Eu tinha esquecido de fechar a cortina e de cerrar as venezianas,
como sempre fazia. Por consequência, quando a lua cheia e brilhante –
pois a noite estava linda – surgiu no espaço de céu em frente à janela e me
olhou através das vidraças descobertas, seu brilho glorioso me despertou.
Acordando no meio da noite, abri os olhos para o disco branco prateado,
claro como cristal. Era lindo, mas solene demais. Arqueei o corpo e
estendi o braço para fechar a cortina.
Meu Deus! Que grito horrível!
A noite, o seu silêncio, a sua calma foram invadidos por um grito
selvagem, agudo, estridente, que correu de ponta a ponta a mansão de
Thornfield.
Minha pulsação cessou, meu coração parou de bater, o braço que
eu estendera ficou paralisado. O grito parou e não se reproduziu. De fato,
quem quer que tenha emitido aquele berro medonho não poderia repeti-lo:
nem o condor de asas longas dos Andes poderia, duas vezes seguidas,
emitir um grito de tal ordem do seu ninho nas nuvens. A coisa que emitira
esse horror teria que descansar antes que o pudesse repetir.
O grito viera do terceiro andar, pois passou pelo alto. E do mesmo
lugar – sim, do quarto que ficava justo em cima do meu – ouvia-se agora
um ruído de luta. Um combate mortal, a julgar pelo barulho. E uma voz
meio sufocada gritou:
– Socorro! Socorro! Socorro! – gritou três vezes, rapidamente. –
Ninguém me ouve?
E então, enquanto continuava aquele barulho selvagem de
tropeços e arrastar de pés, distingui através das tábuas e do reboco do teto:
– Rochester! Rochester! Pelo amor de Deus, venha logo! Uma porta se abriu, alguém correu apressado pelo corredor. Outro
passo retumbou no piso do quarto acima de mim e qualquer coisa caiu.
Então fez-se silêncio.
Eu vestira algumas roupas, embora todo o meu corpo tremesse de
pavor. Saí do meu apartamento. Os hóspedes estavam todos acordados: em
cada quarto havia exclamações e murmúrios de terror. As portas se
abriram, uma por uma. Todos espiavam para fora e o corredor encheu-se.
Tanto as damas quanto os cavalheiros tinham se levantado, e ouviam-se
exclamações confusas por todo o lado:
– Oh! O que é isso?
– Quem está ferido?
– O que aconteceu?
– Peguem uma lanterna!
– Foi algum incêndio?
– Tem ladrões na casa?
– Para onde devemos correr?
Se não fosse a luz da lua estariam em completa escuridão.
Corriam de um lado para outro. Amontoavam-se. Algumas soluçavam,
outros tropeçavam. A confusão era irremediável.
– Onde diabo se meteu Rochester? – gritou o Coronel Dent. – Não
o encontrei na cama.
– Estou aqui! – gritou uma voz em resposta. – Fiquem todos
calmos! Já estou indo.
Então abriu-se a porta no final do corredor e Mr. Rochester
avançou, carregando um candeeiro. Havia acabado de descer do terceiro
andar. Uma das damas correu direto para ele e agarrou-o pelo braço: era
Miss Ingram.
– O que aconteceu de tão terrível? – disse ela. – Fale! Diga logo
de uma vez o pior!
– Mas não me derrubem nem me estrangulem! – ele replicou.Além de Miss Ingram, também as duas senhoritas Eshton
agarravam-no e as duas matronas, vestidas em enormes roupões brancos, o
abalroavam como navios em velocidade máxima.
– Está tudo bem!... Tudo bem! – ele gritou. – É apenas um ensaio
de “Muito Barulho por Nada”... uma coisa à toa. Senhoras, afastem-se, ou
vou ficar furioso.
E ele realmente parecia furioso. Seus olhos negros emitiam
centelhas. Fazendo um esforço para se acalmar, acrescentou:
– Uma criada teve um pesadelo. Foi só isso. É uma pessoa muito
excitável e nervosa. Sonhou que estava vendo uma aparição, um fantasma,
algo desse tipo. E teve um ataque de medo. Agora, por favor, gostaria que
todos voltassem aos seus quartos, pois enquanto a casa não estiver
tranquila, ela não poderá ser auxiliada. Cavalheiros, tenham a bondade de
dar o exemplo às damas. Miss Ingram, tenho certeza que não hesitará em
demonstrar sua superioridade em relação a esses terrores vãos. Amy e
Louisa, voltem para os seus ninhos, como o par de pombinhas que são.
