Chuva. Chuva em uma cidade sob o véu da noite. Mais alto que a chuva são os passos rápidos das sapatilhas em plenas poças no asfalto. A mulher de roupas sociais e penteado de salão ofega enquanto tenta equilibrar o guarda-chuva, despreocupada com tudo o que é caro em seu visual. Ela corre na contramão do fluxo dos carros como se fosse pela sua própria vida, mas não era a dela que ela queria salvar. Ela chega à ponte. Vazia. Por um instante teme. Quando se aproxima mais percebe a silhueta agachada atrás do muro da ponte que dá para a estrada. A única alma que importa. Alívio, mesmo assim há pressa.
A mulher para e toma um ar a alguns metros do rapaz cabisbaixo que alí sentara. A chuva o impediu de ouvi-la chegando. Ela vai até ele agora devagar, quando o homem sentiu a chuva se aliviar sobre sua cabeça foi que percebeu-a ali compartilhando o guarda-chuva. Levantou um pouco a cabeça mas não quis olhar pra ela. Ele usava roupas casuais simples e confortáveis de moletom e algodão. Ela se sentou ao lado dele e percebeu o celular em suas mãos, respingado, mas com a tela estática na mensagem que trocaram agora pouco. Então a moça indaga.
- Você me deu um susto! - Sem resposta - Vamos pra casa, anda... - A mulher tentou puxá-lo caridosamente, mas ele não queria se mover por enquanto.
- Sabe, eu descobri uma coisa... - Ela parou para ouvi-lo mesmo num tempo ruim, como se fosse experiente nessa situação - Esse medo todo que eu sempre tive, essa agonia inexplicável que me consome dia após dia, que me faz lutar pra respirar, que atrapalha tudo o que eu tento fazer... Sempre pensei que eu tivesse medo da vida, porque a vida é exaustiva, é difícil, e mais difícil ainda ver como parece fácil pras outras pessoas... E dessa vez que eu cansei de vez, achei mesmo que tudo se resolveria e ficaria mais leve... quando não vivesse mais... - Os olhos da mulher se encharcaram e suas lágrimas misturaram com a chuva, mas não quis dizer nada enquanto ele não terminasse, ele estava sensível no momento, conforme continuou ficou difícil falar - ... mas lá do alto, me bateu o desespero como sempre, intenso como sempre... eu só consegui imaginar quanta dor eu sentiria por cada osso que eu quebrasse na queda antes de morrer de vez... Foi então que eu percebi, que não tenho medo da vida em si... É a dor... A vida... Dói... Mas a morte também dói... - Não conseguiu conter o pranto, suas mãos se fecham apertadas contra seus braços, tremedo - Então o que eu devo fazer?... Como não sentir dor... Se estou cercado?... Se não sou forte pra suportar nem a vida e nem a morte?...
Um breve momento de silêncio que pareceu uma eternidade de reflexão. Ela precisava tomar cuidado com o que diria a seguir e com o que deixaria de dizer também. Ficou boquiaberta por um momento e enquanto ele estava de cabeça baixa, ela olhou para cima, pro céu noturno que chora constantemente diante deles, da cidade apressada que deve estar se organizando para dormir enquanto os dois estão no frio definindo a vida diante do concreto encharcado.
- Então... - Ela começou devagar, como se as gotas de chuva soletrassem para ela - Você não teme a vida e nem a morte, mas teme a dor?... o que você deseja?
- Eu desejo viver... quero dizer, eu percebi que talvez eu tenha vontade de viver... Eu só queria parar com a dor, e viver e morrer sem ela.... Eu não sou forte pra lidar com isso
O homem recebe uma carícia em sua cabeça como se fosse uma recompensa.
- Foi forte pra me chamar... Foi forte pra me esperar chegar...
Desvencilhou-se do carinho dela.
- Ou fui covarde por não conseguir me livrar de vez de tudo isso? - Mais silêncio. A essa altura o guarda-chuva já havia falhado em sua função, ambos estavam ensopados mas ainda continuavam ali como se o mundo não existisse, ele então decidiu remediar suas palavras e olhar para ela finalmente, mas ela estava com olhar fixo no chão - Me desculpa...
Interrompido.
- Eu nunca iria querer que você sumisse, mas eu não posso te obrigar a suportar a dor da vida por mim... Mas se você quer mesmo viver, a gente arruma um jeito de ficar bem... sem dor... O que acha? - Os olhares se cruzam submersos em águas incansáveis, o lampejo de coragem em um soldado desolado da guerra se abate sobre o rosto do rapaz, sua boca se alarga, seu queixo se franze, e sua resposta é um tímido aceno com a cabeça. Ambos levantam e suspiram juntos - Vem... Vamos pra casa.
Passam a caminhar devagar juntos, ainda com o guarda-chuva como se fizesse toda a diferença. A ponte vai ficando para trás, os carros também... e a chuva.
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Entre Rir & Chorar
NouvellesColetânea de textos que crio aí porque é mais barato do que pagar psicólogo... [☆AVISO: Não indicado para pessoas SENSÍVEIS, com ANSIEDADE e/ou DEPRESSÃO]