Capítulo 1

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"Os mortos recebem mais flores que os vivos, pois o remorso é mais forte que a gratidão" - Anne Frank.

Hoje é um dia especificamente triste.

O céu está nublado, como se estivesse me lembrando do quanto a minha vida foi de uma paleta de mil e uma cores vibrantes para uma penumbra preta e cinza.

Eu vejo as pessoas ao meu redor chorarem, mas apenas me pergunto se o esforço que elas fazem para que as lágrimas continuem rolando, seria o mesmo esforço que teriam feito para ajudá-la, e me entristece saber que não, elas sequer moveriam um só fio de cabelo para terem a ajudado. Nunca!

Bando de hipócritas do caralho.

Estou sentado em uma cadeira no fundo da igreja há cerca de trinta minutos, ouvindo todas as baboseiras que o padre diz sobre Deus ter perdoado os seus pecados e que ele irá confortá-la enquanto estiver nas terras divinas,

Eu não presto realmente atenção, pois observo algumas pessoas sussurrando coisas no ouvido umas das outras sobre ela.

Os meus olhos se voltam até o caixão no centro da igreja, onde Rebecca está deitada neste exato momento.

Mas não, ela não está com o seu típico sorriso torto, com os olhos brilhantes e bochechas leitosas mastigando algo enquanto joga em seu Nintendo, como sempre costumava fazer em seus dias banais.

Quem está ali é uma pessoa pálida, com as pálpebras coladas para que a sua pele, agora rígida, não os abra e revele o seu olhar opaco, seco, sem vida. Tento não pensar nos algodões que enfiaram em suas orelhas, boca e nariz para que não vaze nenhum líquido de dentro dela. Muito menos em seu interior agora vazio, já que a sua mãe fez questão de doar tudo o que ainda tivesse uso para quem precisasse.

Ao invés dele segurar um Nintendo, ela está segurando um buquê de rosas de variadas cores que a sua mãe fez questão de escolher a dedos.

Ela sequer gostava de rosas.

Tenho vontade de vomitar.

Aquilo que está sendo exposto para todos não é Rebecca, mas apenas uma boneca de pele que todos aqui brincaram até que ela se desgastasse e desistisse de continuar vivendo.

E assim que o padre termina sua missa, todos vão até o caixão se despedir dela.

Eu não me movo, nem mesmo quando todos já foram para lá, o tocaram uma última vez e beijaram sua testa fria como se ela fosse o ser mais precioso do mundo.

É tudo falso demais, superficial demais para alguém que merecia tudo.

Será que eles fazem ideia do quanto a sua pele costumava ser macia e morna? Do quão gentis eram as suas mãos quando me tocavam? Do quanto as palavras que saiam por sua boca poderiam ser capazes de curar o nosso mundo em declínio?

Não, eles não sabem.

Não sabem, pois nunca deram a oportunidade de sentir sua bondade. Uma chance dela mostrar que era capaz.

Eu vejo Heidi Armstrong, mãe de Rebecca, procurando por algo. Ela varre o olhar toda a igreja até que pare na última fileira, na minha direção. Eu não esboço nada, apenas continuo de braços cruzados e com as pernas apoiadas no encosto da cadeira da frente.

Contenho a vontade de esboçar uma careta para ela, pois sequer consigo pensar em algo nessas últimas vinte e quatro horas.

- Freen, venha se despedir... - Ela pede de longe com a sua voz tão costumeiramente suave agora rouca de tanto chorar.

O céu ainda está azul // freenbecky Onde histórias criam vida. Descubra agora