Senhoras (dirigindo-se às matronas), certamente pegarão um resfriado se
ficarem por mais tempo neste corredor frio.
E assim, alternando persuasão e comando, conseguiu que todos
voltassem aos seus respectivos aposentos. Não esperei para ser mandada
de volta ao meu, retirei-me sem ter sido notada, como viera.
Mas não fui para a cama. Ao contrário, comecei a vestir-me
cuidadosamente. Os sons que escutara depois do grito, os apelos
murmurados, provavelmente foram ouvidos apenas por mim, pois vinham
do quarto de cima do meu. No entanto, haviam me assegurado que não
fora o grito de uma criada que espalhara o terror por toda a casa. E que a
explicação de Mr. Rochester era apenas uma invenção destinada a acalmar
seus hóspedes. Vesti-me para estar pronta para qualquer emergência.
Depois de vestida, sentei-me por longo tempo junto à janela, olhando para
os prados silenciosos e os campos prateados, esperando algo que nem eu
sabia o que era. Achava que alguma coisa devia se seguir ao estranho
grito, à luta e ao pedido de socorro.
Mas não: o silêncio retornou. Todos os murmúrios e os
movimentos gradualmente cessaram, e dentro de uma hora Thornfield Hall estava de novo tão silenciosa quanto um deserto. O império do silêncio e
da noite retomara seu poder. Enquanto isso, a lua declinava. Estava para se
pôr. Cansada de ficar sentada no frio e no escuro, pensei em deitar-me na
cama, vestida como estava. Deixei a janela e caminhei sem ruído sobre o
tapete. Quando parei para tirar os sapatos, ouvi uma mão cautelosa bater
suavemente na porta.
– Precisam de mim? – perguntei.
– Está de pé? – perguntou a voz que eu esperava ouvir, isto é, a do
meu patrão.
– Sim, senhor.
– Está vestida?
– Sim.
– Saia em silêncio, então.
Obedeci. Mr. Rochester estava parado no corredor segurando um
lampião.
– Preciso de você – ele disse. – Venha por aqui, devagar e sem
fazer barulho.
Meus sapatos eram macios, podia caminhar sobre o chão
atapetado com a suavidade de um gato. Ele deslizou pela galeria, subiu as
escadas e parou no escuro e baixo corredor do fatídico terceiro andar. Eu o
havia seguido e estava ao seu lado.
– Tem uma esponja em seu quarto? – perguntou-me num sussurro.
– Sim, senhor.
– Tem alguns sais, sais voláteis?
– Sim.
– Volte e vá pegá-los.
Voltei, peguei a esponja no lavatório, os sais na minha gaveta, e
retornei. Ele esperava, com uma chave na mão. Aproximou-se de uma das
pequenas portas pretas e colocou-a na fechadura. Parou e novamente se
dirigiu a mim.
– Não desmaia quando vê sangue? – Acho que não, nunca pude experimentar.
Enquanto lhe respondia, senti um tremor. Mas não fiquei fria nem
assustada.
– Apenas me dê a mão – ele disse. – Não podemos arriscar que
desmaie.
Coloquei meus dedos nos dele.
– Quentes e firmes – foi a sua observação.
Girou a chave e abriu a porta.
Vi um quarto que já tinha visto antes, quando Mrs. Fairfax me
mostrara a casa. Era forrado de tapeçarias, mas as tapeçarias agora
estavam parcialmente erguidas e via-se uma porta que antes ficara
escondida. Estava aberta, e uma luz brilhava lá dentro. Ouvi um som de
resmungos e ranger de dentes, como o de um cão. Mr. Rochester, largando
o lampião, disse-me:
– Espere um minuto.
E entrou no apartamento. Uma explosão de riso saudou sua
entrada. Barulhento no início, e terminando naquele grito de duende – há!
há! há! – característico de Grace Poole. Então ela estava lá! Ele fez algum
tipo de acerto sem falar, embora eu ouvisse uma voz baixa que se dirigia a
ele. Então saiu e fechou a porta atrás de si.
– Aqui, Jane! – disse.
Caminhei até o outro lado de uma enorme cama que, com seus
dosséis abaixados, escondia a maior parte do quarto. Uma cadeira de
balanço estava perto da cabeceira e havia um homem sentado nela, sem o
casaco. Estava imóvel, de cabeça baixa e com os olhos fechados. Mr.
Rochester segurou o candeeiro sobre o seu rosto. Reconheci a face pálida e
parecendo sem vida do estranho, Mason. Vi também que um lado da
camisa e um braço estavam ensopados de sangue.
– Segure o candeeiro – disse Mr. Rochester.
Peguei-o e ele foi buscar uma bacia de água no lavatório.
– Segure isto – disse ele. Obedeci. Mr. Rochester pegou a esponja, mergulhou-a na água e
umedeceu a face que parecia a de um cadáver. Pediu a minha garrafinha de
sais e levou-a às narinas. Mr. Mason abriu brevemente os olhos e gemeu.
Ele então desabotoou a camisa do ferido, cujo braço e ombro estavam
cobertos por uma bandagem. Passou a esponja no sangue, que gotejava
rapidamente.
– Há algum perigo imediato? – murmurou Mr. Mason.
– Não! Que nada!... É só um arranhão. Não se entregue assim,
homem: aguente firme! Eu mesmo vou buscar um médico para você:
estará pronto para ser removido amanhã. Jane? – ele continuou.
– Senhor?
– Preciso deixá-la neste quarto, em companhia deste cavalheiro
por uma ou talvez duas horas. Assim que voltar a sangrar, limpe o sangue
com a esponja. Se ele desmaiar coloque o copo com água nos seus lábios e
dê-lhe o frasco de sais para aspirar. Não deve falar com ele em hipótese
alguma. E... Richard, você vai arriscar sua vida, se falar com ela. Se abrir a
boca, mexer os lábios, ou fizer qualquer movimento... não respondo pelas
consequências.
O pobre homem voltou a gemer. Parecia que não ousava se mexer.
O medo, da morte ou alguma outra coisa, quase o paralisavam. Mr.
Rochester pusera em minha mão a esponja ensanguentada, e comecei a
usá-la como o vira fazer. Ele me olhou por um segundo e disse:
– Lembre-se! Nada de conversa!
E deixou o quarto. Senti uma estranha sensação quando a chave
girou na fechadura e parei de ouvir o ruído dos seus passos que se
afastavam.
E aqui estava eu agora, no terceiro andar, presa numa das suas
celas misteriosas. Em torno de mim, a noite. Em minhas mãos e ante meus
olhos, um espetáculo sangrento. Uma assassina separada de mim apenas
por uma simples porta. Sim! Isso era apavorante!... O resto eu podia
suportar. Mas tremia ao imaginar Grace Poole investindo contra mim.
Devia manter o meu posto, todavia, zelar por aquela figura
fantasmagórica, aqueles lábios arroxeados e imóveis, proibidos de se mover... aqueles olhos ora abertos, ora fechados, ora vagando pelo quarto,
ora fixando-se em mim, sempre embotados de horror. A todo momento
tinha que mergulhar a mão na bacia cheia de água avermelhada e lavar o
sangue que escorria. Tinha que ver a luz do candeeiro extinguir-se aos
poucos enquanto precisava dele, e as sombras envolverem as antigas
tapeçarias à minha volta que pendiam escuras sobre a vasta e antiga cama,
e tremulavam estranhamente sobre as portas de um grande armário
fronteiro. Suas portas, divididas em doze painéis, ostentavam em terríveis
pinturas as cabeças dos doze apóstolos, cada uma em sua própria moldura.
No alto, sobre elas, elevava-se um crucifixo de ébano com um Cristo
agonizante.
Naquela luminosidade cambiante, no brilho hesitante que se
espalhava aqui e ali, ora era o médico barbudo Lucas que inclinava a testa;
ora eram os longos cabelos de São João que ondulavam; ou então a
diabólica face de Judas que saía do painel e parecia ganhar vida,
ameaçando transformar-se na forma do arquitraidor – o próprio Satã.
