Ícaro sentia-se exausto e cansado depois daquele dia tão desgastante. Primeiro, se irritara gravemente com um alfa e, se não tivesse o autocontrole que adquiriu com o passar dos anos, teria realmente sido agressivo e o agredido fisicamente.
Desde jovem era de um interior violento e explosivo, briguento, respondão e encrenqueiro, fazia as outras crianças se afastarem apenas com um olhar e se envolvia em brigas como se bebesse água.
Tinha um ódio gritante pelo mundo e uma força ainda maior e destrutiva. Seu quarto sempre tinha o mínimo de coisas possíveis e, de preferência, de materiais resistentes para que não quebrassem em um surto de raiva.
Sentiu o gosto amargo do passado dominar sua boca pelo dia todo e uma impotência dominou seu peito. Mesmo que tivesse trabalhado seu interior para conter aquele sentimento e atitudes destrutivas, ainda sim seu eu do passado estava ali, tão vivo quanto nunca, implorando para sair.
Precisava engolir toda aquela raiva de volta, eliminá-la de outra maneira, deixá-la ir de forma menos agressiva possível. Era um trabalho árduo e, por vezes, frustrante, pois o fracasso era uma possibilidade muito presente.
Soma-se a isso sua frustração em sua relação amorosa. Não exatamente sua relação com Narciso, mas o fato de que, mesmo que soubesse que o alfa não nutria qualquer sentimento por Emanuel, ainda assim criava inúmeros cenários em que ele voltava para o ômega depois do casamento encenado.
Mesmo que tivesse certeza absoluta que Narciso o amava de todo o seu coração, ainda se sentia inseguro e ameaçado pela possibilidade improvável.
Queria ser do tipo de alfa que era autocentrado e confiante que não se deixa abalar por ideias sem sentido, entretanto, ter sido uma criança e adolescente que fazia tudo à base da violência criou uma rachadura em seu ser que não poderia ser consertada tão facilmente.
A sensação de que todos o abandonariam ao ver sua verdadeira personalidade era uma cicatriz em seu peito. Por vezes ardia como se tivesse acabado de ser feita.
Era corriqueiro que fosse abandonado por quem estivesse ao seu redor em seu primeiro surto de raiva, até mesmo seus pais, incapazes de lidar com sua violência, o deixavam sozinho em seu quarto em seus acessos de fúria até que se acalmasse só.
Não os culpava, no fundo entendia que para eles também era difícil ter um filho tão agressivo e que apenas não sabiam como resolver a situação de outra maneira.
Foi apenas em sua adolescência que a possibilidade de tratar seu temperamento raivoso de outra forma se tornou visível. Com acompanhamento psicológico, aos poucos conseguiu canalizar sua raiva de outras maneiras e suas perspectivas mudaram gradualmente.
Quando estava mais adaptado aos seus novos métodos que reencontrou Narciso e tornou claro aquele sentimento que ele tinha na infância, a ideia de posse que havia colocado sobre o outro alfa e que era o estopim para muitas de suas crises de fúria.
Em sua cabeça infantil, havia ligado Narciso a si pela proximidade e por admiração, via-o como um exemplo a ser seguido, sempre rodeado de pessoas, sorridente, calmo, gentil, engraçado… Queria se aproximar dele e sentia-se frustrado e abandonado quando Narciso tinha que dividir sua atenção com outras pessoas, não entrava em sua mente que Narciso poderia e deveria manter outras relações.
Queria desesperadamente a atenção do outro alfa e isso o sufocou por dentro até que explodisse em pequenos surtos de raiva, mas que logo se tornavam mais violentos. Tinha o péssimo hábito de dizer coisas vulgares e palavrões inapropriados para sua idade e conseguia descer totalmente o nível quando estava com raiva.
Arranjava brigas com desconhecidos, discutia por bobagens com Narciso sem consciência de que aqueles atos poderiam afastá-lo de si. Estava tão desesperado para que Narciso não se afastasse que acabou causando o efeito contrário.
Não sabia como lidar com seus próprios sentimentos, muito menos como poderia expressar tudo o que tinha no peito, acumulando cada vez mais suas infrutíferas tentativas de amizade.
Quando se deu conta, tudo havia fugido de seu controle e desmoronou como um castelo de areia após ser atingido por uma onda.
