Capítulo 2

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- Minha avó levava tudo que a gente precisava . . . - Ele falou depois de engolir a comida, sempre me olhava do mesmo jeito - Você jogava fora porque não queria nada dela, no fim só queria deixar a gente passar fome e agora me traz comida todo domingo.

Eu não respondi, eu sempre ficava nervosa quando o via, certa vez tentei tocar seu rosto e ele se afastou, raramente tocava em algum assunto, era perda de tempo, não havia motivos e mesmo se houvesse, ele não queria saber.

- Ontem orei por você - ele disse.

- É mesmo ? - por um momento eu me animei.

- Pedi a Deus que nunca mais te dê outro filho.

- Bom . . . Seu irmão pediu que eu te devolvesse isso - eu entreguei de volta a carta, ele apenas leu o que estava escrito atrás e riu.

Enfie no meio do seu rabo.

Ele quase implorou pelo perdão do Gustavo e quando eu falei que li, ele me olhou como se fosse me atacar. Não havia nada mais ali a não ser o ódio carregado pelos seus olhos acinzentados. Ele largou na mesa e desviou o olhar. 

A outra foi entregue para a Marina e era também um pedido de desculpas. Essa não voltou. Não tinha mais ninguém que ele quisesse falar.

- Veio me contar alguma coisa ? - ele perguntou, eu não conseguia falar, apenas entreguei algumas fotos e tempos depois eu fui embora.

Ele me procurou quando saiu da cadeira, era noite e eu estava saindo da igreja ao lado de Edson. Ele o aceitou bem, dizia que Deus perdoaria tudo o que o Matheus fez, mas se ele soubesse o que eu havia feito, nunca mais olharia para a minha cara. Às vezes eu sentia que ele ia contar, destruiria a minha vida como eu o destruí, mas ele nunca tocou no assunto. Deixava dinheiro em cima da mesa toda semana, dizia que estava trabalhando em um lava-jato, mas antes do anoitecer, ele desaparecia e voltava pela manhã. Ninguém sabia que ele saiu da cadeira, além disso, andava junto com um traficante que morava no apartamento ao lado.

No seu antigo quarto, ainda tinha documentos guardados em cima do guarda-roupa e fotos dos irmãos, e eu o vi chorar algumas vezes. As vezes olhava pela janela como se não houvesse mais nada lá embaixo, não sabia quem era seu pai e nem de onde veio, só apareceu aqui. Quase não conversamos, mas o olhar que me condenava já não existia mais.

Eu ia toda quarta para à igreja e uma vez Matheus se ofereceu para ir, ficava no fundo, um pouco sem graça, sentia-se culpado por tudo, pouco tempo depois começou a sair com uma menina. 

- Diga ao seu filho para ficar longe da minha filha, fiquei sabendo que ele acabou de sair da cadeia  - o homem me encarava feio. A filha dele não dizia nada, estava sem graça ao lado do pai.

Edson era pastor e eu contei a ele o que aconteceu. Depois disso, o homem se desculpou mas o Matheus já havia perdido o interesse na menina e logo perdeu o interesse em ir para à igreja.

Ele começou a passar mais tempo em casa, juntava dinheiro, já fazia alguns meses que estava livre e não queria procurar ninguém. Debaixo de sua cama escondia uma caixa cheia de dinheiro.

Cuide bem dela. Ele sempre escrevia em um envelope antes de entregar.

Edson sempre falava dele, o apresentava na igreja para todo mundo, o convidava toda hora para fazer parte de lá.

- Posso te arrumar um trabalho bom, vai ser fácil recomeçar a vida - ouvi Edson dizer, eu me levantei da cama e abri um pouco a porta, os dois estavam sentados no sofá. - Eu também fui preso uma vez, foi um furto, foi uma coisa muito idiota e eu me arrependi e nunca mais fiz aquilo. O que você fez ? 

- Roubei uma moto.

- Pelo menos não estava armado, né ? 

- Estava, a vítima me reconheceu, mas eu já tinha me livrado da arma quando os policiais me pegaram.

- Pelo menos você está melhorando, confio em você, sei que nunca mais vai fazer aquilo.

De repente Edson passou a mão no ombro dele, estava com uma risadinha no rosto e dizia algumas palavras em voz baixa, prometeu que iria ajudá-lo, mas de repente encostou a mão em sua perna, subindo até o zíper de sua calça e tentou beijá-lo.

Ele se levantou, assustado, passou a mão no rosto, ele não acreditava naquilo. Matheus simplesmente saiu e fechou a porta. Eu me aproximei e Edson me olhava com cara de espanto.

- Foi ele, ele tentou . . . - ele gaguejava, só baixei a cabeça e o mandei embora.

Ele havia sumido, eu sabia que o Matheus tinha ameaçado ele. Nos dias seguintes ele agiu como se nada tivesse acontecido. 

- Edson sumiu, ninguém mais o viu - eu falei, ele deu de ombros.

- Desde quando ?

- Há algum tempo atrás.

- Pergunte a algum familiar dele . . . - ele disse e não olhava para mim, tentava se manter concentrado na TV. - Ou vai procurá-lo na igreja.

Ele estava começando a ficar nervoso.

- Já procurei, ele não está, ninguém o viu.

- Ah, eu não o roubei . . . - ele tentou rir, mas estava tenso. - Não fiz nada com ele.

- Então você viu ele indo embora, não viu ?

- Não vi - seu tom de voz era firme, ele me olhou de canto, e eu nunca mais perguntei. Meses depois a irmã de Edson me telefonou dizendo que ele foi embora para cidade onde nasceu.

Por um momento as coisas que aconteceram fugiram da minha cabeça, eu mal conseguia acreditar, lembrava da carta que ele escreveu para o Gustavo, lembrava-me de Clarice.



Lados Opostos - Parte 2Onde histórias criam vida. Descubra agora