No meio de tudo isso eu tinha que ouvir, além de observar. Ouvir
os movimentos da besta selvagem ou do demônio que se achava no
esconderijo do lado de lá da porta. Mas desde a visita de Mr. Rochester ela
parecia enfeitiçada. Durante toda a noite eu ouvira apenas três ruídos, em
longos intervalos. Um rumor de passos, uma momentânea repetição do
ranger de dentes e dos ganidos caninos, e um profundo gemido humano.
Agora eram os meus próprios pensamentos que me
atormentavam. Que crime era aquele que parecia entranhado nesta mansão
isolada, e não podia ser eliminado nem subjugado pelo próprio dono? Que
mistério era esse que explodira em fogo e agora em sangue, nas horas mais
tardias da noite? Que criatura era aquela que, disfarçada no corpo e rosto
de uma mulher, articulava as palavras ora como um demônio insolente,
ora como uma selvagem ave de rapina?
E este homem, sobre o qual eu agora me debruçava, esse estranho
quieto e comum, como acabara se envolvendo nessa teia de horror? E
porque a Fúria investira contra ele? O que o fizera procurar essa parte da
casa tão fora de hora, quando deveria estar dormindo em sua cama? Eu
ouvira Mr. Rochester designar-lhe um quarto no andar de baixo... o que o trouxera aqui? E por que se mostrava tão resignado com relação à
violência e traição que se abatera sobre ele? Por que se submetia tão
docilmente ao silêncio imposto por Mr. Rochester? Por que Mr. Rochester
impunha esse silêncio? Seu hóspede fora ultrajado, ele mesmo sofrera
anteriormente um atentado contra a própria vida. Ambos os atentados
foram cobertos pelo segredo e mergulhados no esquecimento! Por fim, eu
via que Mr. Mason era submisso a Mr. Rochester, que a vontade impetuosa
do último mantinha completo domínio sobre a inércia do primeiro. As
poucas palavras que trocaram me garantiram isso. Era evidente que no seu
antigo relacionamento a disposição passiva de um era influenciada pela
ativa energia do outro. De onde, então, surgira o pavor de Mr. Rochester
quando ouviu sobre a chegada de Mr. Mason? Por que a menção do nome
daquele indivíduo submisso – a quem controlara como uma criança,
apenas com uma palavra – caíra sobre ele, algumas horas atrás, como um
raio sobre um carvalho?
Oh! Não podia esquecer seu olhar e sua palidez quando sussurrou:
“Jane, recebi um golpe. Recebi um golpe, Jane!” Não podia me esquecer
de como o seu braço tremia quando se apoiou no meu ombro. E, com
certeza, não havia de ser qualquer coisinha que podia abater dessa maneira
o espírito intrépido e fazer tremer a figura vigorosa de Fairfax Rochester.
“Quando será que ele volta? Quando será que ele volta?”
Enquanto a noite se arrastava longamente e o meu doente, sangrando,
arriava-se, gemia e se tornava cada vez mais fraco, eu me fazia essa
pergunta. E o dia não vinha, e nem a ajuda. De instante a instante eu
levava a água aos lábios lívidos de Mason. Vezes sem conta apliquei às
suas narinas os sais estimulantes. Meus esforços, no entanto, pareciam não
surtir efeito. O sofrimento físico ou mental, ou a perda de sangue, ou os
três juntos aceleravam a sua prostração. Ele gemia tanto, estava tão fraco,
aterrorizado e perdido, que temi que fosse morrer. E não podia sequer falar
com ele!
A luz do candeeiro extinguiu-se, por fim. Quando acabou, percebi
linhas de claridade cinzenta avançando lentamente através da janela. A
alvorada se aproximava. Nesse momento ouvi ao longe o latido de Pilot,
fora do canil, no gramado. Voltou-me a esperança. Não me decepcionei.
Cinco minutos depois o áspero barulho da chave e o ruído da fechadura avisaram-me que a minha vigília acabara. Não deviam ter se passado mais
de duas horas, mas muitas semanas da minha vida tem me parecido mais
curtas.
Mr. Rochester entrou, acompanhado pelo médico que fora buscar.
– Bem, Carter, aja depressa – ele disse para o médico. – Você tem
meia hora para vestir o ferido, fazer-lhe as ataduras, descer com ele e tudo
o mais.
– Ele está em condições de se mover, senhor?
– Sem dúvida. Não é nada sério. Ele é nervoso, devemos reanimálo. Venha, comece a trabalhar.
