Um.
— Só a mulher entre as coisas envelhece.De que modo vou abrir a janela, se não for doida?Como a fecharei, se não for santa?Adélia PradoEnquanto você se chama Estrela, observa, sentada na borda da cama, amoça negra que dorme. Você a conheceu há umas oito horas, na festa daempresa de telefonia. Mas nunca a tinha visto no trabalho. O rosto é bonito, comuma pele que denuncia honestamente os trinta anos, os lábios grossos, e asobrancelha fraca. A cor: há algo de veludo e de café na cor da moça que dorme.A luz que a manhã faz entrar pela janela do apartamento permite que você noteos mínimos pelos que se distribuem aqui e ali. Você vê bem de perto os cabelosfortes e volta a sentir o cheiro que descobriu na festa.
Você tinha bebido todos os drinques, os mais diferentes. Tinha escutadobobagens do Xavier, o gerente da sua seção. Tinha entendido que aquilo tudo oque ele queria dizer era que podiam, você e ele, terminarem na cama, quando elelhe daria uns tapas de chefe. Você sentiu a mão dele, ousada e nojenta, lhe pegarnos braços. Você quis fugir da festa. Mas então viu a moça negra com um guardachuva, fechado claro, mas ela carregava mesmo um guarda-chuva vermelho nomeio da festa. E você disse pra dentro de si mesma "linda", e ficou olhando oslábios da moça fortinha que faz academia, você pensou. "Pra que um guardachuva?". A moça (a mesma moça que você olha agora) sentou ao seu lado. Vocênão sabia quem era, mas ela lhe chamou de colega, e falou mal do Xavier,referindo-se a ele como o escroto. Você perguntou sobre o guarda-chuva, e elao abriu, com uma coragem e um coração surpreendentes. Vocês ficaram umtempo sob o tecido vermelho, vendo as luzes da festa que se intrometiam no queera um mundo particular. Depois, ela fechou o guarda-chuva, e vocês riram ebeberam mais, e a moça lhe convidou a rir do sexo dos homens, do modo comose penduravam nas genitálias e pretendiam, como coisas sem talento, fingir queeram um cargo, um carro, um relógio caro que afinal de contas só marcava ashoras. Vocês não se apresentaram uma pra outra nem quando a festa descamboupara um momento disco. Luzes causaram um frenesi, e o Dj elogiou a diretoriano microfone, enquanto garçons e garçonetes serviram drinques ainda inéditos.Você dançou de tudo, rindo incontrolavelmente até sentir o vômito e ser levadaao banheiro. A moça, esta moça que está sob o lençol agora, lhe fez ajoelhar emfrente à privada e expulsar repetidas vezes o nome do Xavier. E você vomitoutudo até borrar a maquiagem. E a moça lhe ajudou nos retoques. Mas você nãose sentia bem e se despediu sem conseguir caminhar direito. E mais uma vez amoça (esta que agora ressona): ela pediu seu endereço, lhe colocou num táxi ese ofereceu para lhe acompanhar. Você pediu pra segurar o guarda-chuva e viuainda as luzes da cidade e sentiu uma calma nunca antes experimentada. Abriu ovidro e enfiou a cabeça para mergulhar na noite (você falou isso pra moça: queia mergulhar na noite, e a moça, esta que se agarra ao travesseiro agora, abriutambém o vidro e mergulhou junto na noite que você repartia). O taxista dissealgo incompreensível, e vocês duas, quando voltaram pra dentro, como que deum mergulho, respiravam forte. E então foi você (talvez a moça primeiro) quemsentiu aquilo: uma coisa nas mãos, na boca, em toda a pele. Uma vontade debeber aquela pessoa, de sentir cada mínimo pedacinho dela dentro de você. Evocês se beijaram. O taxista olhava o trânsito e olhava vocês duas, certo queolhava, e fazia hahã, mas vocês não conseguiam estancar o beijo. Quer dizer:estancavam, mas era como se vocês fossem peixes, não dois, mas um cardumede peixes de várias espécies e várias cores, e o beijo fosse a água e fosse a vida.Então a moça, esta cujo suor você sente sob as unhas, ergueu a voz e disse aotaxista um outro endereço.
