Overture

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Eu poderia estar na minha cama agora. Eu deveria estar lá, na verdade. Segura e aquecida embaixo das minhas surradas, porém amadas cobertas. Protegida pelas paredes pintadas com aquele tom de vinho que a minha mãe detesta. Poderia estar assistindo qualquer porcaria que passa na televisão a essa hora só esperando o sono chegar. Eu poderia estar plantando nabos também. Ou dando cambalhotas no meio da rua. Eu poderia estar em qualquer lugar fazendo qualquer outra coisa, mas eu estou a sei lá quantos mil pés de altura, presa em um avião do lado de um cara que faz roinc roinc quando ronca.

Quantos decibéis o ronco desse homem tem? Imagino que vários já que ainda estou ouvindo esse grasno mesmo com os abafadores de ruído nos ouvidos. Não vai rolar dormir com esse barulho mesmo que sejam três horas da manhã, pelo menos no Brasil. Pego meu celular e troco os abafadores pelo fone.

Viro-me bruscamente para o lado da janela, dando as costas para o cara roncador que se mexe um pouco com o meu movimento. Eu odeio aviões. Está um breu, com apenas alguns pontos de luz vindo de poltronas onde passageiros tentam se entreter com os filmes disponibilizados pela companhia aérea. A maioria dorme como o meu colega aqui do lado, mas ninguém ronca como ele.

Cubro a minha cabeça totalmente com o cobertor que eu surrupiei da minha mala de mão e começo a fazer o que eu estava evitando fazer desde a hora que eu entrei no carro com a minha família rumo ao aeroporto: ver as minhas mensagens.

"Eu sei que você me odeia agora, mas isso vai passar. Nós somos uma dupla, lembra? Aconteça o que acontecer você sempre será a minha garota."

Mal termino a última linha e já a apago. Desligo o celular com força e ao tatear a minha calça em busca do bolso para guardá-lo percebo que minhas mãos estão tremendo. O homem ao meu lado solta um grunhido enquanto dorme e eu fecho os olhos para tentar dormir.

***

Quando eu era pequena sonhava com Londres. Os prédios antigos sempre me pareceram bonitos, o clima cinzento e fechado parecia combinar comigo já que sempre fui insegura e um pouco tímida. O Big Bang, Hyden Park, a London Eye... Tudo parecia tão distante que eu cheguei a ficar um pouco obcecada com a cidade.

Agora eu estou aqui, dentro de um táxi vendo o motorista dirigir do lado direito do carro e tendo náuseas. Sinto-me como se tivesse entrado em um vídeo game onde tudo é ao contrário. Para melhorar, não consegui dormir absolutamente nada no avião, como já era esperado com o roinc roinc do meu lado, e a última vez que eu comi foi no aeroporto de São Paulo, mais de 14 horas atrás.

Apesar dos pesares eu consigo sentir uma pontinha de excitação. A minha vida não está se saindo como o planejado e ficar um ano em Londres não estava exatamente na minha agenda até alguns dias atrás, mas um intercâmbio na Inglaterra é uma coisa boa. Ou não?

— É aqui. — O motorista olha para mim pelo retrovisor e eu já vou caçando a minha carteira para pegar o dinheiro da corrida.

Perco-me um pouco com todas aquelas notas com as fotos da rainha Elizabeth e o colega taxista bufa impaciente. Já tinham me avisado que paciência não é uma virtude da maioria dos ingleses.

— Obrigada. — Estendo o dinheiro e tento não me contrair ao me ouvir falando inglês. Não vou me acostumar nunca.

O moço sai do carro, pega as minhas malas do porta-malas, resmunga um tchau e arranca com o táxi. Eu fico ali, parada, analisando o prédio que vai ser minha casa durante aquele ano.

É pequeno com apenas cinco andares. Um portão preto meio enferrujado que vai até a minha cintura separa o terreno do edifício e a calçada que é onde estou parada bem turisticamente enquanto outras pessoas simplesmente passam por mim. As paredes externas são cor de palha, mas com o aspecto envelhecido. Fico observando as janelas da fachada por alguns segundos. Algumas têm vasos de rosas e orquídeas, outras absolutamente nada. Espero que a minha tenha flores.

