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SENTAMOS NO CHÃO ATRÁS DO BALCÃO para que o forasteiro não fosse visto caso alguém entrasse. O sangue estava praticamente seco, e a camisa colava na pele. Tive que cortá-la usando a faca. Os ombros dele eram largos e musculosos. Subiam e desciam com sua respiração curta conforme eu descolava o tecido. Eu estava tão perto que dava para sentir o cheiro da fumaça do incêndio da noite anterior. Peguei uma garrafa de bebida da prateleira. O forasteiro permaneceu completamente imóvel enquanto eu ensopava um canto limpo da camisa e passava nele. Tínhamos mais bebida do que água para gastar.

— Você não deveria estar me ajudando, sabia? – ele disse. – Não ouviu o digníssimo comandante Naguib? Sou perigoso. 
Soltei uma risada.
— Ele também é. – Preferi responder isso ao forasteiro a mencionar que o Bandido de Olhos Azuis devia um favor a ele.
– Além disso… – Levantei a mão rápido. — Eu estou com a faca. – O forasteiro congelou, sentindo a lâmina contra seu pescoço. Os pelos da sua nuca arrepiaram. E então ele riu. 

— É verdade – ele disse, fazendo a pele do pescoço roçar perigosamente contra a lâmina.
– Não vou machucar você.
– Sei que não. – Tentei fazer soar como um aviso enquanto voltava a trabalhar no ombro dele. Enfiei a ponta da faca na pele. Senti seu corpo enrijecer, mas ele não soltou um pio. Enquanto tentava chegar até a bala, notei uma tatuagem nas costelas dele. Tracei o contorno da tatuagem com a ponta dos dedos. Seus músculos ficaram tensos sob meu toque, o que fez os pelos do meu braço se arrepiarem.

— É uma gaivota. – Quando ele falou, o movimento fez o pássaro de tinta se mover sob meus dedos. – Era o nome do primeiro navio onde servi. Gaivota negra. Parecia uma ideia boa na época.
– O que você estava fazendo num navio?
– Navegando. – Dava para sentir a inquietude se acumulando sob sua pele. Ele deixou escapar um longo suspiro que fez parecer que o pássaro estava voando. Tirei a mão e o senti relaxar.

— Acho que a bala não rompeu nenhum músculo – eu disse, movendo a faca. — Fique parado.– Apoiei os cotovelos na lateral de suas costas. Ele tinha um compasso tatuado no outro ombro, que subia e descia enquanto respirava fundo. A bala quicou no chão e o sangue começou a jorrar livremente. Fiz pressão sobre o ferimento com a camisa estragada.
– Você precisa de pontos.
— Vou ficar bem. 
– Talvez, mas vai ficar melhor com os pontos. – Ele riu, embora não parecesse fácil naquele momento. 
– Então você teve treinamento médico?
– Não – respondi, pressionando o pano ensopado com bebida mais forte do que o necessário. Peguei um carretel de linha amarela e uma agulha da prateleira. – Mas ninguém cresce nessas bandas sem ver um monte de gente baleada.

— Achei que essa cidade não tivesse mais do que algumas dezenas de pessoas.
— Exatamente – eu disse. Embora não pudesse ver seu rosto, sabia que estava sorrindo. O forasteiro cravou as unhas no chão quando a agulha furou sua pele. Resolvi fazer uma pergunta que estava me perturbando.
— Como você cometeu traição contra o sultão se nem é de Miraji?
— Eu nasci aqui – ele disse, depois de um instante. Ele sabia que não era isso que eu tinha perguntado. Que tipo de traição um mercenário poderia cometer? A pergunta estava na ponta da minha língua.
– Não parece – eu disse. 
– Não aqui exatamente. Em Izman. – A menção à capital doía, considerando o quanto eu tinha chegado perto de fugir para lá na noite anterior.
— Minha mãe era de um país chamado Xicha. Foi lá que vivi  a maior parte da vida.
— E como é lá?

Ele ficou em silêncio, e eu não sabia se ia responder ou não.
— Imagino que você nunca tenha visto uma tempestade – ele começou.
– Não deve conhecer o ar pesado que cola na pele e entra sob as roupas.— Olhei para os meus dedos sobre as costas dele; seus ombros levantavam e desciam conforme ele falava.

— O ar em Xicha é assim o tempo todo. E tudo é verde e vivo, tanto quanto este país é seco e morto. O bambu cresce tão rápido que pode derrubar casas com suas raízes. Mesmo na cidade. Como se estivesse tentando recuperar o chão onde construímos, tomá-lo de volta. E é tão quente que as mulheres andam com leques de papel tão coloridos que deixam os espíritos com inveja. Costumávamos nos refrescar pulando no mar de roupa e tentando não ser atingidos por nenhum navio. Navios de todo o mundo. De Albis, com sereias entalhadas; de Sves, construídos para aguentar o frio; e navios locais, parecendo dragões esculpidos numa única árvore. Algumas árvores em Xicha são mais altas do que as torres em Izman.

O REBELDE DO DESERTO(Taekook💜)Onde histórias criam vida. Descubra agora