreto bordado dourado nas mangas e barras empoeiradas, o que de imediato fez Shen entender que aquele não era um mero cultivador errante qualquer.

O mais baixo parecia ser um adolescente, com grandes olhos pretos e rosto emoldurado por cachos cheios. Ele sorriu docemente com lábios rosados, os olhinhos cintilando com curiosidade e amabilidade.

Shen sentiu uma flecha metafórica atravessando seu peito.

Ah, um jovem tão inocente e puro! Uma lótus branca e resplandecente florescendo no meio de uma estrada esquecida pelos deuses, que visão digna de um livro! Mas andando com um homem de aparência tão mundana...

- Olá, caros colegas cultivadores! – O homem disse, fazendo uma reverência desleixada. Ao lado dele, o jovem juntou as mãos e se curvou perfeitamente. – O que dois altivos imortais fazem nessas terras, tão distantes das cidades maiores e das rotas de comércio?

- Eu que pergunto, caro mestre. Nós somos da seita da Montanha Cang Qiong, fomos enviados à Vila da Pata do Coelho para lidar com um demônio em uma estalagem, porém soubemos que dois cultivadores cuidaram da situação antes de chegarmos. Teriam sido os senhores? E, se sim, poderiam nos dar a gentileza de saber seus nomes?

O homem fez uma nova reverência, dessa vez um pouco menos desleixada:

- Se esse é o caso, pedimos perdão aos mestres. Não nos atentamos que havíamos entrado no território da Montanha Cang Qiong, pois estamos vagando em treinamento de campo há um bom tempo e não era nossa intenção desrespeitar ou ofender nossos irmãos cultivadores. Meu nome é Mo Weiyu, sou ancião do Pico Sisheng, e esse jovem é meu discípulo, Luo Binghe.

Luo Binghe esbanjou sua reverência perfeita, fazendo uma para cada membro da Montanha Cang Qiong. Shen sentiu que seu nariz iria sangrar ante um jovem tão adorável.

Ele fechou seu leque, por sua vez saudando os dois homens de roupas escuras.

-Sou Shen Qingqiu, mestre do Pico Qing Jing, e este é meu discípulo líder, ChuWanning. – Chu Wanning demonstrou todos os seus bons modos com duas reverênciasbem feitas. – Não estamos ofendidos, Ancião Mo Weiyu, apenas não esperávamosencontrar mestres do Pico Sisheng tão longe de sua casa e nos perguntávamosquem poderia estar rondando pelos limites de nosso território. Mas, como é esseo caso, ficamos com a consciência em paz e agradecemos. Agora poderemosretornar ao nosso lar para dar seguimento às nossas tarefas. Tenham uma boanoite e passem bem, mestres de Sisheng.


*****

Esta autora tem algo a dizer:

Eu quero aprender com Meatbun-laoshi a fazer mini teatros tão bons! Por favor, deem uma chance a essa assalariada cansada.

Até a próxima semana!

Sobre gatos brancos e seus cães demoníacos | 2ha x SVSSSOnde histórias criam vida. Descubra agora