04| Silence

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Silêncio

"Privação, voluntária ou não, de falar, de publicar, de escrever, de pronunciar qualquer palavra ou som, de manifestar os próprios pensamentos"

Assim estava minha casa depois de desligar o interfone.

Quem era no telefone? Não tenho a menor ideia. Simplesmente, um morador do prédio, totalmente embriagado, resolveu dar um alô para todos os apartamentos do andar. Todos os moradores começaram a interfonar para a portaria que, rapidamente ou nem tanto assim, localizou o querido e pediu desculpas pelo inconveniente. E sim, acredite se quiser, fiquei sabendo disso tudo pelo interfone.

Com os pés descalços sob o porcelanato branco do chão, me atentei a voltar para o quarto tão rapidamente quanto saí. Eu estava com os pés doendo de ter ficado tanto tempo em pé, escorada numa parede qualquer, com o interfone alugado no meu ouvido.

Ao adentrar no cômodo gélido, avisto a morena suspirando, tranquilamente, em um sono mais que profundo. Me percebi a tempo demais olhando intensamente para ela dormindo, com certeza se ela abrisse os olhos agora, me acharia uma psicopata.

E agora? Durmo no sofá pra dar mais privacidade? Apesar de que estava agarrada nela a menos de 20 minutos atrás, me sinto insegura.

Me sento na cama e sinto ela se remexer buscando meus braços, inconscientemente, para me juntar a ela. Me aproximo e deito meu corpo próximo ao seu, mas em respeito a sua presença e ao seu sono, viro-me de costas e ela faz o mesmo.

Acordo com o incômodo da luz nos meus olhos. Abro com dificuldade tentando estabilizar minha visão, que é direcionada a janela entreaberta por onde passa um fio de claridade.

Com os olhos ainda em descanso, aproveito o aroma doce próximo a mim. Sem raciocinar direito, me permito olhar por um segundo. Vejo Eliziane aconchegada em mim, dormindo tão bonitinho que fico em dúvida se minha vontade era destruir a janela por me acordar e me tirar da tranquilidade que eu estava em sua companhia ou agradecê-la por me permitir agraciar vivenciando a cena em que eu estava.

Não sei exatamente como isso aconteceu, mas, no momento, eu me encontrava completamente confortável com seus pés entrelaçados aos meus.

Permito-me encarar a janela e perceber que, apesar da luz ter me acordado, o dia lá fora ainda não havia clareado totalmente. Olho no celular e não passava de 06h32.

Maldito relógio biológico.

Logo após, a fome bateu e infelizmente não posso pular refeições, meu desempenho no vôlei depende disso. Eu sei que ontem eu bebi demais, não precisa me culpar, pode deixar que faço isso muito bem sozinha. Mas as vezes eu gosto de cair na minha mediocridade sentimental.

Não confunda, não estou arrependida de ter beijado Eliziane, talvez um pouco chateada por não ter aproveitado mais, ou por isso ter acontecido em determinadas circunstâncias.

Você também deve estar se perguntando o porquê de ter trazido Eliziane para minha casa. Veja bem, eu nunca havia falado com ela, mas conhecia bem sua história, pelo menos o que algumas poucas pessoas comentavam por aí.

O pai de Eliziane era conhecido como o advogado bom de caso, sempre conseguia diversos benefícios para seus clientes, que em sua maioria, eram, demasiadamente, satisfeitos.

Sempre conhecido por sua postura impecável. Tinha uma família "tradicional", que seguia a risca a linha da alta sociedade, pai extremamente exigente e que considerava a religiosidade uma de suas virtudes.

Talvez você não entenda o porquê de eu saber tudo isso, mas não se engane, o senhor Gama já trabalhou para a minha família, mesmo isso não tendo acabado muito bem e pode ter certeza que essa ficha toda não foi puxada por mim. Além disso, ele se gabava por ter uma filha tão "incomparável" e certinha.

Por isso me impressionei por encontrar Eliziane naquela boate, ela definitivamente não faz o perfil de filha rebelde, quis ajudá-la, pois sei que algo não está certo. Não quis tocar no assunto, sendo bem sincera, prefiro ficar na ignorância do assunto.

Saio dos meus devaneios e, cuidadosamente, me ausento da sua companhia. Vou de encontro ao banheiro e me encontro no reflexo do espelho, não me reconheço.

Abro uma caixinha divisória pequena sobre a pia branca de mármore italiano Carrara. Pego um, dois, três, quatro, cinco... comprimidos e os observo, tão coloridinhos, tão lindinhos, ótimo se não fosse trágico.

Bebo tudo, sem pensar mais em nada. Saindo do banheiro ao olhar Eliziane novamente a vejo encolhida, abraçando a si mesma, só então percebo a temperatura do quarto e a falta dos lençóis sobre si. Pego um edredom e a cubro, Eliziane tem um sono pesado, parece não dormir direito ha algum tempo, espero estar errada sobre isso.

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