XIX

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Alexandre

— A perda de memória eu acredito que seja temporária, mas não dá para afirmar... se tudo correr bem vamos programar a alta dela pra alguns dias, e com sorte tudo terá voltado ao normal.

Escuto a voz dos médicos em minha mente, entrando naquela parte prática, racional, que um dia foi dominante em mim. Por hora eu só conseguia ouvir a voz quebrada, o choro de alguém que não tinha lembrança alguma de quem eu era.

Durante todos esses dias, Dona Helena vem tentando me convencer de que o plano de Deus não tem linhas tortas, que tudo acontece como tem que acontecer. Então se isso é uma especie de castigo por todas as vezes que eu fui um babaca, eu gostaria de saber com quem eu deveria me redimir.

Quando Giovanna disse que não se lembrar de mim, não consegui dizer nada. Sai do leito e fiquei parado no corredor, atônito, até uma enfermeira me abordar para perguntar se eu estava bem.

Não, não estava. Gostaria de saber onde eu poderia apagar a minha memória também.

— E se não tiver voltado?

— Com toda a minha experiência, o que eu mais vi após acidentes como da Giovanna cercava mais a mudança de comportamento, uma dificuldade motora, e leves episódios de esquecimento. Um apagamento total do que parece ser os últimos dois anos, isso eu nunca vi, por isso vou me atentar a prática e esperar que em alguns dias isso volte ao normal.

Desvio o olhar. Acho que tenho vergonha de me encontrar em um estado tão vulnerável, tão sensível. Não porque tem algo de errado nisso, mas porque o médico saberia que quem estava em estado extremo de estresse era eu.

— Vamos observar Giovanna nas próximas horas, Alexandre. Enquanto isso, sugiro que durma.

Quando eu saio da UTI, vejo Yuri me olhando confuso. Ele se aproxima de mim, esperando que eu fale boas notícias. Eu estou tão cansado que não consigo ser delicado.

— Ela perdeu a memória, Yuri. Não me se lembra de mim, aparentemente não se lembra de você, nada dos últimos dois anos.

Eu saio de perto dele sem falar nada. Um evidente canalha com o homem que me serviu de apoio todos esses dias, mas eu também não consigo ficar, não consigo explicar o que nem eu entendo. Ele me chama, me pergunta, mas eu entro no elevador sem olhar para trás.

Em casa, minha mãe me esperava acordada. Ela tem ficado no meu apartamento, me ajudando e arrumando algumas coisas. Ela vê como eu me encontro, transtornado no olhar, abatido no físico, acho que nunca me sentir tão no fundo do poço como agora. Ela se aproxima de mim, mas eu afasto suas mãos.

— O que houve? Giovanna está bem?

— Ela não se lembra de mim. — eu falo sério, eu tento aparentar uma raiva que eu não sinto, tento fazer uma pose.

Mas o olhar de Laura me quebra.

Me quebra e eu me ajoelho na frente de minha mãe como se ela fosse a única santa capaz de me salvar agora. Como se eu fosse merecedor de tal milagre. Mas mãe é mãe, e ela se rebaixa, vem até mim como se fosse simples humana. Segura meu rosto.

— Vai ficar tudo bem, filho. Confia.

E me abraça.

Yuri

Eu chego no hospital naquela manhã com o tablet debaixo do braço e a cabeça determinada em uma missão. Giovanna não era sonsa de não se lembrar de mim, e se não estivesse lembrando, eu faria o serviço.

Tento encara a situação com certo humor porque eu sei que do outro lado Alexandre devia estar um caco. Não atendeu nenhuma das minhas ligações e nem respondeu minhas mensagens.

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