Passamos a tarde praticando caminhada com Povan.
Ele conseguia se manter de pé, porém, por conta da dormência que ervagelo causava, o movimento estava um pouco comprometido.
Precisei fazer algumas concessões até ter um resultado satisfatório.
Primeiro tive de ficar de costas para os dois por quase dez minutos enquanto se vestiam com as roupas roubadas, Povan, obviamente foi o que mais demorou.
Segundo, abri mão da minha vassoura para ele ganhar um tipo rústico de bengala e me arrependi, enquanto queimava os talos nas brasas que iriam aquecer nossa sopa depois, quando Povan prometeu que meu transporte seria recompensado mais tarde, quando eles conseguissem escapar da cidade.
Procuro não ficar muito aborrecida com essas provocações de Povan, de muito mal gosto por sinal, porque me rendem migalhas de informações sobre ele que o mesmo se recusa a dar por livre e espontânea vontade.
Teorias, na verdade. Bruxas de vassoura, ou moiras, são lendas das cordilheiras de Honor, onde ficava sediado o poder do Antigo Império, a cidade particular do Sultão.
Histórias com Moiras eram contos de terror do tipo para assustar criancinhas malcriadas, naquele contexto, criancinhas nobres malcriadas, já que nessa cidade montanhosa só viviam os governantes e sua corte.
Pode ser, é uma hipótese, que Povan tenha vindo de lá. Filho de uma família de criados ou comerciantes? Ou, talvez ele, por ser do deserto, tenha conhecimento sobre aquelas histórias todas por conta de suas viagens e longas jornadas entre todos os reinos que circundam os quilômetros intermináveis de dunas.
É fácil se sentir realmente livre quando viver é uma eterna aventura e não uma luta por sobrevivência.
Grillo se manteve na janela de pedra, eu fiquei do lado oposto, no anexo, ele já tinha desistido de interromper nossas discussões então também entrava na brincadeira com suas risadas sonoras. Esse é o único som que sai da boca dele, e tenho certeza, pelo que ouço, que se Grillo falasse, seria um exímio cantor. Consigo imaginá-lo perfeitamente como um bardo animado nas cortes.
Povan seguiu caminhando entre nós dois com o cabo de vassoura como apoio. Os passos ficavam menos vacilantes conforme ele se adaptava, mas insisti que ainda seria complicado pular sobre telhados daquele jeito, apesar de o mesmo rebater o contrário.
De qualquer modo, Povan só me ouviu quando, à beira da noite, o cansaço bateu, e ele se sentou de volta na cama, reclamando de sentir os pontos latejando um pouco.
Me ofereci para preparar um pouco mais de pasta, mas Povan recusou quase que de imediato, só pedindo as instruções para ele mesmo "cuspir nas feridas".
Nosso jantar foi um pouco depois disso. O caldo requentado serviu meia tigela para cada. Não tenho certeza se era por conta do efeito de ervagelo na língua, ou porque a sopa se resumia a água colorida, mas não senti gosto algum, meu estômago tampouco. Precisamos molhar, com o caldo, o restinho das sementes que eu ainda tinha estocado para fazer um tipo de pirão que conseguisse enganar a fome pelo menos até o dia seguinte.
Temi ter que voltar para as mesas de apostas enquanto estava hospedando esses dois, mas continuar roubando comida com a segurança redobrada era perigoso demais até para mim, visto que minhas habilidades de fuga não pareciam tão eficazes - dois forasteiros conseguiram me encontrar! É um insulto -, fora que ainda preciso encontrar uma forma de levar algo de valor para livrar Norrah da mira de Amastor.
"Precisa mesmo?"
Ouvi uma vozinha sussurrar para mim indecentemente.
Um arrepio me percorreu o corpo. E apertei os olhos para fugir daquele flerte arriscado.
- O que foi? - Povan perguntou para Grillo, que se sentou de repente sobre seus tapetes no anexo.
Soltei devagar o cesto em que procurava minhas roupas de dormir, me virando em direção a Grillo com os olhos cerrados pelo chão do anexo.
Quando se vive entre pedra e madeira alguns insetos peçonhentos se sentem no direito de fazer companhia.
Que não sejam escorpiões, que não sejam escorpiões.
- Ele disse que tem algo errado. - Povan já estava apoiando o bastão no chão para ficar de pé, e Grillo vinha na direção do companheiro com atenção à cada passo.
Seja lá o que tenha chamado à atenção de Grillo foi bem antes de mim ou Povan sequer notarmos.
- Onde? - Fiquei de pé a tempo de conseguir ouvir um som arrastado do lado de fora.
Teria preferido mil vezes que fossem escorpiões.
Sinalizei para que se juntassem na janela, em qualquer sinal de perigo o pulo por lá até o lado de fora era a melhor rota, mesmo assim, soltei meu cobertor e ordenei que meu corpo voltasse a trabalhar de forma eficiente, não foi suficiente, não quando meus membros, de repente, ganharam toneladas de peso a mais.
Paralisei.
Algumas pessoas reagem de formas diferentes ao medo.
Existem as que lutam contra ele. As que fogem dele. E, no meu caso, as que congelam por completo.
Preciso me lembrar de respirar mesmo que só consiga ouvir apenas o fluxo do sangue preenchendo minha audição. É semelhante a estar presa num pesadelo, tentando fugir, gritar, e seu corpo se torna completamente indiferente às suas ordens.
As sombras continuavam se modulando no chão em diferentes movimentos e direções.
Permaneci onde estava.
- O que está fazendo?! - Povan murmurou para mim - Sai daí!
Todos meus instintos estavam em alerta encarando as sombras que atravessavam a luz pela fresta debaixo da porta, imaginando o tamanho e forma do dono dos ruídos apressados de quem estava do outro lado.
Cravei as unhas nas palmas das mãos sentindo um tipo pesado de energia adormecida se acumular no meu peito, dançando em harmonia as batidas aceleradas do coração.
Adrenalina? Coragem? Algo muito parecido com o que me fez incendiar o cadafalso. Muito convergente com o alarde de perigo iminente e ao mesmo tempo intenso e tangível.
Talvez eu realmente fosse louca.
Segui a sombra com os olhos...
Reagirei a esse perigo, essa energia distante me dizia, eu sobreviverei de novo.
O incentivo teve efeito. Meu corpo formigou inteiro quando dei um silencioso passo para trás.
Quando a porta rangeu e, à luz das brasas, uma silhueta masculina surgiu, essa esfera viva no meu cerne não se dissipou.
Pelo contrário.
Incandesceu quando Norrah se revelou para mim.
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Entre Dunas
FantasyEudora Fazad cresceu em Fossa, uma cidade ressecada pelo deserto Vhial, que a circunda. A opressão que seu povo sofre não a impede de aprontar de vez em quando,principalmente, se a barriga exigir o alimento que ela só consegue por meio do roubo e de...