Está decretado.
Hoje não é o meu dia.
Na verdade a muito tempo não vem sendo.
Acredito que tudo virou de ponta cabeça em minha vida, quando perdi minha mãe.
Ela faleceu a muitos anos atrás, eu tinha apenas dois anos de idade e desde então, preciso conviver com a tristeza do meu pai e a amargura que ele tem pela vida.
Mas não pensem que ele é uma homem ruim, que destila ódio por onde passa. Pelo contrário, mesmo com todos os seus demônios, ele consegue me fazer enxergar amor em cada gesto.
Papai sempre fez o possível para que eu não sentisse a falta da minha mãe. Coisa que até hoje é impossível, mas seu amor amenizou muito o fardo de crescer sem ela. Lamento não me lembrar do seu rosto, da sua voz ou qualquer carinho. Nem mesmo fotos eu tenho para alimentar minha memória, nunca entendi o fato de não ter nenhum objeto que me lembrasse dela, mas meu pai simplesmente se livrou de tudo, para que as lembranças não nos machucassem e eu respeitei.
A única imagem que eu posso admirar, é a foto que enfeita seu túmulo.
Em todo aniversário de vida e de morte, eu vou até o cemitério com flores e lamentações. Passo horas sentada em frente aquele túmulo frio, chorando a falta do que eu nunca tive. Observando seu rosto sereno, bonito. Seus olhos expressivos e seu cabelo escuro como o meu.
Eu sinto saudades todos os dias.
Desde que eu passei a entender o significado da morte, eu frequento o cemitério. Meu pai nunca me proibiu, mas nunca me acompanhou. Para que eu não fizesse isso sozinha, minha eterna babá sempre esteve comigo.
Nana é como minha mãe, me amou e cuidou desde o momento que eu nasci e sempre está comigo, segurando minha mão, enxugando minhas lágrimas e me dando o colo que eu preciso.
Joana e papai são a minha base familiar, meu apoio e torcida para realização dos meus sonhos. Eles me deram muito mais que um lar tranquilo para crescer, me deram amor e por isso que sem eles, eu não saberia viver.
Quando me formei em medicina, os dois estavam no banco da frente me aplaudindo e sorrindo orgulhosos para mim. Eu sempre desejei ser médica como meu pai e ter o diploma em minhas mãos foi o início de um grande sonho.
Me especializei em pediatria, foi anos de estudos, dedicação e finalmente eu consegui o meu reconhecimento. Me tornei a cirurgiã chefe da minha especialidade. Tenho o meu andar no hospital e me sinto muito feliz em estar rodeada dos meus pequenos pacientes.
Tudo em minha vida poderia ser perfeito, mas não é.
Acordei com os gritos de dor, vindos do quarto do meu pai. Meu coração aperta ao notar sua piora, dia após dia.
O câncer estar o corroendo por dentro e sua recusa em aceitar o tratamento está dificultando sua qualidade de vida. Meu pai desistiu de viver a muitos anos e agora só está esperando a morte.
Mesmo que isso signifique destruir meu coração.
Seu ódio pela vida o impede de lutar, nem que seja por mim, para não me deixar sozinha. E por mais que eu tente aceitar esse fato, eu sofro e choro diariamente.
Papai tenta me fazer entender suas escolhas, aceitar que a morte para ele é um presente, mas eu não consigo me imaginar sem ele. Eu já tenho tão pouco.
Como posso aceitar perder meu porto seguro, o homem que eu mais amo no mundo?
Como posso aceitar perder o motivo do meu riso, o motivo que me faz voltar para casa.
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Vidas traçadas
RomansaAté onde o amor pode te levar? Até onde o amor pode suportar? Uma ferida do passado pode acabar com seus sonhos, pode espalhar sofrimento e assim causar estragos que talvez não tenha perdão. Mas não podemos saber até onde esses estragos vão, até pa...