Coitado

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Holofotes faiscavam a rua das Mandagueiras.

Chico havia morrido de morte certeira.

Escândalo ocioso da pequena cidade que nada acontecia.

Mas que morte certa não seria?

De lá para cá, um filme deve ter lhe passado pela cabeça. Talvez pode ter pensando nos seus quatro filhos, deixados nos braços de Leila, sua companheira de tantos e tantos anos.

Havia sangue escorrido pelo calçadão polvoroso.

Curiosos, policiais e Chico.

Esparramado feito saco de lixo beirando a esquina.

Mortinho da Silva.

Como se fosse apenas mais uma estatística.

Chico sempre de lá pra cá sorria, descendo a rua das Mandagueiras com um jornal debaixo do braço. Eu o cumprimentava, abanando a mão direita, enquanto a esquerda amassava as batatas da minha tigela.

Toda manhã, na beirada da minha janela, Chico pra mim sorria.

Não como ele sorria para Leila, nem como eu sorria para Cecília, mas como eu sempre desejei que meu pai para mim sorrisse.

Chico não sorria mais.

Por um segundo enxerguei seus dentes brancos-marfim, mas não era nada real. Nem mesmo o jornal sobreviveu, jogado à sarjeta, pior que lixo, ninguém o viu.

Só eu.

Disseram que fora uma fatalidade.

Que Chico morreu de bala perdida.

Uma fatalidade, uma pena.

Quem é que perdera no vento a tira vidas?

Quem é que mirou no peito de Chico e, sem querer, perdeu bem ali, no coração puro de meu vizinho, o fatal?

Não consegui chorar.

Mesmo que estivessem se aproximando do corpo morto para toca-lo.

Perguntei-me o que agora faria Leila. Trabalhando feito doida, lutando por sua família.

Ela sequer sabia?

As crianças a essa hora na escola estão. Júlio beirando a formatura do nono ano. Maria aprendendo a escrever seu nome. Lucas, provavelmente querendo namorar Patrícia, a menina ruiva que também mora por aqui.

Mas e Breninho?

Aquele garoto todos os dias me manda beijinho.

Enquanto eu descasco as batatas.

Amanhã tinha uma entrega. Dois centos de salgado para Fátima, da rua de cima.

Como eu agora pensaria em coxinhas? Deveria eu ligar para Leila? Deveria eu pegar as crianças mais cedo na escola? Eu não era da família, não. Mas sentia como se fosse.

O policial olhou para os lados, não me viu.

Invisível eu era, por que Chico não?

Ali agora era vítima, famoso no acaso dos destinos que nem felizes eram.

Chico não era mais nada.

Nem se quer era mais Chico, meu vizinho.

A distância entre o que ele ali agora era e eu, pouca era.

Respirei; nem pensando se o ar supriria.

Cortei o dedo.

Sangrou e sangrou. Limpei na camiseta que é de Cecília.

E saí de vez ao encontro de Chico, destrancando o portão que me separava da cena de novela.

O fim da minha eterna adolescênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora