Espelhos

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A todas as pessoas que saem de casa com um sonho a se cumprir.

New York, 2022

Charlotte olhava sua imagem pelo espelho do camarim com uma iluminação fraca, onde algumas lâmpadas permaneciam queimadas desde sua última apresentação. Ela sentia o mesmo vazio que ainda não havia preenchido dentro de si. Por mais que ela ocupasse cada segundo que tinha do seu tempo, com sua pressa em viver, ainda não havia encontrado o que nem ela mesma sabia que estava procurando. Essas sensações sempre causavam um pouco de angústia quando ela via sua imagem ali refletida. Deveria ser ansiedade pré palco, pensava.

Aos dezoito anos, ela havia pegado a caminhonete que seu pai havia lhe dado, o violão velho do avô falecido e partido em busca do seu sustento. Cantava desde criança e sabia que esse dom pagaria suas contas, independente de fama.
Hoje, aos 22 anos, já conseguia pagar o aluguel do minúsculo apartamento em Nova York, comer e abastecer sua caminhonete para rodar o país. Pelo menos até onde o seu velho companheiro conseguisse a levar sem dar defeito.

- Cinco minutos, Chao! - Newman, o dono do bar daquela noite ali no Queens, avisou para que ela finalizasse os retoques e iniciasse o seu show. Show não era a palavra mais apropriada para o que ela fazia, pensava. Apresentação combinava melhor com sua voz e violão.
Normalmente ninguém se importava para o que ela cantava entre covers e composições próprias, desde que suas cervejas estivessem geladas e suas companhias fossem agradáveis. As pessoas só queriam terminar o dia com bebida, conversa e música ao fundo.

No começo, Charlotte se chateava um pouco com essa realidade mas depois aprendeu que pagar suas contas era mais importante que sua vaidade e autoestima. Não conseguia se ver fazendo outra coisa na vida. Gostava da liberdade de estar cada dia em um lugar diferente por meio do seu dom.

- Eu já vou, obrigada! - passou seu batom vermelho fechado, que era uma das poucas coisas que usava no rosto, arrumou sua roupa de estilo meio boho, meio cowgirl, pegou o violão e subiu no pequeno palco.

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Do outro lado da cidade, em Manhattan, Benjamin se olhava no espelho enorme fixado em uma das paredes de seu escritório luxuoso. Havia acabado uma reunião, mais uma, onde pessoas sedentas por dinheiro escolhiam mais um prédio antigo para jogar no chão e construir outro empreendimento moderno e conceitual.

No princípio, Ben era nutrido pela mesma ganância. Comemorava cada demolição que era autorizada e fazia questão de estourar champanhe na inauguração dos seus empreendimentos incríveis. Hoje, no entanto, nada daquilo fazia mais sentido.

Herdou a pequena construtora do pai e a transformou em uma gigante no mercado imobiliário, com suas ações nas alturas, literalmente. Era aclamado em Wall Street. O pai, todavia, nunca gostou do perfil agressivo que Benjamin havia adotado desde os vinte anos a frente dos negócios. Mas não tinha mais voz ativa com sua doença terminal. Para não sentir a dor de estar perdendo o seu pai, Benjamin se afundava cada vez mais em trabalho, jantares, festas e viagens. Conheceu o mundo, novas culturas, casou, separou, se envolveu com as mulheres que estavam nas capas das revistas mais renomadas do país, até que aquilo não mais o preenchesse. Ele agora era um homem de 38 anos e não havia encontrado nada de valor real em sua existência.

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Algumas horas depois, Charlotte terminava sua apresentação, recebendo o pagamento e ainda levando uma pequena bronca por causa do tapa que precisou dar na cara de um engraçadinho que tentou agarrá-la, enquanto ela ia para o camarim. Isso era comum, aliás, e ela levaria quantas broncas tivesse que levar mas não aceitaria um bêbado nojento encostando nela.

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