PARTE 09 - EREN

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Sangue, montanhas de corpos e a canção que ecoava no prédio frio de pedra. Ele estava ali, ele era parte daquilo.

— Me ajude, por favor. Dói, eu não consigo me mexer.

Os olhos daquele menino que pedia ajuda após a explosão ainda estavam gravado em sua mente, assim como a canção. Ela nunca parou de ressoar em sua mente desde o momento que receberam a ordem. Segundo as instruções, havia um grupo de resistência de Marley nos guetos de Libério, eles teriam que localizá-los e aniquilá-los. Porém ao chegar ao local encontraram apenas civis, pessoas que assim como eles, eram considerados por Marley a escória, eram apenas expatriados, mendigos e órfãos que se uniam na dor em busca de sobreviver. Eren entendia o que aquelas pessoas passavam, ele, Mikasa e Armin passaram pelo mesmo. Ali o capitão decidiu que era bom montar acampamento, afinal as fontes poderiam estar erradas, entretanto, se estivessem certas, eles poderiam investigar o local e estariam prontos para agir.

Quase dois meses se passaram que eles estavam ali, convivendo com aqueles excluídos, ajudando-os, tendo algum tipo de troca. Eren fez amizade com dois irmãos que eram criados pelo avô depois que o mais velho tentou roubá-lo. Ele sabia que aqueles três não tinham culpa do que Marley fez em Paradis, foi a primeira vez que viu as pessoas de Marley com outros olhos, eles não eram inimigos, pelo menos não todos. Ele já estava nessa cruzada a muito tempo, quantos anos? Nem se lembrava direito. Era estranho, mas agora Eren queria que a guerra acabasse, talvez pedisse dispensa após essa missão. Ramzi e Halil estavam mudando o pensamento que tinha sobre a guerra.

Foram os dois meses que mais fizeram sentir falta de casa, quando via Ramzi e Halil não conseguia evitar de pensar em Armin e Mikasa na ilha, distante do continente. Eles tinham uma vida simples, mesmo em meio a guerra, ali eles conseguiam ter esperanças. Observá-los ajudava a Eren a continuar, faltava pouco, ele já havia pedido a dispensa, já passara e muito o tempo de servir, agora entendia que seu lugar era em casa, não tinha contra quem se vingar, do outro lado também havia um povo que sonhava com a paz. A guerra era política dos graúdos, eles apenas sofriam as consequências.

Mais de uma vez participou de jantares com os moradores da vila, mais de uma vez ouviu suas histórias a beira da fogueira, tolo como era, Eren acreditava que a paz estava próxima e se permitiu aproveitar esses momentos, breves, mas que ficaram na memória de que nem todos ali eram seus inimigos. Ele não precisava mais lutar e poderia voltar a ser um jovem, quem sabe procurar um emprego e viver ao lado de seus amigos. Mas momentos de paz em meio a guerra areia correndo em uma ampulheta, passam mais rápido do que se pode perceber quando se der conta, o tempo acabou.

Os tiros foi a primeira coisa que ouviu naquela noite, Floch era um dos responsáveis pela vigia daquela noite, ele estava descansando com os demais quando o barulho chegou aos seus ouvidos. Alerta, pegou sua arma e se levantou, estavam sob ataque? Marley havia feito um movimento? Quando chegou ao local do som, a imagem era pior do que imaginava. O avô de Ramzi e Halil estava caído ensanguentado, seu corpo mutilado pela força dos tiros, os meninos espancados e feridos, aterrorizados.

— Mas que porra está acontecendo?

— Eren, esses bandidinhos estavam passando informações para o inimigo.

— Mentir... — A voz de Halil foi calada com um tiro enquanto os gritos de Ramzi dominavam o ambiente, misturando com som de mais tiros. Eles eram como eles, mas mesmo assim Floch se achou no direito de matá-los.

— Por quê?

— São nossas ordens, acabar com o inimigo que vive aqui no gueto, passamos tempo demais brincando de casinha aqui soldado, vamos pegue sua arma e vá até a igreja, lá estão reunidos mais marleyanos. Vamos acabar com essa raça. — Eren não conseguia se mexer, não acreditava no que estava acontecendo. Eles comeram ao seu lado nas últimas semanas, eles eram apenas moradores do vilarejo, ele mesmo procurou em cada canto por sinais de soldados inimigos.

A partir daquele momento tudo retorna sempre em flash. Alguém jogou uma arma em sua mão, foi empurrado em direção a igreja. A canção do coro ainda estava ecoando quando se aproximou, ele conhecia a canção, sua mãe sempre cantava aos domingos na missa e sempre quando estava cuidado dos afazeres. Eren sentia que sua mente iria quebrar se continuasse, se seguisse em frente. Floch fora o primeiro a entra e mandou que as crianças continuassem a cantar.

