Capítulo Quinze

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Eda Yildiz

Tirei as luvas descartáveis das mãos, jogando-as na lixeira próxima à porta, e saí do quarto em busca do prontuário clínico do paciente.

Os exames pós-operatórios estavam excelentes. A cicatriz melhorava como esperado e os reflexos e a força muscular melhoravam após as primeiras sessões de fisioterapia pós descompressão cervical. A cirurgia de emergência funcionou perfeitamente.

-Doutora!

Virei-me, atenta, na direção da voz. O prefeito aproximou-se, com as mãos inquietas, em seus típicos trajes sociais impecáveis. Ele enlouquecia todo o hospital desde o acidente do filho adolescente e embriagado. Por mais que o filho dele fosse o responsável pelo acidente, ninguém parecia comentar o fato dos privilégios do pai encobrirem os delitos jurídicos cometidos. Ainda que o garoto precisasse de algumas sessões de fisioterapia, ele sairia impune e andando do hospital.

Respirei fundo e apoiei o prontuário sobre a bancada do posto de enfermagem, encarando-o.

-As sessões de fisioterapia estão dando resultado, certo? Ele está ficando bem! Curado!

Balancei a cabeça, em silêncio.

-Quando podemos ir pra casa? - perguntou, dando de ombros e guardando as mãos dentro dos bolsos - Sabe, apenas esquecer todo esse pesadelo. Que tudo fique no passado!

Travei a mandíbula, irritada, e o encarei firme.

Eu me segurava ao ouvir cada palavra que escapava de sua boca, ciente de que cada uma refletiria a realidade. Daqui há algumas semanas, nem ele nem o filho iriam lembrar do que aconteceu. O carro destruído seria substituído por um novo em lançamento. As cicatrizes seriam apenas lembranças distantes. Ninguém comentaria sobre o assunto. Seria como se ele não tivesse existido.

Mordi o interior da bochecha em uma tentativa de conter meu impulso de retrucar impulsivamente. A vontade parecia crescer dentro de mim, buscando uma saída para fora do jaleco. Uma liberdade sem o peso da profissão em minhas costas.

Salvar vidas sem julgá-las, às vezes, era o maior obstáculo da medicina.

-Seu filho está se recuperando bem, senhor prefeito - disse compassadamente sem muita emoção - A recuperação dele tem tudo para seguir conforme o planejado. As cicatrizes serviram como...

-Marcas de guerra - ele riu do próprio comentário, divertido - meu filho adorou que tem marcas para contar histórias.

Senti um nó se formar em minha garganta. Os punhos cerrados ao lado do meu corpo e a vontade de proferir palavras que seriam facilmente consideradas como desacatos.

Respirei fundo e controlei os músculos do meu rosto, mantendo minha expressão indecifrável.

-O termo que eu procurava era aprendizado, senhor prefeito - retruquei sua brincadeira. A imagem de Theo dando entrada na emergência retornou a minha mente - Com todo o respeito, mas as marcas que seu filho tanto gostou de ter adquirido são o mínimo que vemos aqui. Pessoas, os seus eleitores, dão entrada neste hospital todos os dias por acidentes de trânsito evitáveis. Pessoas se machucam gravemente e outras nem sobrevivem - escondi minhas mãos nos bolsos do jaleco e suspirei cansada - O seu filho e o outro motorista envolvidos no acidente tiveram muita sorte, senhor. Não seria bom testá-la novamente.

Afastei-me dele e recolhi o prontuário. Eu precisava sair dali antes que eu dissesse algo de que me arrependesse ou que o homem sentisse que era uma ofensa explícita.

Felizmente, ele não persistiu na conversa.

Seguindo pelo corredor, empurrei a terceira porta a direita e adentrei ao sala de descanso. Joguei o prontuário sobre a cama desocupada e me sentei com as costas apoiadas na parede, olhando fixamente para minhas mãos.

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