Mr. Rochester afastou a cortina e abriu a persiana, permitindo que
entrasse o máximo de luz do dia. Fiquei surpresa de ver como a manhã já
avançava, e os tons róseos do sol começavam a surgir no levante. Depois
aproximou-se de Mason, a quem o médico já estava atendendo.
– E agora, meu bom amigo, como está se sentindo? – perguntou.
– Temo que ela tenha acabado comigo – foi a débil resposta.
– Que nada... Coragem! Daqui a quinze dias não estará sentindo
mais nada. Perdeu um pouco de sangue, foi tudo. Carter, diga-lhe que não
há perigo.
– Posso fazer isso sem medo – disse Carter, que desamarrava as
ataduras. – Mas preferia ter chegado mais cedo, assim ele não teria
sangrado tanto... Mas o que é isto? A carne do ombro está cortada e
arranhada. Essa ferida não foi feita por uma faca, foi uma dentada!
– Ela me mordeu – ele murmurou. – Atacou-me como um tigre,
quando Rochester tirou-lhe a faca.
– Você não devia ter se rendido. Devia tê-la agarrado de uma vez
– disse Mr. Rochester.
– Mas em tais circunstâncias, o que se poderia fazer? – respondeu
Mason. E acrescentou, tremendo – Oh! Foi horrível! E eu não esperava:
ela parecia tão quieta! – Eu lhe avisei – foi a resposta do seu amigo. – Disse-lhe que
tomasse cuidado quando chegasse perto dela. Além disso, devia ter
esperado até amanhã para ir comigo. Foi uma loucura tentar falar com ela
esta noite, e sozinho.
– Pensei que poderia fazer-lhe bem.
– Pensou! Pensou! Fico irritado só de ouvi-lo. Mas você sofreu,
no entanto, e provavelmente sofrerá ainda mais por ter desprezado o meu
conselho. Assim, não direi mais nada. Carter... depressa, depressa! O sol já
vai nascer, e ele tem que sair daqui antes disso.
– Pois não, senhor. Acabei de fazer a atadura no ombro, tenho
ainda que ver esta ferida no braço. Ela mordeu aqui também, eu acho.
– E chupou o sangue, disse que ia esvaziar meu coração – disse
Mason.
Vi Mr. Rochester estremecer. Uma expressão singular de desgosto,
horror e ódio convulsionou seus traços, até ficarem quase distorcidos. Mas
ele apenas disse:
– Vamos, fique quieto, Richard, e não ligue para o que ela disse.
Não vai se repetir.
– Quem me dera poder esquecer! – foi a resposta.
– Vai conseguir, quando sair do país. Quando estiver de volta a
Spanish Town pode pensar nela como morta e enterrada. Melhor ainda,
nem precisa pensar mais nela.
– É impossível esquecer esta noite!
– Não é impossível: tenha coragem, homem! Duas horas atrás
você pensou que estivesse tão morto como um arenque defumado, e agora
está vivo e falante. Bem... Carter já terminou com você, ou quase isso. Vou
deixá-lo decente num instante. Jane?
Voltou-se para mim pela primeira vez desde que entrara.
– Pegue esta chave. Vá até o meu quarto e de lá direto ao quarto
de vestir. Abra a gaveta de cima da cômoda e pegue uma camisa limpa e
um lenço de pescoço. Seja rápida. Eu fui, achei o armário, peguei as coisas que ele pedira e retornei.
– Agora – disse ele – vá para o outro lado da cama enquanto
providencio para que ele seja vestido. Mas não deixe o quarto, posso
precisar de você de novo.
Fiz o que ele pedira.
– Viu alguém de pé quando desceu, Jane? – perguntou então Mr.
Rochester.
– Não, senhor. Tudo estava muito calmo.
– Precisamos tirá-lo daqui discretamente, Dick. Será melhor,
tanto para sua segurança, como daquela criatura aí do lado. Tenho me
esforçado há longo tempo para evitar escândalo, e não gostaria que isso
acontecesse agora. Aqui, Carter, coloque-lhe este sobretudo. Onde deixou
seu casaco de pele? Não pode viajar nem um quilômetro sem ele, neste
maldito clima frio. Está no seu quarto? Jane, corra até o quarto de Mr.
