Recaída

19 1 0
                                    

Ao longo dos anos eu li diversos relatos de pessoas que sobreviveram a si mesmos, contando o quanto eram gratos por terem sobrevivido, que depois de poucas palavras de incentivo, saídas dos lábios de um padre, um pastor, um coach... magicamente a vida passou a ter sentido e cor.

A algumas semanas atrás eu cedi a novamente a vontade de desistir. Não por estar sem motivos pra viver, hoje eu tenho mais motivos que nunca pra insistir. Mas sim por que eu olhei pra esses motivos incríveis, e não me senti suficiente.
Uma característica patética de nós suicidas: a autopiedade.

Já me disseram que eu sou covarde, que eu prefiro viver num mundo de faz de conta que eu convenientemente criei, pra fugir da responsabilidade que a vida real exige.
  Que eu passo tanto tempo culpando os monstros debaixo da minha cama, por todo aspecto negativo da minha personalidade, que não paro pra ver que quem deu poder aos monstros fui eu.
  Que eu sou irresponsável com as minhas palavras, inconsequente com as minhas ações e que me recuso a ver as consequências óbvias, até que eu esteja a beira do precipício lutando pra não cair.
  Que o meu comportamento excessivamente infantil é cansativo, e ninguém é obrigado a viver explicando o mundo a um adulto que se recusa a crescer.
  Que eu recorro a mentiras exageradas e fatos distorcidos pra manipular situações desconfortáveis.
 
  Ouvir isso não me magoa, é quase como se uma voz muito baixa dentro da minha cabeça tivesse finalmente conseguido gritar. Saber que a vilã das minhas histórias sou eu, não é algo que me surpreenda.

Mas como fazer essa reviravolta?
Como diferenciar as mentiras que eu conto a mim mesma da verdade que eu preciso encarar?
Como fazer uma criança entender que vinte e dois anos já passaram e que ela precisa crescer?
Como se ensina alguém que viveu a vida inteira de cabeça pra baixo, a andar no chão?
Como faz pra olhar pra traz e aprender no lugar de sentir pena?

Eu poderia perguntar isso na terapia, ou na igreja, ou em qualquer lugar onde existam pessoas que nunca andaram nas suas pegadas e que estejam dispostas a dar conselhos incríveis.
Eu sei a pergunta, eu sei a resposta.
Estar acostumada a ouvir vozes externas enumerarem cada um dos pontos de melhoras que a minha vida exige é muito diferente do que ser eu a me repreender por isso.

Ter que olhar pra mim e admitir que eu não sou a protagonista que eu pensava, que eu tenho mais da minha minha família hipócrita do que eu pensava, que os meus monstros são reflexos meus, que por trás das minhas escolhas boas ou más não tinha ninguém além de mim.
Que no escuro do meu quarto, quando aquela vontade de não existir bate, eu vou estar dos dois lados da faca.

Eu sobrevivi mais vezes do que eu esperava, a minha vida não voltou a ser colorida milagrosamente, eu ainda tenho pena de quem eu sou, e mais pena ainda de quem eu não vou poder ser. Mas hoje, mais que nunca eu tenho muitos motivos pra me consertar.
 

Pensamentos de uma SuicidaOnde histórias criam vida. Descubra agora