O balançar da carruagem pela lama cada vez mais seca da estrada deixa Kalyn mais tonta, um enjoo digno de seus primeiros séculos ao viajar numa dessas a faz rir para si mesma. Ao menos não se preocupa mais tanto com os dois garotos enlameados, pois pelo que seus ouvidos dizem, parece que estão chegando.
— Então, mocinha, seus pais são devotos do culto?
Detrás de si, a voz da elfa quebra o contínuo som arrastado do duplo eixo das rodas, um som familiar de madeira contra madeira rangendo, e os cascos do burro lutam com todas as suas forças para subir a leve colina coberta até no topo pelas árvores mais frondosas. E agora que atravessam o túnel de galhos altos, se estendem como braços marrons e pretos de folhas de um tom amarelo ferrugem.
— Culto? Ahm, que culto mesmo? – o olhar das duas se cruzam nos últimos instantes que a luz do Sol amarelo lhe toca o rosto pelo lado direito.
Nos quase dois milênios, já existiu tantos cultos para tantas coisas, tantas pessoas dizendo ser santos, divinos ou pior, reis, que não se culpa por não saber deste.
— Que culto seria, menina? – o olhar zombeteiro da elfa castanha a atinge. Ainda mais por dizer. – O culto à Santa Kalyn, qual outro seria?
...
— Oi?
O choque lhe atravessa a coluna, sua barriga fica tão fria que parece estar em meio a uma tempestade de gelo. A surpresa de ouvir isso quase a derruba da beira da carroça, e esta reação parece ainda mais estranha para a elfa cocheira.
— Você tem o mesmo nome da Santa Guerreira, seus pais devem ser devotos, não?
— Aliás, menina, onde eles estão? – o humano de idade pergunta. – Ter deixado sua filha no meio do nada com dois moleques imundos não par-
— Estão mortos. – sua resposta é simples.
Não existe tristeza, pois já chorou o que tinha de chorar por eles, e talvez a vingança que esteve atrás tenha finalmente se completado. Claro, lembrar é algo que não gosta de fazer, principalmente na frente dos outros, por isso se pergunta porquê foi tão relapsa.
Os segundos de silêncio que acompanham os próximos metros ressoam com o som do animal puxando a carroça, e logo depois, o olhar de Kalyn acompanha os dois garotos, cansados, mas, algo no olhar de Elerin parece tão afetado por isso, a forma que sua postura frágil se transformou em raiva é diferente de antes, não parece chegar perto da ira, talvez seja um tipo de revolta.
Quando Kalyn iria abrir a boca e perguntar, o som de algumas galinhas sendo enxotadas da estrada atrai sua atenção. O cheiro de madeira queimando e esterco a lembra das suas primeiras décadas em casa, uma saudade estranha surge em seu peito por quase poder sentir o cheiro novamente, o cheiro dos cavalos que seus pais treinavam e criavam na sua fazenda.
Ao virar os olhos para trás, não vê muito do que imaginava. São casas pequenas feitas de madeira e palha, varandas arejadas com plantas em vasos ou presas nos pilares e vigas, que colocam cores mistas neste lugar tão sombreado por causa das árvores que crescem ao redor ou até mesmo fazem parte de algumas casas, que usam o tronco como pilar, ou tem nele degraus para um tipo de torre de vigia simples, com algumas cadeiras e dois rapazes que deixam seus arcos curtos por entre as pernas, já que sequer se deram o trabalho de ficar de pé ou alertar a chegada dos cinco. Ou seis se contar o burro.
— Podem me deixar por aqui mesmo, obrigado.
Somente quando chegam perto das casas, Kalyn anuncia, já que sente suas pernas menos doloridas agora.
— Ah menina, vamos te deixar com a senhora Amenadia. Ela vai dar um jeito em você e nesses dois moleques aí.
A elfa castanha aponta para os dois mais atrás com o queixo.
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As Relíquias Imperiais - O Príncipe Vermelho
Fantasy"Após muito ponderar sobre a necessidade de novas histórias e pensar nas anteriores, me decidi, finalmente. E trazer a memória do mais importante império de Myracroduon me pareceu uma excelente ideia e ponto de partida. Nesta obra, vamos acompanhar...