Mason, o primeiro depois do meu, e pegue o casaco que o viu vestindo.
De novo eu fui e voltei, carregando um imenso sobretudo, forrado
e guarnecido com pele.
– Agora, tenho mais uma tarefa para você – disse o meu
incansável patrão. – Deve voltar ao meu quarto. Que sorte estar usando
calçados de veludo, Jane! Um mensageiro comum nunca poderia dar conta
da tarefa. Abra a gaveta do meio da minha mesa de cabeceira e pegar um
pequeno frasco e um copinho que estão lá... rápido!
Corri para lá e voltei, trazendo os vasilhames que ele pedira.
– Muito bem! Agora, doutor, vou tomar a liberdade de
administrar um remédio sob a minha responsabilidade. Comprei este
cordial em Roma, de um charlatão italiano... um camarada a quem você
teria corrido a pontapés, Carter. Não é algo que se possa usar
indiscriminadamente, mas em determinadas ocasiões. Como agora, por
exemplo. Jane, pegue um pouco de água.
Ele segurou o delicado copo e eu o enchi pela metade com a água
da garrafa que estava sobre o lavatório.
– Assim está bom. Agora o líquido do frasco. Mediu doze gotas de um líquido escarlate e deu o preparado para
Mason.
– Beba, Richard. Isso vai lhe restaurar o ânimo por uma hora ou
duas horas.
– Mas não me fará mal? Não é inflamatório?
– Beba! Beba!
Mr. Mason obedeceu, porque evidentemente era inútil resistir. Já
estava vestido agora. Ainda pálido, mas não estava mais sujo nem
sangrando. Mr. Rochester deixou-o descansar por três minutos, após ter
bebido o líquido. Então pegou-o pelo braço:
– Agora acho que conseguirá ficar de pé – ele disse. –
Experimente!
O paciente ergueu-se.
– Carter, apoie o outro ombro dele. Seja um bom amigo, Richard,
de alguns passos... isso mesmo!
– Sinto-me melhor, realmente – observou Mr. Mason.
– Tenho certeza que sim. Agora, Jane, vá na nossa frente até lá
embaixo, abra a porta lateral e diga ao cocheiro da diligência postal para
se aprontar e esperar no pátio... ou do lado de fora, pois eu mandei que não
entrasse com as rodas no calçamento. Nós estamos descendo. E se alguém
estiver por aí, vá até o pé da escada e tussa.
Já eram mais ou menos cinco e meia e o sol estava a ponto de
surgir, mas encontrei a cozinha ainda escura e silenciosa. A porta lateral
estava trancada e abri-a com o menor ruído possível. Todo o pátio estava
quieto, embora os portões estivessem escancarados. Do lado de fora estava
estacionada a diligência postal, com os cavalos atrelados e o cocheiro na
boleia Aproximei-me e disse ao homem que os cavalheiros estavam vindo.
Ele assentiu. Olhei cuidadosamente ao redor e escutei. A quietude da
alvorada cobria tudo. Nos quartos dos criados as cortinas ainda estavam
baixadas. Pequenos pássaros começavam a gorjear entre as flores
esbranquiçadas que cobriam as árvores do pomar, cujos ramos de
florzinhas brancas caíam como grinaldas sobre o muro que fechava um dos cantos do pátio. Nos estábulos os cavalos da carruagem batiam os
cascos de vez em quando. Tudo o mais era silêncio.
Os cavalheiros surgiram. Mason, apoiado por Mr. Rochester e o
médico, parecia caminhar com relativa facilidade. Colocaram-no dentro
do veículo, e Carter subiu em seguida.
– Cuide bem dele – disse Mr. Rochester ao médico – e deixe que
fique em sua casa até recuperar-se completamente. Dentro de um dia ou
dois irei ver como ele está. Richard, como se sente?
– O ar fresco me renovou, Fairfax.
– Deixe a janela aberta do lado dele, Carter, não está ventando...
Adeus, Dick.
– Fairfax...
– Bem, o que é?
– Cuide dela. Cuide para que seja tratada o mais ternamente
possível. Deixe... – ele parou e rompeu em lágrimas.
– Eu faço tudo o que posso. Sempre fiz e sempre vou fazer – foi a
resposta.
Mr. Rochester então fechou a porta da carruagem e o veículo se
afastou.
