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A rua estava tão movimentada quanto nos outros dias

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A rua estava tão movimentada quanto nos outros dias. Mas, diferente do que fiz na primeira vez que estive lá, agora eu tinha um rumo certo. Caminhei pela rua principal, abarrotada de gente e com a luz fraca emanando pelas calçadas sujas. 

Avistei a taberna ao final da rua, dando a volta até a entrada que Lia me ensinou.

- Bem antes do horário - Lia disse quando entrei pelos fundos.

- Estava ansiosa por chegar logo - Respondi, deixando o casaco pendurado.

Ela piscou.

- Nada de perfume caro hoje, hein? Muito bem. Está cada dia melhor.

Sorri, me sentindo orgulhosa. Coloquei o avental, enquanto ela organizava as bandejas.

- Quando achar quem procura, ainda virá nos ajudar?

- Claro que sim - respondi.

- Fico aliviada, você aprendeu rápido. Já estava quase desejando que falhasse em encontrar o tal traidor.

- Não deseje isso - eu disse, suspirando.

Essa era a quinta noite que eu estava ali com eles - seis, se contasse a minha primeira exploração desastrosa. E nem sinal do homem. Todavia, estava sendo tudo muito proveitoso, não apenas porque com o cansaço, eu já conseguia dormir mais de cinco horas por dia. Mas, principalmente, porque eu finalmente começava a entender como as coisas funcionavam ali.

A vila tinha as suas regras próprias, totalmente a parte do que tínhamos em meio à nobreza. Uma das mais importantes era pagar o que devia ou ser morto. Isso era essencial para manter o negócio funcionando. E, o mais interessante, o pagamento nem sempre era dinheiro. Favores, objetos, trocas, valia tudo, desde que o saldo para pagar a dívida fosse em comum acordo. Descobri isso quando um homem ofereceu uma galinha com Harold, em troca de saldar a dívida da noite. Ele depenava a ave na cozinha, enquanto me explicava.

- Eu preciso disso para servir alguns pratos - ele comentava.

- Mas com o dinheiro, não poderia comprar uma?

- Não hoje a noite. É muito mais prático que eu aceite logo esta aqui - ele disse.

Às vezes, um jovem oferecia-se para ajudar com a louça suja, e a dívida estava quite. E, se a pessoa não quisesse pagar, não chamávamos a guarda real. Na verdade, descobri que eles sequer vinham nessa parte da vila, para meu horror. Não só porque o submundo tinha um jeito próprio de lidar com quem não pagasse as dívidas, mas porque eles simplesmente não se davam ao trabalho, mesmo havendo, segundo Lia, guardas do rei pagos para patrulharem ali. Na maioria das vezes, eles posavam nos bordéis ou sequer apareciam por ali. Me perguntei o que Montclair diria sobre isso. Será que ele sabia? Não havia um jeito de perguntar isso diretamente ao homem, mas era preciso que, se ele não soubesse, viesse a saber de alguma forma.

Os homens do submundo, todavia, sempre estavam por perto. Pagavam à eles, e eles resolviam os problemas. Não sabia exatamente diferenciar quem eles eram ainda, mas vi um deles um dia, quando tivemos que dar um jeito em um caloteiro. Ele entrou, sem grandes alvoroços, e carregou o homem até a porta. Todos encaravam em silêncio. Pensei que ele poderia ser o assassino do rei, mas era um homem completamente diferente do meu sonho. Este tinha os cabelos negros até o pescoço, uma cicatriz cortando metade da face e vestes comuns, apenas um punhal prateado em sua cintura pendendo ameaçadoramente.

- Eu vou pagar, não me leve à ele! - Ele gritava.

- Quem é ele? - Sussurrei ara Lia.

- Ah, é quem dá uma surra nesses caloteiros.

- Vão mandar surrá-lo?

- Nunca chega à isto, observe - ela disse, sem tirar os olhos dos copos que organizava na bandeja. 

- Eu vou pagar, espere! - Ele berrou, tirando as botas do pé e estendendo para Harold. 

Encarei, boquiaberta. 

- Vão aceitar? 

Harold tomou as botas para si.

- Elas fedem, mas é melhor do que nada. Na próxima, não beba sem ter dinheiro para pagar!- Ele berrou, enquanto o homem corria dali. 

Harold jogou uma moeda ao homem do submundo, que saiu sem dizer uma palavra. E foi esse o meu primeiro contato com aquela parte sombria o reino, que pairava nas bordas da justiça com as próprias mãos, da negligência e da maldade. Ainda não havia escolhido onde encaixá-los, e duvidava que eles tivessem também.

- Espero que hoje não apareça nenhum caloteiro - disse à Lia, enquanto servíamos uma das mesas. 

- Ah, hoje Ian vem, quero muito que conheça ele! - Ela disse, animada.

Não parava de falar do filho único, orgulho da família, que mesmo tão jovem, era dono da melhor estalagem da vila. 

- Finalmente o conhecerei - eu disse, ao que a outra sorriu, afetuosa.

Retribui o sorriso, um calor se apoderando de meu coração. Lia tinha esse estranho efeito sobre as pessoas, um acalento irradiando, e com o passar dos dias, entendi que esse era o motivo de ela ter se proposto a me ajudar. Ela não queria me ver encrencada, e por isso, preferia me ter sob seu olhar do que andando por aí se rumo. 

- É um bom rapaz, trabalha tanto! Mas sempre que pode, vem nos ajudar, ah, falando nele! 

Virei para a porta, para onde ela olhava, e estaquei.

Ian encontrou os olhos da mãe, acenando enquanto atravessava o salão.

- Ah, estava morrendo de saudades - ele disse, abraçando a Lia e a girando.

A mulher, mesmo sendo tão corpulenta, se viu sendo retirada do chão sem dificuldades, já que o filho era mais alto que ela.

- E então - ela disse, quando ele a soltou -, essa é Amy, nossa nova empregada. Temporária, mas quem sabe possamos a convencer a ficar!

Tentei me recuperar do choque, e notei que Ian estendia a mão para mim. Apertei, sem dizer uma palavra.

- Seja bem-vinda, e espero que não se assuste, as coisas aqui podem ser bem caóticas - ele disse, sorrindo para mim.

Assenti.

- Obrigada - eu disse, me surpreendendo de soar com a voz tão firme e sem nenhum indício do desespero que eu estava sentindo.

E diferente do meu sonho, Ian não carregava um olhar assassino, e sim com um ar afetuoso e jovial. 

Eu havia o encontrado, o assassino de Montclair, traidor do reino. 

E filho da pessoa que me acolheu ali.  



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