'ninguém especial'

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Destruir. Derrotar. Despistar.

Marília examinou a silhueta vestida de negro de seu parceiro de treino em busca de fraquezas que pudesse explorar. Aquele instante, no calor do enfrentamento, era o único em que liberava os instintos mais básicos e egoistas que passava os dias combatendo. E era bom pra caralho.

Por mais que se esforçasse para negar, no fundo, era igual a seu pai.

Tinha herdado sua maldade.

Ela avançou e partiu para um golpe na cabeça. Quando a espada de seu parceiro de treino subiu para bloquear o golpe, Marília buscou um impulso extra para arquear a arma para baixo. A ponta da espada acertou a lateral do corpo do oponente.

Contato claro. Fim do confronto.

Eles se cumprimentaram com uma reverência e largaram as espadas no chão azul acolchoado antes de se ajoelhar. Marília detestava aquela parte do treino, não porque significa que tinha chegado ao fim, mas porque era hora de tirar a armadura e voltar à vida normal. Naquilo residia a beleza do equipamento. Era capaz de transformar uma pessoa em alguém completamente diferente. De camiseta ela era uma coisa. Com uma armadura preta e o rosto escondido atrás de uma grade de metal ameaçadora, outra. Em seu conjunto, os apetrechos pesavam uns quinze quilos, mas ela sempre se sentia mais leve quando os usava.

Ao remover as camadas de proteção, o ar frio tocou sua pele e a realidade retornou com tudo. Pensamentos pesados se empilhavam como tijolos, transportando-a ao seu estado habitual, de alguém que carrega um fardo. Responsabilidades e obrigações. Contas. Famílias. Um emprego diurno. Outro noturno.

Depois que a aula foi oficialmente encerrada, Marília guardou seu equipamento na prateleira da parede dos fundos. O vestiário era dos mais apertados, com um monte de pessoas aglomeradas, então ela foi se trocar no corredor. Não mostraria nada que metade das mulheres da Califórnia já não tivesse visto.

Duas estudantes deram risadinhas e entraram correndo no vestiário feminino. Ela revirou os olhos enquanto vestia a calça jeans por cima da cueca. Marília Mendonça: prestando serviços a metade das mulheres da Califórnia e agora a mais duas garotas.

— Isso deve nos render meia dúzia de alunas novas na semana que vem. — disse Henrique, seu primo e parceiro de treino.

— Vou deixar para você a tarefa de ensinar os movimentos de ataque para elas. — Marília falou enquanto pegava uma camiseta amarrotada do avesso na mochila e a desvirava.

— Elas vão se decepcionar.

— Sei... — Ela vestiu a camiseta, tentando em vão ignorar o reflexo contrastante dos dois no espelho da parede.

Um monte de garotas preferia Henrique. Com seu cabelo curto e bem cortado e tatuagens cobrindo os braços e o pescoço, parecia um traficante barra-pesada. Olhando para ele, ninguém adivinharia que trabalhava no restaurante da família para pagar a faculdade de administração. Marília, por outro lado, era a imagem de boa moça. O que não era nenhum problema afinal, pagava suas contas -, mas com o tempo a reação das pessoas tinha se tornado maçante. Bom, a não ser pela reação de certa economista. A atração que Maraisa sentia por ela era óbvia, mas ela não a olhava como um pedaço de carne com uma etiqueta de preço. Maraisa a encarava como se não existisse mais ninguém. Era impossível esquecer a maneira como beijara depois que Marília conquistara sua confiança, a maneira como se derretera toda e...

Quando Marília se deu conta do rumo que seus pensamentos tomavam, forçou-se a cair na real. Ela era uma cliente, e tinha lá seus problemas. Não era certo pensar em trabalho naqueles termos.

— Se aparecerem alunas novas, pode deixar que me encarrego de ensinar tudinho. Não ligo. — ofereceu Juliano, irmão mais novo de Henrique. Ele ainda estava de uniforme, praticando ataques em projeção diante do espelho num ritmo acelerado e constante, como uma máquina.

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