— Mais alto se não Deus não ouvirá suas preces! Entoem seus hinos mais alto! — Ordenou o ruivo as crianças do coral, que sem alternativa continuaram e aumentaram sua voz. — Todos vocês, armas a posto. Preparar para atirar. — Para nós a voz de Floch era baixa e firme. Todos miramos, a nossa frente crianças. Eren não queria, podia sentir a náusea subindo em sua garganta, o ácido gástrico que queimava e ameaçava vir em jato no momento em que os tiros começaram.

Ele não tem certeza de quando o coro mudou de canção paz para gritos e caos. Só o sangue que descia do altar, da pilha de corpos vestidos de brando e agora maculados de vermelho, do cheiro metálico e salgado do sangue, do altar destruído por rajadas de tiros. Sua mente ficou tudo preto, ele se tornava um assassino assim como aqueles que mataram sua mãe, assim como aqueles que mataram os pais de seus amigos, assim como aqueles que um dia jurou vingança. Ele era igual, um soldado cumprindo ordens para destruir a paz e a vida, ele não merecia voltar para casa, ele não merecia um lar. Mesmo no escuro as vozes infantis ainda ecoavam:

Longe e além das estrelas há

Um lugar onde todo o amor

Toda a bondade que poderíamos ter ainda reside

Mas nós escolhemos a vida longe da luz

Ao abrir os olhos teve dificuldade de identificar onde estava. Sua mente estava confusa, não tinha certeza do que era real ou pesadelo, lembrança ou realidade.

— Graças a Deus você acordou Eren. — A voz de Armin o traz de volta a realidade, ele estava em casa, se é que poderia chamar assim. Ele estava quebrado. Não apenas fisicamente, mas como psicologicamente, mas preferia fingir que nada estava acontecendo. Era a única forma de seguir em frente, fugindo dos seus atos.

— Eren, você precisa voltar a comparecer a terapia. — Hange também estava ali. A cabeça pesava duas toneladas, não conseguia formar uma frase. — Sabe que não vai conseguir sozinho.

Tentou sentar-se, mas mãos o impediram e sem nem mesmo utilizarem força, toque suave demais, mas ele não merecia isso, carinho, compaixão são para heróis, ele era um terrorista. Afastou como pode as mãos que o prendiam, mas elas ficaram mais firmes o fazendo buscar a dona daquelas mãos, será que ela não sabia que ele não merecia isso? Mas os olhos de Mikasa estavam determinados, ela não iria deixar ele se mexer, não deixaria se levantar, não deixaria fugir.

—Eu não preciso...

— Não precisa? Você teve uma crise! — Armin começou, droga, as broncas do Armin eram tudo que não precisava, queria álcool, era o que iria acalmar sua mente.

— Só preciso de uma dose.

— Nem uma dose. Sério, eu vou socar sua cara caso tente beber e estou falando muito sério. — Os olhos azuis do amigo estavam escuros de um misto de raiva e preocupação. Eren continuava sendo um fardo para os amigos, Armin em breve vai se casar e no lugar de estar vendo os preparativos estava aqui, com ele, no meio de suas trevas particulares.

Fechou novamente os olhos, será que se fingisse dormir eles iriam embora? Eren sabe que não, seus amigos continuam ali, mesmo que ele não mereça, mesmo que ele tenha cometido os piores crimes, eles continuam o amando e deteste isso, seria mais fácil cair em autodestruição se não tivesse ninguém que se importasse, mas ele tem e não sabe o quando isso é uma benção ou maldição.

— Eren, por favor, fala com a gente. — Implora Mikasa.

Ele quer falar, ele quer contar, mas tem vergonha, tem medo do que fez, do que seus atos tragam para a vida de seus amigos e consegue apenas chorar. Deixando três pessoas que se importam de mãos atadas e atordoadas, como ajudar quando ele não se abre, como ajudar quando ele quer a morte, como ajudar quando tudo que quer é que alguém apague seus pecados como ele apagou a vida daquelas crianças.

— Eu deveria estar morto.

É a única frase que consegue dizer, é o único sentimento que consegue expressar e apenas deixa que as lágrimas venham para afogar seu peito cheio de dor e remosos. Ele não é mais o Eren das lembranças de Armin e Mikasa, ele é apenas uma casca do que foi no passado, uma réplica quebrada do filho de Grisha e de Carla.

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