– Quando, meu Deus, haverá um fim para tudo isso? – disse Mr.
Rochester, enquanto fechava os pesados portões.
Feito isto, caminhou devagar e com ar absorto em direção à porta
do muro que levava ao pomar. Preparei-me para voltar a casa, julgando
que não precisasse mais de mim. No entanto, ele chamou outra vez:
– Jane!
Havia aberto a porta e parara, esperando por mim.
– Venha para cá, onde é mais fresco. Só por alguns momentos –
disse Mr. Rochester. – Essa casa é apenas uma masmorra, não lhe parece?
– Parece-me uma esplêndida casa, senhor.
– O encanto da inexperiência cega seus olhos – ele respondeu – e
a vê através desse véu de magia. Não repara que o dourado é limo e as cortinas de seda são teias de aranha. Que o mármore é uma sórdida
ardósia, e os móveis polidos são cavacos descascados, repelentes e
miseráveis. Mas aqui (apontou para o verdejante pomar, onde acabávamos
de entrar), tudo é real, doce e puro.
Ele enveredou por uma aleia bordada de macieiras, pereiras e
cerejeiras de um lado. Do outro havia todo tipo de flores antigas, troncos,
prímulas e tamareiras, misturadas com abrótanos, rosas-amarelas e várias
ervas aromáticas. A mistura de chuva e sol daquele mês de abril, seguida
pelas belas manhãs de primavera, as deixara frescas e cheirosas. O sol
começava a brilhar no nascente e sua luz iluminava as árvores floridas e
cobertas de orvalho do pomar, assim como os tranquilos caminhos sob
elas.
– Jane, gostaria de uma flor?
Ele pegou uma rosa entreaberta, a primeira do galho, e me
ofereceu.
– Obrigada, senhor.
– Gosta do nascer do sol, Jane? Deste céu de nuvens altas e claras,
que com certeza vão evaporar à medida que o dia esquentar? Desta
atmosfera plácida e serena?
– Gosto muito.
– Passou uma noite estranha, Jane.
– Sim, senhor.
– E isso deixou-a pálida... Teve medo quando a deixei sozinha
com Mason?
– Eu tinha medo que alguém saísse do quarto interno.
– Mas eu tranquei a porta... A chave ficou no meu bolso. Teria
sido um pastor muito descuidado se deixasse uma ovelha – minha ovelha
de estimação – tão perto da toca do lobo, sem proteção alguma. Você
estava segura.
– Grace Poole vai continuar vivendo aqui, senhor? – Oh, sim! Não se preocupe com ela... Não pense mais em nada
disso.
– A mim parece que sua vida não está muito segura, enquanto ela
permanecer.
– Não tenha medo. Vou tomar cuidado.
– O perigo de ontem à noite já passou de todo?
– Não posso afirmar até que Mason esteja fora da Inglaterra. E
nem mesmo então. Para mim, Jane, viver significa ficar sobre uma cratera
que pode entrar em erupção a qualquer momento e vomitar fogo.
– Mas Mr. Mason parece um homem fácil de se levar. É evidente
que sua influência sobre ele é muito forte. Ele nunca irá desafiá-lo ou
ofendê-lo deliberadamente.
– Oh, não! Mason não irá me desafiar nem me ferir por sua
vontade. Mas, mesmo sem intenção – num instante, por uma palavra
descuidada – pode privar-me, senão da vida, ao menos da felicidade.
– Peça-lhe para ser cuidadoso, senhor. Diga-lhe o que teme e
mostre-lhe os meios de evitar o perigo.
Ele riu um riso sardônico, pegou minha mão apressadamente e
largou-a mais depressa ainda.
– Se eu pudesse fazer isso, sua ingênua, onde estaria o perigo?
Aniquilado na mesma hora. Desde que conheci Mason bastava dizer “faça
isso” e a coisa era feita. Mas, neste caso, não posso dar-lhe ordens. Não
posso dizer-lhe “Cuidado para não me ferir, Richard”, pois é importante
que o mantenha na ignorância de que pode me fazer mal. Agora você
parece confusa, e vou confundi-la ainda mais. Você é minha amiguinha,
não é?
– Gosto de ser-lhe útil, senhor, e obedecê-lo em tudo o que for
certo.
