eu te vejo.

29 3 0
                                    

Isso poderia ser uma história de terror.

Está tão escuro que não posso me ver, mal posso me sentir, o colchão abaixo de mim parece uma ilusão vacilante, uma onda instável que vai e vem e faz minha cabeça girar como uma boa dose de vodka que costumava servir para me tirar de situações assim.

Não posso ver as paredes, o teto, as decorações que deveriam me servir de conforto - até mesmo os números luminosos do relógio na mesa de cabeceira se apagaram.

Mas posso ver você. Sua forma se inclinando sobre mim deveria ser uma imagem precária e indefinida considerando as circunstâncias, mas é nítida o bastante para que eu te veja sorrir para mim do mesmo modo irritante e prepotente de sempre como se cantasse vitória antes do tempo, como se zombasse de mim por estar aqui mais uma vez.

Fiquei sozinha por um tempo, um espaço perdido entre paz e apatia, difícil diferenciar - mas chamaram por você, clamaram seu nome até que cartas e espelhos fossem virados e eu sentisse seus braços se enroscando em mim outra vez como uma cobra se enrosca em sua presa.

Você diz baixinho que agora é diferente, usa um tom amigável e tão doce que chega a ser venenoso, é enjoativo e me causa arrepios num alerta inconsciente de perigo - confirmado e fortalecido pelas vozes mais altas que tentam encobrir a sua porque posso não conseguir ver nada além de você, mas escuto, e escuto mais coisas do que gostaria.

É escuro mas não silencioso; existem ruídos, murmúrios, gritos e cantoria, mais sons do que meus ouvidos perturbados são capazes de identificar e meu corpo inteiro coça em urgência para que isso pare.

E você sabe disso. Sabe e me promete que pode fazer parar, usando seus dedos frios e secos como o vento em uma madrugada de inverno para explorar a pele dormente do meu braço, contornando cada veia, cada cicatriz que sempre desejei que não estivesse ali, cada ferida aberta que ainda me machuca - e você faz questão de aprofundar todas em que toca porque nunca as acha fundas o suficiente, eu preciso me machucar mais e só então serei mais forte.

A dor fortalece, e você é minha dor. Sorri sarcástica enquanto me beija na testa, seus cabelos se enroscando com os meus numa mistura que acaba se tornando uma coisa só - porque no fim é assim, é sempre uma coisa só.

Não é esforço algum seus membros se enrolarem nos meus e fundirem cada osso, articulação, músculos e órgãos como se fossem naturalmente unidos, como se eu não lutasse para te arrancar de mim todas as vezes como quem luta para se livrar de um parasita insistente - a diferença é que não existe remédio contra isso, e talvez eu até goste disso, talvez eu goste da situação toda, de como eu posso toda vez me gabar por ter conseguido te vencer.

É uma porcaria de joguinho de gato e rato do qual não consigo sair porque no fim das contas eu não quero, eu sempre quebro todos os espelhos apenas para consertá-los e ter a chance de te ver novamente.

Porque eu te chamei. Eu clamei seu nome e eu virei as malditas cartas que te trouxeram até aqui.

Eu queria sentir o gosto do caos mais uma vez, queria ter a sensação de que posso fazer diferente, queria ter a fagulha de um pensamento de que perder o controle pode ser a melhor forma de controlar tudo - e você ri, ri porque sempre soube que não posso fazer isso sem você, sem ter suas unhas fincadas nos meus machucados nunca cicatrizados me dando a força necessária para seguir em frente.

Não existe vitória sem sangue derramado - e eu derramei o seu da última vez, acabei com você exatamente da forma que eu queria e planejei feito uma heroína patética determinada a derrubar seus demônios um por um - mas nesse momento te quero aqui, inteira, porque a revolta agora é grande e pesada demais para que eu possa segurá-la sozinha, me escapa pelos dedos e implora para que pelo menos hoje o sangue reluzindo pelas paredes dessa casa não seja o nosso.

Porque isso poderia ser uma história de terror.

Mas não é. É uma história de aceitação, de autocontrole, de cumplicidade e autoconhecimento - é uma metáfora irônica sobre como precisei te odiar para te amar, te trancar no limbo mais fundo da minha mente para entender que preciso de você, que por mais que seu toque seja ameaçador e sua voz revire tudo em meu estômago ainda é mais aconchegante e familiar do que qualquer coisa que vem de fora.

Você é a parte mais feia de mim, e a mais necessária - e eu ainda vou lutar para que não te vejam, para que você continue sendo a minha sombra e não o contrário como foi por tantos anos, mas eu te vejo, eu te enxergo e eu te sinto, e isso é tudo.

twilight flowersOnde histórias criam vida. Descubra agora