Capítulo 9

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Como tem sido a vida do outro lado?

Aqui no além, nós temos piscina de bolinhas e suco de maracujá. Disseram que até a próxima semana, um senhor virá instalar a wifi. Você acredita que existe Instagram apenas para pessoas mortas?

[risos]

Respira mamãe, a morte não é nada.

É com o coração pesado que te escrevo esta nota, sabendo a quantidade de dor que vai causar em você. Mas eu preciso que saibas que o meu amor não desapareceu. Eu ainda escolheria a nossa pequena família se tivesse a oportunidade de nascer de novo.

Eu não queria fazê-lo, mas fui compelida por circunstâncias além do meu controle a dar o mergulho. Tentei o meu melhor para sobreviver, mas o meu melhor não foi o suficiente. Lutei sozinha por cerca de treze meses até que simplesmente não tinha mais forças para continuar a nadar, então deixei com que as ondas me levassem para qualquer lugar.

Você não conseguiu decifrar o que eu estava a passar e não posso culpá-la por isso. Era complexo demais para entender, doloroso demais para ouvir e vergonhoso demais para ser dito em voz alta.

Eu queria que naquela noite, você tivesse aparecido para me salvar. Que viesses atrás de mim depois do jantar e me desses um abraço. Eu precisava de um colo. Eu precisei durante um ano. Foram dias turbulentos, meses sufocantes e segundos angustiantes.

Mas agora, neste segundo em que escrevo essas próximas linhas, perto do meu fim, eu posso finalmente dizê-lo em voz alta:

Eu fui estuprada.

Eu fui estuprada. Eu fui estuprada. Eu fui estuprada.

É libertador poder escrever isso. Eu queria poder sair pelas ruas e gritar bem alto essa pequena frase com um significado gigantesco.

Em primeiro lugar, gostaria de dizer que esta não é uma carta de perdão, e também não tenho certeza se é de aceitação. Esta é apenas uma carta que senti que precisava escrever para tirar todas as minhas emoções e pensamentos do meu cérebro. Não posso morrer em silêncio. Eu preciso tirar tudo que está entalado na minha garganta. Foi um ano, um mês e dois dias de silêncio absoluto. Eu nem lembro mais como a minha voz é.

Ser estuprada me fez perder a voz.

Não existem palavras para descrever o ato mais brutal que uma mulher pode sofrer. Não existem palavras para descrever o quão doloroso é não ter poder de decisão sobre o seu próprio corpo. Ser usada e descartada logo em seguida, sem poder fazer nada.

Sean comprou o meu bilhete de ida para o inferno, sem volta. Me fez enxergar preto e branco onde eu enxergava azul ou laranja. Fez-me acreditar que ele sabia exatamente o que a minha alma desejava - companheirismo. Ele tentou fazer-me companhia quando eu precisava de alguém com quem conversar, mas tudo era apenas uma faxada.

Eu tinha catorze anos. Ele era mais velho. Estávamos em uma festa em casa de Kim e eventualmente, eu acabei me divertindo muito, dancei com música de merda de um alto alto-falante ruim, ri e brinquei, beijei e abracei meus supostos amigos e me lembro de pensar (como a maioria dos adolescentes bêbados) como meus fins de semana eram ótimos.

À medida que as coisas diminuíam, e eu morava a quilômetros de distância, acabei caindo no meio da cama do quarto de visitas. A maioria dos meus amigos estavam deitados no chão. Adormeci brevemente, mas acordei quando ele entrou no quarto.

Lembro-me de me afastar dele porque podia sentir o cheiro do seu corpo e dos cigarros velhos no seu hálito. Lembro-me dele me acariciando e se empurrando contra mim e eu afastar-me. Lembro-me de estar congelada, incapaz de dizer não, incapaz de pedir ajuda. E quando finalmente o fiz, assisti meus supostos amigos me virarem as costas. Os olhos perversos de Kimberly. Nunca me esquecerei do sorriso dela antes de sair do quarto e fechar a porta atrás de si.

Lembro-me de ter medo.

Lembro-me de rezar para que ele parasse.

Lembro-me dele tentando acessar meu corpo de qualquer maneira que pudesse.

Lembro-me de seus dedos me enroscando cada centímetro e suas unhas arranhar minha pele.

Não me lembro quanto tempo durou. Mas lembro-me de ligar para você e implorar que viesse me buscar e perguntar-me por que eu queria sair tão tarde e se eu estava bem, e dizer que estava apenas cansada.

Tomei banho assim que entrei, tentando acalmar as partes ardentes do meu corpo. Tomei um comprimido para a minha cabeça que estava zangada por meu corpo a ter traído.

Pensei em todas as palestras que você me deu, sobre ter cuidado porque os meninos estão todos atrás de uma coisa, e especialmente se eu estava bebendo, e pensei em como eu não poderia dizer o que tinha acontecido porque essas coisas me levaram a acreditar que era minha culpa.

Eu pensei que se eu pudesse tomar banho mais mil vezes, eu provavelmente poderia seguir em frente. Que idiotice achar que se pode curar a alma com algo físico.

Que burrice pensar que se pode recuperar a dignidade, sexualidade, vulnerabilidade, confiança nos outros e respeito por si e pelo seu corpo, com algo essencialmente visto a olhos humanos. Leva muito tempo para construir essas coisas de volta e talvez nunca cheguemos lá. Eu não consegui me recuperar.

Eu zombio de descrença toda vez que penso nisso. Eu realmente estava a espera que reparasses, mas não. Como se as pessoas viessem com uma bola de cristal.

Lutei para esquecer essas experiências, mas não consegui. As minhas notas caíram na escola e você e o pai arranjaram rapidamente formas de me fazer recuperá-las com professores particulares e aulas extras.

Mãe, aquele ato singular em vez de me ajudar alimentou o que está prestes a acontecer comigo daqui a alguns minutos.

Eu preciso silenciar a minha mente e essa é a única forma de fazê-lo. Sinto que não posso continuar mais nestes tempos terríveis.

Há muitas coisas que gostaria de te dizer, mas não quero acrescentar à tua dor, por isso deixa que esses outros tormentos sejam enterrados com este meu corpo indigno.

Respire. Respire. Respire.

A morte não é nada.

Nunca se sabe o final. A pessoa tem de morrer para saber exatamente o que acontece depois da morte, embora os católicos tenham as suas esperanças.

Não quero nada mais que a morte. Eu espero que a saída seja alegre e espero nunca retornar.

Tenho de ir. O nevoeiro está a aproximar-se.

OrgasmoOnde histórias criam vida. Descubra agora