Vocês desceram para a madrugada apressadas, sob o sangue que oguarda-chuva abria contra o sereno. Entraram no prédio aflitas. No elevador, ocalor daquela mulher lhe deixou confusamente feliz, de uma felicidade algo aérea.E então as suas mãos se multiplicaram em vinte e percorreram o corpo dela,tocando curvas, volumes, encontrando frinchas e cheiros outros, cheiros que elatambém tirava de você. E vocês gozaram já ali, nos números que se sucederamentre os oito andares de um elevador. Depois, foram se perseguindo até oapartamento até o quarto até a cama até que o sexo de uma fosse o sexo daoutra e não restasse mais nada senão um riso meio choro sabor de fruta semnome e aromas que se encontram apenas atrás das orelhas lá onde os espelhosnão alcançam lá onde precisamos de outras pessoas para saber que somos queexistimos e pra que nascemos enfim enfim enfim.
Agora você a olha e a entende como uma praia. Você não sabe se ela seapresentou, mas sabe que o nome dela é Rebeca. Você repete o nome fazendoRebeca explodir nos lábios: Rebeca.Rebeca abre os olhos.VOCÊ: Preciso ir, Rebeca.
REBECA: Ir pra onde, Estrelinha?
VOCÊ: Pra minha casa.
REBECA: Que que tem na tua casa?
VOCÊ: Minhas coisas, minha vida.
Só então Rebeca se senta na cama e vê a manhã. O tempo está pesado.Você a abraça e quer dizer algumas coisas, mas não sabe o quê. Você se pegabeijando a cabeça de Rebeca, como se ali se retivesse o que fez de você umamulher que se refez criança que sonha em se fazer mulher.
VOCÊ: Não sou lésbica, entende?
REBECA: Entendo.
VOCÊ: Nunca tinha feito amor com uma mulher.
REBECA: Nem eu. Acho que não se trata disso, Estrela: nós apenas fomos duaspessoas que se amaram. Já tinha sentido isso?
Você entende que Rebeca está dizendo: Nunca senti isso, Estrela. Entãovocê se depara com o medo: uma outra pessoa parece querer lhe entregar umgato, uma caixa de música, uma flor frágil que você deve cuidar. Você se levanta.Veste suas roupas. Vai ao banheiro e se penteia. Não toma banho porque simulapressa, mas no íntimo você entenderá, quando chegar à estação de trem, que naverdade se trata de um roubo: você terá roubado Rebeca com o próprio corpo.
REBECA: Estrela, você não vai nem tomar café?
VOCÊ: Preciso mesmo ir.E é assim que você beija Rebeca do modo mais carinhoso que alguémpode descobrir. Você beija as duas mãos dela. E então você vai escapar detamanha felicidade, quando Rebeca lhe segura por um braço.
REBECA: Leva o guarda-chuva, vai chover.O guarda-chuva.
Não que você tenha esquecido o guarda-chuva, mas écomo se ele fosse o seu nome, isso que só estranhamos quando alguém opronuncia fora de nós mesmos. Mas você não quer, você não pode, você nãoousaria levar nada assim tão visível, tão forma, tão vermelho, tão objeto que seabre e que funciona e depois se perde. Você foge para o elevador. Mas Rebeca pega a sua mão e insiste com o guarda-chuva — e você se rende. A porta doelevador se fecha. Os números rangem.
Você sai do edifício, cruza a avenida e segue, procurando algum sinal desua casa. Aos poucos, vê que está tão distante do que quer que seja, que seriaincapaz de voltar ao apartamento de Rebeca sozinha. Então você entra numparque e se senta num banco maltratado pelo tempo. Está de frente para aestação de trem. E ali você pode chorar. E chora.
Repentinamente a chuva chega. Você tem um guarda-chuva, mas antevê,sem que entenda, o que vai acontecer: você vai abrir o guarda-chuva e ir até aestação e vai comprar um bilhete e vai pegar um trem qualquer e descer em outraestação e procurar por Rebeca a vida toda, sem nunca mais encontrá-la.
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Hipernarrativa B
SpiritüelEnquanto você se chama Estrela, observa, sentada na borda da cama, a moça negra que dorme. Você a conheceu há umas oito horas, na festa da empresa de telefonia. Mas nunca a tinha visto no trabalho. O rosto é bonito, com uma pele que denuncia honesta...