Capítulo 6

1.2K 208 35
                                    

As mãos da coisa sobre ele doíam.

Sempre doíam — mais que o frio congelante, mais do que o choro dos bebês no quarto ao lado, mais do que saber que não sairia vivo dali. Apenas uma vaga lembrança do calor do verão, e de um sorriso resplandecente como o sol, era reconfortante.

Kaori.

Kaori.

Kaori.

O nome significava algo perfumado, algo que entrelaça.

Kaori.

Ele adorava pronunciar aquele nome. Mas até mesmo aquilo havia sido tomado dele. Só restara aquilo dentro dela, que havia entrado por meio de um buraco em sua cabeça após a morte.

Ele dissera para si mesmo que estava tudo bem, que ainda havia algo de Kaori dentro daquele corpo, mas a verdade... A verdade era que, no fundo, ele sabia que era mentira. Aquilo não era Kaori. E era a mãe do seu filho; era o que Kaori deveria ter sido.

Ele havia deixado que aquilo acontecesse com o corpo dela, havia deixado que aquela coisa usasse a pele de sua esposa da maneira como pretendia. O arrependimento e a dor se enroscaram dentro dele, apertando seu estômago e seu coração com garras fantasmas, e então Jin fechou os olhos.

Ele não se importava mais com o que acontecia com ele.

Ele não se importou quando o frio o preencheu.

...

Três horas.

Três malditas horas de trem, mais duas de carro até chegar em casa. Sem contar com as quatro horas que ele havia gastado com as gêmeas no shopping antes de irem para a estação, e a hora extra que eles ficaram na fila para comprar as passagens.

Ao todo, dez horas.

Toji massageou o pescoço e saiu do carro. O taxista saiu e o ajudou a levar as malas até a porta de casa. Maki e Mai brincavam de pega-pega ao redor do carro, rindo alto.

- Vocês vão se sujar! - esbravejou Toji, colocando a última mala no pé na porta. - As roupas são novas, lembram?!

Elas o ignoraram e continuaram correndo. Toji suspirou, exasperado, e puxou a carteira para pagar o taxista, que se despediu deles com um sorriso. Maki e Mai foram correndo até Toji, rindo, e a gêmea mais nova agarrou a perna de Toji.

Maki havia escolhido vários shorts e blusas largas, mas Mai preferira roupas mais femininas, como vestidos e saias, e ambas havia comprado vários tênis e sapatilhas, além de calcinhas — Toji quase morrera de vergonha quando o atendente do caixa passara as peças de roupas coloridas e cheias de desenhos na máquina.

- Não devia ter deixado vocês comerem tanto açúcar - ele resmungou, pegando as chaves.

- Papai... - chamou Mai, apontando para o telhado.  - O que é aquilo?

Toji olhou para ela, e então olhou para onde ela apontava.

A mala que segurava caiu no chão, se abrindo e espalhando todo o conteúdo no chão.

- Entrem em casa. - Falou. - Agora!

...

Toji fechou a porta atrás de si. O choro de Yuji e Megumi, no andar de cima, imediatamente chegou aos seus ouvidos e Toji subiu a escada correndo, com Maki e Mai em seu encalço.

Ele correu até o quarto, abrindo a porta de supetão. Yuji e Megumi, cada um em seu berço, choravam alto. Eles estavam fedendo, e parecia que não comiam a muito tempo.

- Shh - Toji pegou Megumi e o entregou para Maki, e então pegou Yuji e o colocou nos braços de Mai. - Prestem atenção, crianças. Vocês duas vão ficar aqui no quarto enquanto eu procuro o Jin. Eu falei dele, não falei? Eu vou trancar a porta e...

- Queremos ficar com você! - falou Mai.

- O que era aquilo? - Maki perguntou, pálida. - Eu não vi nada! O que era?

Toji afastou a visão da Maldição de sua cabeça e abriu um sorriso. Provavelmente parecia muito falso, pois Mai começou a chorar.

- Ei, ei, ei! Está tudo bem! - Toji passou um dedo na bochecha dela, limpando uma lágrima. - Eu vou buscar o papai enquanto vocês ficam quietinhas aqui. Os irmãos de vocês estão chorando, mas é só colocar a chupeta na boca deles e eles param. Eu volto logo, prometo.

- Promete? - perguntou Maki.

- Prometo - Toji bagunçou o cabelo dela e se levantou. - Volto logo.

Ele saiu do quarto e trancou a porta. O corredor estava absurdamente escuro. Mesmo já estando de noite, não era para estar tão escuro.

Nível 1, pelo menos.

E Toji não tinha nenhuma arma.

Não seria um problema, se ele estivesse armado. Ele havia derrotado uma Maldição de Nível Especial sozinho e somente com um bastão de três partes antes de morrer, mas agora...

Sem armas, sem feitiços, sem um pingo de energia amaldiçoada.

- Vai ser na base da porrada mesmo!

...

Toji caminhou silenciosamente pelo corredor da casa. O quarto de Jin era o último, e era por lá que ele planejava começar a procurar.

Mas, se Jin não fora até os bebês mesmo ao ouvir o choro deles... Toji não queria pensar naquilo. Não queria pensar na possibilidade de ser um viúvo de novo. Não porque ia ter que cuidar das crianças sozinho — ele já decidira a muito tempo que iria ser um homem melhor, um pai melhor —, mas porque ele... Bom, ele ia estar sozinho.

Sozinho. De novo.

Seu coração pesou dentro do peito e Toji girou a maçaneta. A porta abriu-se com um rangido irritante e Toji entrou no quarto. Seus olhos foram até a cama...

- Jin?

Ele não se mexia. A pele estava tão pálida...

- Jin! - Toji correu até ele. Jin estava gelado, e a respiração estava tão fraca... Toji mal conseguia sentir o pulso dele. - Jin, acorda! Jin!

As pálpebras de Jin tremeram e ele abriu levemente os olhos.

- Está me ouvindo? - Toji bateu de leve no rosto dele. - Precisamos ir embora. Vamos pegar as crianças e...

- Devia ter sido eu.

Toji olhou para Jin. Os olhos dele estavam marejados e sem foco, e Toji não sabia se Jin conseguia, de fato, enxergá-lo.

- Eu menti - Jin continuou, rouco. - Minha esposa não foi embora. Ela morreu. Ela... Eu tinha que ir no supermercado naquele dia, mas fiquei preso no trabalho e ela... ela foi no meu lugar e um carro... E-ela desapareceu e voltou no dia seguinte e-e tinha... A-aquela cicatriz na testa! - Jin agarrou o pulso de Toji, as lágrimas escorrendo sem parar pelo seu rosto. - Devia ter sido eu! Devia ter sido eu! Devia ter sido eu! Devia...! Devia...! E-eu...! Eu...!

Jin fechou os olhos, chorando. A cabeça dele tombou para trás e a mão que segurava o pulso de Toji despencou.

- Jin?

Pálido, Toji levou a mão até o rosto de Jin, e então colocou a cabeça no peito dele.

Nada.

Jin não respirava. Não tinha pulso.

Estava... morto.

Casamento por ConveniênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora