A garagem é o melhor pior lugar

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Julieta

Desde que chegamos não tivemos tempo sequer de respirar. Tinha tanta papelada atrasada que a antiga administração deixou pendente que ocupou a semana toda. Eu sou a mais sistemática da companhia, não consegui parar enquanto não etiquetasse tudo por ordem alfabética, data e grau de importância.

Ganhei uma sala só minha, a vista é linda e depois da faxina no estilo Julieta, posso dizer que estou no lugar perfeito. Eu vi essa companhia se erguer, lembro de sonhar em trabalhar aqui quando ela foi fundada e pensa só, estou aqui justo agora em que ela é uma referência mundial.

Trabalhei tanto que perdi a noção da hora todos os dias, mas sequer me importei. Coloquei 3 anos de burocracia em ordem em uma semana, até para escritórios grandes, isso seria trabalhoso. Não deixo de me sentir orgulhosa. Algo me encuca muito aqui, tem peças projetadas para modelos específicos de veículos. Peças não convencionais. Não sei sequer se isso é por meios legais, o que me fez entender de imediato o motivo da urgência para contratar uma equipe de advogados. Empresas que produzem tanta tecnologia podem estar ligadas a cartéis, talvez tráfico de armas, ou sei lá o quê. Mas eu precisava muito desse emprego, tirando que tudo isso não passa de especulações da minha cabeça cansada.

Aperto o botão do elevador que vai me direcionar até a garagem. Pedi um uber a alguns segundos e ele já deve estar quase chegando.

A garagem estava deserta, passava das 23:00 horas e a única coisa que se escuta é o eco dos meus saltos tocando o piso. Por um milésimo de segundo poderia jurar que ouvi alguma coisa, mas deixo isso de lado. Caminho com mais determinação, mas minha atenção se mantém atrás das minhas costas. Acho que estou ficando paranoica.

Acerto com tudo uma parede à minha frente. Mas não uma parede de concreto e sim uma de carne e osso. E músculos. Muitos músculos. Os olhos azuis batem contra o meu rosto no momento em que sua cabeça vira em minha direção. Minha cabeça se obriga a ficar erguida para conseguir olhá-lo, mas ao contrário do que imaginava, o rosto era familiar até demais. Obrigo meus olhos a piscarem para ter certeza de que o cansaço não está me pregando peças.

Julieta: Nathan… - a voz sai num sussurro. Que merda. Poderia ser mais patético esse encontro? Raspo a garganta, obrigando minha voz a surgir - Tudo bem? Boa noite - não sabia mais o que dizer, que tal “oi, quanto tempo” ou “quanto tempo desde que nós trepávamos”, até talvez “sinto muito pelo ocorrido de merda da última vez”, mas não, consegui ser incrivelmente indiscreta - Você virou lixeiro? - solto rápido, fitando os sacos em suas mãos, desviando os olhos dos seus pela 1° vez.

Ele veste um moletom grosso, o capuz cobre sua cabeça de modo a deixar apenas algumas mechas negras selvagens em sua testa. Usa uma calça jeans escura pouco justa ao corpo e sinceramente parece bem maior desde a última vez que o vi.

Ele ignora minha presença, passando por mim. Começa a caminhar até a parte traseira da garagem, abre o container de lixo e arremessa as sacolas dentro. Merda! Ele realmente é o lixeiro. Sinto meu rosto queimar, quando ele vem caminhando em passos lentos, pousando as mãos nos bolsos.

Nathan: Me promoveram essa semana a coleta especial de orgânicos - a voz… é tão parecida e tão diferente ao mesmo tempo. Ele não demonstra humor. Nem aborrecimento. Nada.

Julieta: Eu sinto muito

Nathan: Pelo que, exatamente? Debochar de uma profissão honesta ou sujar o chão que eu acabei de limpar? - arregalo os olhos os mirando no chão, onde uma trilha nítida se faz desde a porta do elevador até onde estou

Julieta: Que merda! Me desculpa mesmo. Olha, eu vou limpar, eu só preciso de um pano e um esfreg…

Nathan: Guarda as suas desculpas para quem se importe com elas, Julieta. O carro na porta deve ser pra você - engulo seco, virando meu rosto. Meu uber - não perde meu tempo com desculpas, tem sempre alguém pra poder limpar a bagunça que você faz - um corte seco é tudo que eu tenho até ele passar por mim, indiferente, me deixando sozinha ali. Sinto minha garganta dar um nó.

Ouço a buzina do uber, que me tira do transe, tiro os saltos devagar, correndo de meia calça pelo chão recém encerado. Dou o endereço e logo estou em casa.

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Permito que a água lave tudo que parece difícil demais de absorver. Eu prometi à mim mesma desde que cheguei aqui que não pensaria nele. Sabia que NY uma hora ou outra traria a lembrança dele para mim, do rosto dele, da voz, do cheiro, do toque…

Eu precisei de todas as minhas forças para esquecê-lo e seguir em frente. Mas ele estava na minha casa. Estava na minha cabeça e em todo lugar em que eu pisava. Paris inteira era feita dele. O que não te contam sobre um coração partido é o que sobra. O que fica para trás. E nesse caso, eu quem fiquei pra trás. Com milhares de pedaços de coração. Meus e dele.

Eu me culpei tanto tempo por tê-lo machucado. Tanto tempo pensando que ir até ele, pedir perdão e pedir para recomeçar, seria a coisa certa a se fazer. Mas eu era ingênua demais e orgulhosa demais. Ele era o amor da minha vida, mas nem só de amor a vida se constitui. Eu precisei crescer e me virar. Quando meus pais se separaram eu pensei que não tinha mais nada em mim que pudesse se quebrar, mas aí Noah foi embora e mamãe também.

Meu pai começou a beber cada vez mais até não conseguir sequer sair de casa. Ele criou uma armadilha em sua própria cabeça, em torno do vício. Depois disso seria impossível puxá-lo para fora e eu, estava me afundando com ele. Sozinha.

Vir para NY significava vida nova, era a cidade que nunca dorme, com dezenas de oportunidades e crescimento certo. Era só psra isso. Mas estaria mentindo se dissesse que ele não passou pela minha cabeça no avião ou nos últimos 7 anos.

Toda vez que eu tentava me relacionar com alguém ou começava algo, simplesmente travava. Minha mente criou uma linha comparativa em que ele sempre era mil vezes melhor do que qualquer experiência. Principalmente na cama. Tive poucas experiências depois dele, e foi bom, um cara ou outro eram deuses. Mas ele… Ele era o diabo na cama… e eu gostava.

Odeio sentir que devo algo a ele agora, pela maneira como reagi. Merda! Sempre que fecho os olhos vejo brilhar intenso o mar azul que chocou no meu rosto quando o vi. Ele ainda tinha os olhos mais azuis que já vi. Ainda tinha o maxilar forte, agora com a barba feita. Continuava grande e intimidador.

Mas não era mais o meu Nathan, e eu provavelmente não o veria de novo. Nunca mais ia descer naquela garagem.

Tudo ou nadaOnde histórias criam vida. Descubra agora