Para si, foi um milagre que Narciso o perdoou quando adultos e até mesmo se aproximou por vontade própria ao ponto de começarem aquele relacionamento que os levou a diversos contratempos até chegarem onde estavam.
Ícaro observou Narciso deitado na cama, a barriga para cima e o olhar entristecido voltado para o teto. Lentamente se aproximou do colchão que dividiam desde que se mudaram para viver juntos, moveu-se o mais suave possível para não atormentá-lo e envolveu seus braços em seu quadril, assim como encaixou sua cabeça em seu peito.
O corpo de Narciso era um pouco maior que o seu, o que tornava aquela posição bem mais confortável.
— Os médicos disseram que, do jeito que o vô tem reagido aos tratamentos, sua expectativa é de três meses… Isso se tiver sorte de não pegar qualquer outra doença…
Ícaro passou sua palma pelo tronco de Narciso, apenas como uma maneira de expressar por suas atitudes que, independente de qualquer coisa, ele estaria ali para apoiá-lo.
Não disse qualquer palavra naquele momento, pois sabia que Narciso queria expor os fatos para si e tirar ao menos um pouco do peso através de sua voz.
— Às vezes me pergunto como vai ser tudo sem ele por perto… Ele quem me criou, meus pais praticamente só voltavam para casa para dormir por causa do trabalho… Meu vô sempre foi minha referência para tudo… Ele quem me apoiou em cada uma das minhas decisões até mesmo quando meus pais não concordavam… Ele foi o único que me via como uma pessoa e não uma marionete para realizar seus desejos frustrados, como meus pais faziam…
— Fico feliz que ele tenha te criado, você seria insuportável se tivesse aprendido com seus pais… O vô é uma pessoa incrível e foi quem certamente mais te amou, depois fui eu, claro.
Narciso deu uma risada fraca e beijou a testa de Ícaro com suavidade, esfregando seus lábios por sua pele por longos segundos.
— Também acho que eu seria um belo babaca se não fosse pelo meu vô… É difícil imaginar que um dia ele não estará mais aqui… — Narciso ajeitou Ícaro entre seus braços e o puxou mais contra si. — Você e ele também são as pessoas que mais amei em toda a minha vida. Eu daria tudo o que tenho e sou se for para protegê-los e fazê-los felizes.
Ícaro esfregou o rosto na curvatura do pescoço de Narciso, inspirando profundamente o aroma floral que exalava de sua pele. Era bom e reconfortante, assim como seu abraço e calor como um dia bom e ensolarado.
— Queria que ele se lembrasse de nós dois… De como somos um ótimo casal e que ele nos apoiou mesmo sabendo que o resto da família se viraria contra ele…
— Eu também queria, mas não é como se houvesse algo ao nosso alcance que possa mudar isso… Ele não se lembra de nada depois da nossa época do colegial e não sei se ele reagiria bem ao ter suas memórias despedaçadas.
— Emoções muito fortes podem piorar o quadro dele… Foi o que o médico disse quando falei que pretendia contar tudo o que aconteceu… Eu não… Quero piorar as coisas, entretanto, não quero deixar mal-entendidos entre nós… Queria poder acordar e tudo estar normal, sem problemas ou complicações…
— Quando acordar amanhã, tudo estará normal e bem entre nós, Narciso, como sempre esteve desde que nos reencontramos.
— Não vai estar bem se eu sei que você sofre com tudo isso… Dói tanto te ver sofrer e te ver fingir que não está mal, ao mesmo tempo que eu não posso fazer muita coisa além de te abraçar e pedir para que você seja minha coragem para colocar fim a toda a farsa… Se apenas me dissesse para não continuar, talvez eu…
— Não diga bobagens, mesmo que eu sofra, não posso ser tão egoísta a ponto de arriscar a vida daquele que te criou com todo o amor possível por causa de meu ego… Além disso, que tipo de amante eu seria se não pudesse suportar alguns espinhos pelo percurso?
— Você é tão bom pra mim, Ícaro. O que eu fiz para merecer você na minha vida? — Narciso entrelaçou seus dedos aos de Ícaro e trouxe sua mão para mais perto, dando incontáveis beijos pelas costas. — Nem em um milhão de anos conseguirei compensar por tudo o que fez por mim.
— Não seja bobo… Eu fui uma pessoa horrível com você boa parte do tempo… Eu não fiz nada para te merecer… Fui violento, imaturo, feri seus sentimentos e seu corpo… Eu é quem tenho que te compensar por todos os estragos que causei…
Narciso fez um chiado contrariado com a boca e apertou mais Ícaro contra seu corpo.
— Você diz isso, mas sempre me protegeu quando éramos mais novos.
Ícaro fez uma careta de descrença e confusão, seu rosto se voltou para cima para encarar Narciso como se tivesse falado o maior absurdo que já ouviu em toda sua vida.
— Acho que você nunca percebeu, mas muitas pessoas tentavam se aproveitar de mim, tirar vantagem da minha incapacidade de negar algo na época, você acabava interferindo e brigando com elas. Talvez fosse algo inconsciente seu, entretanto, me salvou inúmeras vezes.
— Ah, não me lembro de ter feito nada com essa intenção… Na verdade, eu percebi depois que fiquei adulto que eu nutria um enorme sentimento de posse por você, muito provavelmente por ser a minha pessoa especial, o primeiro que foi meu amigo de verdade e isso ficou gravado em mim de uma maneira um pouco… Tóxica demais.
— Oh, mas eu nunca vi assim… Depois que cresci, percebi que muitas coisas pelas quais brigava comigo eram verdadeiras. Eu deixava as pessoas se aproximarem, as agradava porque queria ser validado por elas e pensava que sempre estar disponível para elas as fariam me amar.
— Para mim, parecia o contrário, elas se aproximavam de você porque queriam ser validadas e queridas por você. Se tivesse se olhado como eu te olhava naquela época, e até mesmo hoje, jamais chegaria nessa sua conclusão.
— Posso dizer o mesmo para você, nesse caso… Sabe, teve algo que você disse naquela briga… E você estava certo como sempre.
— Eu não me lembro muito bem… Minha mente apagou a maioria das falas e quando tento me lembrar desse dia são apenas flashes esquisitos… Meu psicólogo havia dito que era uma maneira de me autopreservar, bloqueando memórias que são dolorosas ou destrutivas demais…
— Era sobre Emanuel… Você disse que eu só estava com ele como uma maneira de receber o amor que meus pais me negaram por muito tempo, pois achava que seguindo os passos deles, eles perceberiam que eu era bom o suficiente para que eles me amassem… Na hora que disse, eu realmente fiquei muito bravo com você a ponto de revidar suas palavras e revidar sua agressividade com ainda mais agressividade… Depois que as coisas se acalmaram, eu percebi que era verdade e terminei tudo com ele. Não podia mais viver em uma mentira depois que você abriu meus olhos.
— Eu falei mesmo tudo isso? Céus, isso foi extremamente rude e sem tato da minha parte — comentou Ícaro afundando o rosto contra a curvatura do pescoço de Narciso.
— Chame como quiser, mas foi algo extremamente necessário para que eu mudasse minha vida. Claro, talvez tenha sido um pouco excessivo rolarmos montanha abaixo trocando socos e pontapés a ponto de sairmos direto para o hospital com alguns bons ossos quebrados? Talvez, contudo, os meses seguintes andando em uma cadeira de rodas com quase metade do meu corpo engessado foram de muita reflexão.
— Foi minha culpa que você se machucou tanto… Se tivesse uma hemorragia grave por causa daquela queda… Eu nem sei o que eu faria…
— Não foi sua culpa, Ícaro… Eu também não medi esforços para revidar e deu no que deu. Se há algum culpado nisso, sou eu.
— Nem vem, eu que comecei a puxar briga, sabia que em algum momento você revidaria e estava pronto para isso… A culpa sempre foi m…
Narciso puxou Ícaro para si e selou seus lábios em um selinho forte, suas bocas só se separaram quando ele decidiu que era tempo o suficiente para atordoá-lo a ponto de esquecer sobre o assunto.
— Calado me beijando você fica muito mais bonito, sabia? — comentou Narciso e Ícaro riu, roçando seus narizes levemente.
— Você é um grande idiota, Narciso.
— E você ama esse idiota aqui — afirmou com um largo sorriso, beijando seus lábios diversas vezes.
— Não posso negar que seja verdade…
— Eu te amo, Ícaro, te amo mais do que ontem e menos que amanhã.
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Peônia azul
RomansaEm seus primeiros dias de experiência em uma grande empresa de arquitetura e design de interiores, o jovem aspirante a arquiteto, Péon, conhece seu chefe ômega e escuta boatos que o deixam curioso sobre como aquele homem tão bonito chegou tão longe...