Pego as minhas malas e atravesso o portão rumo ao desconhecido.

***

— Como eu vou aprimorar o meu inglês com você do meu lado falando português 24 horas por dia?

Estou no meu novo quarto - que por sinal, tem uma janela com flores com vista para a rua da frente - praticamente jogando de qualquer jeito as minhas roupas no armário de madeira. Penduro um vestido florido no móvel e me viro para a garota sentada na minha nova cama.

Diferente de mim que tenho a pele em um tom bronzeado e cabelos castanhos ela é tão branca que poderia facilmente se passar por uma britânica. Mas seus cabelos vermelhos e seus olhos verdes são originalmente brasileiros.

— Como você é ingrata, Lua! — ela resmunga, cruzando as pernas em posição de índio sobre os meus lençóis e puxando uma de minhas malas mais pra perto. — Nem sei por que concordei em te abrigar aqui por um ano.

— Você concordou por que você está dura e precisa de alguém pra rachar o aluguel desse apartamento em Londres que deve custar o olho da cara, Poliana!

Eu sorrio e volto à atenção as minhas roupas. Trouxe apenas duas malas, mas elas parecem estar dando cria. Poliana e eu estávamos a horas desempacotando as coisas.

— Ou talvez eu quisesse fazer um favor pra minha prima e ter um pouco de companhia! – Polly me olha ofendida. — Mas uma ajuda no aluguel vai ser uma mão na roda, eu confesso — ela acrescenta dando um sorrisinho cínico.

— Sei. — Meu tom de voz é uma mistura de incredulidade e cansaço. Despejo algumas peças em uma gaveta e me arrasto até a cama, me jogando ao lado da garota. — O dinheiro que eu trouxe não vai dar pra um ano.

Enfio a cabeça no travesseiro.

— Relaxa. — Escuto a voz dela bem distante. — Você vai trabalhar comigo, lembra?

— Hum. — Viro-me de barriga para cima ainda com os olhos fechados. Sinto como se fosse cair no sono a qualquer instante. — Com o que você trabalha mesmo?

Obviamente eu sei com o que ela trabalha, mas não sei porquê acho engraçado toda vez que ela começa a falar a respeito. Ouço Poliana levantar da cama e andar até o guarda-roupa onde provavelmente, deve ter guardado as minhas últimas peças. Não consigo abrir os olhos pra confirmar se foi isso mesmo e também não estou muito interessada.

— Já falamos sobre isso milhares de vezes! Trabalho em um buffet muito famoso aqui em Londres que só faz eventos para pessoas importantes.

Consigo distinguir um pouco de orgulho na voz dela.

— Ah é. — Quero demais parecer animada, mas não consigo já que estou com essa sensação de que um avião me atropelou. — Você já trabalhou para algum famoso? Tipo a festinha de aniversário do cachorro da Keira Knightley?

Algo macio acerta o meu rosto. Solto uma risada fraca e jogo a almofada no chão.

— Tonta. Mas já que você tocou no assunto, semana passada eu tive que cobrir uma recepção oferecida pelo Paul Burrell.

Fico um minuto em silêncio vasculhando o meu cérebro atrás de qualquer informação que me faça lembrar desse homem.

— Quem é esse cara?

— Como assim quem é esse cara? É o autor da biografia da Lady Di, "Uma Questão de Honra".

Abro os meus olhos lentamente e vejo que Polly está arrastando as malas, agora vazias, para debaixo da minha cama.

— Esse cara não é famoso!

Ela se endireita e me encara totalmente incrédula.

— Esse cara — ela repete desdenhosa — foi lacaio da rainha Elizabeth por anos além de mordomo e amigo íntimo da princesa Diana!

Pisco algumas vezes também a encarando.

— Continua não sendo famoso.

Polly simplesmente me olha sem expressão nenhuma e sai do quarto. Eu entro embaixo das cobertas, rindo, mas desmaio de sono um pouco depois.




De Lua, com amorOnde histórias criam vida. Descubra agora