Um presente. Não tão caro quanto aparentava, e nem tão comum que se visse pelos lares. Meu amor sabe o que eu gosto, e resolveu me presentear com uma escultura. Um de muitos semelhantes daquele ateliê. Tornou-se meu totem, meu guardião, meu pet. Tornou-se vivo aos meus olhos.
Uma brincadeira que passou a ser um hábito, e então a certeza de que o totem tinha sentimentos, frio, fome. Me preocupei em limpá-lo para que não se sentisse mal. Me questionei qual seria seu canto favorito da casa, se queria mais de minha atenção, interação, se almejava expressar-se. Gesso se expressar? Ridículo de minha parte, mas sim, tive pena dele se sentir menosprezado. E se sente? E se não?
Já era tempo de pintá-lo? Nomeá-lo? Qual seria a cor que ele desejava? E se quisesse se manter casto? E se não?
Um dia, impulso. Acidente nascido da raiva momentânea e injustificada. Ricocheteou o teimoso celular do chão ao coração do pet. Apenas um buraco qualquer. Afinal, assim descobri que ele era oco. Me fez acordar de tal devaneio? Muito pelo contrário. Implorei por perdão. Lamentei-me e punia-me a cada vez que olhava aquele buraco que nunca soube consertar. E se estivesse dolorido? E se não?
Minguava-se o ritual, conforme o tempo. Por que me preocupar com a possível existência ou não da alma de meu totem, quando a vida me ordena a viver? Cabeça em outros ares. E se ele pensa? E se não?
Tanto faz, voltei ao trabalho.
O tempo é cruel com as criaturas vivas, dizem. E com as inanimadas também, aparentemente. Uma rachadura ali, outra aqui, um descuido ao movê-lo e suas patas se separam do corpo, mesmo que ainda se mantenha estável. Uma ação da umidade constante e sua orelha se parte.
Ignorado, todo esse tempo ignorado. Suas rachaduras são como minhas olheiras, os pedaços que faltam de ti, faltam em meu ânimo. Estamos ficando velhos. E os truques de conserto da internet estão falhando, mas ainda está firme, meu guardião.
Até que um dia, e neste dia tudo mudou. O focinho caiu espontaneamente.
Entendi aí. Olhei-o em luto. Aquele minuto de silêncio não só para respeitá-lo mas para cair a ficha. Morto estava desde o dia em que perfurei seu coração.
Era um cadáver que eu brincava de vivo todo esse tempo. Era um cadáver que eu insistia em manter em rotina. Um cadáver que não deixei descansar, profanei e assisti apodrecer. Um cadáver cuja carne se dissolve e desmorona. Um cadáver. Não estava vivo, nunca esteve vivo, apenas um objeto inanimado... Ou não?
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Entre Rir & Chorar
KurzgeschichtenColetânea de textos que crio aí porque é mais barato do que pagar psicólogo... [☆AVISO: Não indicado para pessoas SENSÍVEIS, com ANSIEDADE e/ou DEPRESSÃO]