Átila:
Não me importo em pensar no sabor gorduroso e molenga do mingau, porque a sensação quente do estomago sendo preenchido a cada colherada era suficientemente boa. Me bastava apenas, prender a respiração e cavar o mais rápido possível a tigela, ignorando os pedaços duros ou emborrachados na língua.
O som dos metais raspando um no outro, e então batendo nos meus dentes, era minha única companhia mais recente, porque acabei me acostumando com o assovio do ar passando pelo meu nariz deslocado. Uma vez ou outra as paredes estalam quando dilatam, rompendo o silencio mortuário do subsolo, movimentando a poeira e as teias de aranha que piscam por um momento e depois desaparecem, imóveis sobre os finos feixes de luz que vem dos buracos.
É fácil desdenhar dos hematomas do meu rosto, porque eu não posso vê-los, mas eles se mechem enquanto mastigo. Os dentes faltando, o lábio cicatrizado, o olho roxo, são insignificantes comparados a solidão, porque ela sim, já está começando a me assustar. Jasão desapareceu, junto com as minhas pocas coisas. Talvez nem esteja mais vivo. Por que eles poupariam um animal inútil para trabalho, se não hesitam em matar qualquer um que seja ?
Sinto falta de esbarrar em seus pelos quentes entre as ferramentas e latas pontudas da bolsa. Me aliviava todas as vezes, mesmo quando ele mordia meus dedos ou os prendia entre as garras, lixadas naturalmente no chão. Jasão me lembrava de casa, me fazia ter certeza de onde eu tinha vindo e quem eu estava protegendo, mas agora, eu não tenho mais certeza de quase nada.
A gaveta da porta volta aparecer, soltando o mesmo rangido agudo das outras vezes. Nenhuma voz grita para mim, detrás da entrada, que é apenas uma retângulo cortado na parede cinza, quase como uma ilusão. Mas está já foi a quarta tigela, desde que acordei esparramando contra o chão semi-limpo com um fio de sangue aguado saindo da minha boca e a pele grudada de suor entre os relevos do piso.
O espaço entre o abrir e fechar da gaveta são sempre os mesmo, não importando se comi ou terminei o mingau, só preciso obedecer e colocar o circulo de lata no buraco. Se não, as paredes vão esquentar de novo, soltando bafos ferventes de frestas invisíveis no meu corpo até que eu entendesse. Uma vez foi mais que suficiente.
São só três passos da cama baixa e chumbada, até a linha da porta e mais dois para a esquerda até a parede granulada, quando os passos desaparecem e tenho que ficar aqui sozinho, nesse buraco, contando as barrinhas esculpidas em todos os lugares.
-Os malditos não me deram nem mesmo uma grade para gritar! -rosno entre os dentes doloridos e chuto a parede até soltar pó de cimento. O choque vibra toda meu corpo, fazendo as coisas parecerem mais reais do que a única luz roxa e fraca do teto, que faz tudo parecer borrado e manchado. Sombras oscilantes parecem subir pelos cantos mal iluminados da cela, escondendo os escritos melancólicos e raivosos de outros fantasmas.
'Você perdeu Atila. Acabou!', me pego pensando de novo. Os pensamentos mais aterradores são os mais frequentes. Eles vêm gritando e arranhando meu cérebro e todos os nervos, batendo nas paredes e depois desaparecem entre os rugidos dos canos.
-Eu perdi. -aceitação. Fazem os devaneios desaparecerem mais depressa.
O tornozelo vacila quando o coloco de volta no chão. Bobeando dor até que eu me apoie quase completamente no outro pé. Esse é o preço que a presa paga por perder o controle quando sente o cheio podre de seu predador, deixando que o medo a transforme em uma criatura burra o suficiente para correr em direção a mandíbula mortal, apenas para acabar com a dor que o medo causa.
Mas eu não sou uma presa burra. E isso é uma maldição.
-Você vai continuar falando sozinho, igual um idiota ?! -a voz sai de todos os lados da caixa de cigarros. É impossível não pilar de surpresa.
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Áve Cesar.
Science FictionSinopse: A Terra definhou. Não era e nunca mais será o Planeta Azul de antes, e quando se tornou insuficiente para a sobrecarga populacional, a humanidade precisou fugir, recomeçar, sobreviver e conquistar o medo e o desconhecido Mas isso foi a...