Capítulo bônus - Relacionamento de Verdade (por SURPRESA).

70K 6.1K 1.8K
                                    

Eu não sou particularmente fã de músicas de abertura de novela. Normalmente é bem nesse momento que eu vou pegar um lanchinho. Mas até que aquela música era bonitinha. Amanhã assistirei a abertura completa.

Jorge parecia extasiado com a apresentação. Seus olhinhos brilhavam da forma que brilharam no nosso casamento. Ele sempre foi um romântico incorrigível e eu sempre fui o extremo oposto. Eu o amava muitíssimo, mas éramos totalmente incompatíveis.

Aprendi a amá-lo com os anos. Quando nos conhecemos, com 15 anos, não percebi que ele estava interessado em mim, porque achei que ele era gay. Como eu disse, ele era muito romântico, muito emotivo, muito educado e muito diferente dos garotos que eu costumava gostar e me envolver.

Na primeira festa da faculdade, ele foi comigo. Ele ia comigo até ao inferno, se eu pedisse. Éramos unha e carne. Porém, nessa festa, acabamos ficando. E eu descobri que ele não era nem um pouquinho gay. No dia seguinte, ao invés de nos distanciarmos e ficarmos constrangidos com os acontecimentos, fizemos o contrário: nem saímos da cama. Quatro anos depois, quando formamos, nos casamos.

Eu era feliz, na medida do possível, na nossa dinâmica familiar. Era sempre muito difícil pagar as contas, mas dávamos nosso jeito. Nossas incompatibilidades continuavam presentes, mas nós a contornávamos com sucesso. Com dois anos de casamento, Amanda nasceu.

Éramos uma família normal, bonita e invejável. Daquelas de comercial de margarina. Porém, o que o comercial de margarina não mostra é que, por de trás daqueles sorrisos, pode existir alguém em frangalhos. E esse alguém era eu. Assim que voltei para o trabalho após o término da licença-maternidade, me senti pressionada. Agora eu tinha uma filha. Um bebê que dependia de mim e que teria seu caráter construído a partir dos meus ensinamentos. Além de uma casa e um marido, eu tinha uma filha. Eu. Que nunca pensei em casar e jurava de pés juntos que nunca teria filhos.

Não me arrependo de Amanda. Como eu poderia? Mesmo com uma mãe totalmente descompensada, ela se tornou uma menina maravilhosa e compreensiva, da qual eu me orgulhava muito – ainda que eu soubesse que o mérito não era meu.

Comecei a beber quando Amanda tinha um ano. Não foi culpa dela, nem de Jorge, nem de ninguém. Eu estava em um período difícil, sentindo a pressão das responsabilidades de ser adulta com só 24 anos. Na mesma época, perdi minha mãe. Para colocar a cereja no bolo, tinha sido transferida de área no trabalho e o passatempo preferido da minha nova chefe era fazer da minha vida um inferno.

Eu interpretava tudo, no início, como um hobbie inocente. Ora, todo mundo fazia happy hour, por que eu não podia? Jorge começou a perceber os sinais de que as coisas estavam degringolando e me dizia para procurar ajuda. "Um psicólogo, talvez, Rosa. Você está deprimida". Eu ouvia tudo, mas não agia. Ao invés de procurar ajuda, eu afogava minhas tristezas no bar mais próximo.

Amanda cresceu sem que eu tenha todas as recordações com detalhes. Estava sempre alcoolizada ou ocupada, procurando álcool. Tenho vergonha dos vídeos de aniversário e meu coração, hoje, se aperta ao ver Amanda, aquela garotinha tão pequena, constrangida por causa de mim.

Quando ela tinha 10 anos, eu e Jorge nos separamos. Quer dizer, nós dois brigamos porque eu tinha aparecido bêbada na reunião de professores da Amanda e eu fiquei tão irritada que saí pela porta de casa e nunca mais voltei.

Os últimos sete anos de alcoolismo, depois dessa data, foram piores que os nove primeiros. Fui morar na casa da minha irmã, mas ela passava tempo demais viajando por causa do trabalho para cercear meu comportamento. Sem Jorge por perto, perdi os limites. Afastei-me mais dele e da Amanda, fui demitida e passei a trocar até refeições por álcool.

Sete anos dos quais mal me lembro. Os efeitos, vejo agora. Acabei com meu dinheiro em bebida. A poupança ficou zerada. Acabei também com meu amor próprio e vomitei toda a minha dignidade. Minha irmã começou a entrar em pânico e ameaçou me expulsar de casa, se eu não melhorasse. Os psicólogos dizem que, além do lapso de memória, já normalmente ocasionado pela bebida, eu devia ter criado algum tipo de bloqueio psicológico, que obscurecia ainda mais minhas lembranças. Mas eu lembrava de algumas coisas...

Acampamento de Inverno para Músicos (nem tão) TalentososOnde histórias criam vida. Descubra agora