Capítulo 30 :

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ARTHUR

Bella: Mais chocolate!

Arthur: Não joga! — Tarde demais.


Isabella, sentada na ilha e com a suavidade de um elefante, joga o restante das gotas de chocolate, fazendo a massa na assadeira salpicar nos dois. Ela gargalha logo em seguida pela melequeira que causou na cozinha, que já estava bagunçada, e nas nossas roupas. Nunca vi tanta farinha de trigo espalhada em toda a minha vida, tudo porque eu, justo eu, que sempre comi em restaurantes e fast-food, fui obrigado por essa carinha fofa que me faz de marionete a fazer um bolo de chocolate. Ela estava querendo muito comer bolo, e antes que ela chorasse pela demora da Carla, decidi me aventurar na cozinha. Cacei uma receita na internet, para tentarmos fazer sua vontade, e Isabella assumiu o papel de louro José, matraqueando com sua voz fina sem parar, imitando o que a mulher do tutorial falava em tom de brincadeira.


Decidi me aventurar nessa tarefa junto com ela, para tentar fugir dos meus próprios pensamentos, ocupar a cabeça um pouco. Desde que encontrei aquela mulher no semáforo, me sinto desconectado da minha própria realidade, afogado em lembranças incômodas. Como consequência, minha relação com a Carla está se tornando cada vez mais oscilante. Ela se afastou e se fechou completamente, criou um muro entre nós. É nítido seu incômodo com minha presença. Sei que vacilei por estar mais distante e frio, de fato a evitando para poder tentar organizar minha cabeça de uma vez após impacto. Estou tentando fazer com que isso não me afete tanto, porque tudo aquilo precisa continuar insignificante.


Esse assunto já me fez mal demais para reviver justamente nessa etapa da minha vida, com tudo já sólido. Se foram trinta anos, não quero que isso bagunce ainda mais minha rotina, azedando o clima com a Carla. Não quero que isso se torne um empecilho a mais agora que estamos construindo uma relação com Isabella. Não posso deixar mais alguma coisa atingir a menina, que é muito esperta e logo perceberá que não estamos no nosso melhor momento. E está me incomodando o clima inóspito, sendo que precisamos conviver bem pela nossa filha. Preciso voltar a ter controle da porra toda, ter pulso firme e parar com essa situação, porque as coisas só estão virando uma maldita bola de neve de problemas, e não quero trazer isso para dentro de casa. Prefiro que isso não torne um empecilho a mais para construímos uma relação por Isabella.


Arthur: Falta colocar no forno para ficar bom — explico, melecando a ponta do seu nariz com a massa de bolo, enquanto minha filha come a massa crua, toda lambuzada.


Nesse momento, vemos a maçaneta sendo girada, desviando nossa atenção. Carla surge com feições cansadas, talvez até preocupada. Eu a vejo se livrando dos saltos, enquanto vem na nossa direção. É nítido no semblante uma certa tristeza. Ela novamente mal me encara, não sei se é por causa da nossa relação esquisita ou se tem alguma outra coisa acontecendo. Carla definitivamente não me parece muito bem.


Carla: O que estão aprontando aí, sujos desse jeito?! — Ela questiona com curiosidade, percebendo a bagunça.


Ela beija a testa da filha, afagando os cabelos soltos. Isabella arrancou o penteado assim que chegou em casa, e eu não soube amarrar seus cabelos sem que escorregassem ou ela chiasse que estava puxando forte.


Bella: O meu papai está fazendo bolo para mim.  — Conta com euforia, rindo.


Eu paro o que estou fazendo, olhando surpreso para Carla, que também demonstra a mesma reação. Ela está paralisada e com os olhos arregalados, sem poder acreditar no que a nossa filha falou.


Arthur: O seu o quê? — pergunto, já sentindo os olhos arderem.

Isabella ainda não havia me chamado de pai, sempre se referia de outra forma. Eu também nunca cobrei que fizesse, deixei que me chamasse quando achasse melhor, preferi que se acostumasse comigo primeiro. E, porra, escutar isso me traz uma sensação que eu jamais pensei que teria em toda minha vida. Eu já vivi coisas boas para caralho, mas nada sequer se compara com algo tão simples e tão emocionante. Desde que essa menina apareceu de paraquedas bagunçando toda minha vida, arrebatando meu coração de imediato, meu lado sensível aflorou completamente.


Bella: Você, papai — explica com naturalidade, sem se dar conta.


Eu sorrio largo, sentindo os olhos marejados por escutá-la repetir. Sem me conter de euforia, deixo a assadeira de lado e pego a pestinha adorável no colo, jogando para cima e a fazendo gargalhar alto. Encho meu peito de com suas risadas e beijo seu rosto repetidas vezes, querendo mergulhar cada vez mais fundo nesse riso coletivo bem no meio da cozinha bagunçada. Ser chamado de pai é bom para caramba! Estou adorando toda essa novidade, muito mais que imaginei!

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Velando o sono da minha pequenininha, que está abraçada à sua princesa de pelúcia e parece tão indefesa. Sinto os olhos marejaram novamente, não deixando de imaginar quando ela estiver maior e quiser ir embora para longe de mim. Penso até mesmo quando aparecer um safado que quiser fazer isso, me tirar minha pestinha. Só posso esperar que ela siga cabendo em meus braços por muitos anos. Isabella está se tornando a cada dia uma criança mais linda e inteligente, e eu já estou até mesmo tirando foto de arco-íris no céu, para mostrar à minha filha quando voltar do colégio. Como sei que ela gosta, fiquei todo babão. Jamais pensei que ser pai me tornaria um homem completamente diferente. Essa criança acaba totalmente com minha postura!


Espero de verdade que minha filha não seja como eu na adolescência, que seja caseira e quietinha. Infelizmente sei que a fruta não cai longe do pé, e bonita do jeito que me saiu e desenrolada para se comunicar como a mãe, não faltarão pretendentes. Até mesmo Zé, o menino que vi crescer e tenho tanto apreço, já entrou na fila, me desafiando desde já. Vou ter de dar conta de expulsar todos eles e protegê-la. Serei o pai chato com muito orgulho!



Carla: Qual é o motivo de estar chorando agora, Arthur? — Carla questiona, como se não estivesse acreditando. Ela não entende meus dilemas!


Arthur: Carla, e se ela arranjar um canalha? — Miro seus olhos, a vendo encostada de braços cruzados no batente da porta. Ela prende os lábios, pondo os dedos no osso do nariz, seu risinho baixo vem logo em seguida. Noto que vem puro cinismo pra cima de mim.



Carla: Igual a mim? Bom, acho que ela se sairá melhor do que eu, terá seu DNA e saberá se defender muito bem, terá um bom professor. Vem, deixa nossa filha dormir!


A infeliz me provoca, mexe com minhas certezas. Carla está se divertindo com algo que claramente me preocupa. Sei que para ela isso soa como o maldito gosto doce do "estou adorando tudo isso!"

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