– Exatamente: eu vejo que age assim. Vejo um contentamento
genuíno nos seus modos, no seu aspecto, nos olhos e na face, quando está
me ajudando ou fazendo alguma coisa que me agrade... ou trabalhando
para mim, ou junto comigo, naquilo que você tão bem define como “tudo o que for certo”. Pois se eu lhe propusesse fazer algo que considera errado,
não correria com esses passos leves, nem ostentaria essa alegria, nem o
olhar vivo e a fisionomia animada. Minha amiga se voltaria para mim,
quieta e pálida, e diria “Não, senhor, é impossível: não posso fazer isso
porque é errado.” E se tornaria imóvel como uma estrela fixa. Bem, você
também tem poderes sobre mim, e pode me prejudicar. Não ouso mostrarlhe onde está o meu ponto fraco, pois confiante e amigável como é,
poderia apunhalar-me com um só golpe.
– Se o senhor não tem mais a temer de Mr. Mason do que tem de
mim, está bastante seguro.
– Deus permita que assim seja! Aqui, Jane, sente-se neste
caramanchão.
O caramanchão era um arco no muro coberto de hera. Havia ali
um banco rústico. Mr. Rochester sentou-se, deixando lugar para mim ao
seu lado. Mas fiquei de pé diante dele.
– Sente-se – disse. – Há lugar suficiente para dois. Não está
hesitando em sentar ao meu lado, está? Isso é errado, Jane?
Respondi-lhe sentando-me. Senti que não teria sido sábio recusar.
– Bem, minha amiguinha, enquanto o sol bebe o orvalho,
enquanto todas as flores deste velho jardim acordam e desabrocham,
enquanto os pássaros trazem de fora de Thornfield a comida para os seus
filhotinhos e as abelhas madrugadoras começam seu primeiro turno de
trabalho, vou lhe colocar um problema. Você deve se esforçar para
imaginar que aconteceu com você. Mas, primeiro, olhe para mim e me
diga que está à vontade, e que não acha que estou errado em detê-la, ou
que você está errada em ficar.
– Não, senhor, estou satisfeita.
– Bem, Jane, então peça ajuda à fantasia e imagine que você não é
mais uma moça bem-educada e disciplinada, mas um rapaz impulsivo,
mimado desde a infância. Imagine-se numa remota terra estrangeira.
Pense que cometeu um erro capital, não importa de que natureza ou por
quais motivos, mas um erro cujas consequências vão segui-lo por toda a
vida, e manchar toda a sua existência. Observe que não falo de um crime. Não estou falando de derramamento de sangue nem qualquer outro ato
culpável, que tornaria a pessoa que o perpetrasse sujeita às penas da lei. A
palavra que estou usando é erro. O resultado do seu ato com o tempo
torna-se absolutamente insuportável. Você toma algumas medidas para
conseguir alívio. Medidas fora do comum, mas não ilegais e nem
culpáveis. Ainda assim está infeliz: a esperança deixou-a em plena
juventude. Ao meio-dia o sol brilhante transforma-se num eclipse, e você
sente que não o deixará mais até que chegue o crepúsculo. A amargura e as
más recordações tornam-se o único alimento da sua memória. Passa a
vagar de um lado a outro, procurando descanso no exílio, felicidade no
prazer – falo do prazer sensual e cruel – aquele que embota o cérebro e
deteriora os sentimentos. Com o coração seco e a alma amargurada volta
para casa após anos de exílio. Faz uma nova amizade – como ou onde não
importa. Encontra nesse estranho muitas das boas e sólidas qualidades que
desejou por vinte anos, e nunca encontrou antes. E todas são suaves,
sadias, sem mancha e sem vícios. Essa companhia revive e regenera: você
vê que voltaram os dias melhores, os desejos mais elevados, os
sentimentos mais puros. Deseja recomeçar a vida e passar o que resta dos
seus dias de maneira mais digna, como cabe a um ser humano. Para atingir
esse fim justifica-se passar por cima de um obstáculo de preconceito
social – um impedimento meramente convencional, que nem a sua
consciência justifica nem a sua razão aprova?
Ele fez uma pausa e esperou a resposta. E o que eu devia dizer?
Oh! Quem sabe um bom espírito poderia me sugerir uma resposta correta
e satisfatória? Vã aspiração! O vento do oeste sussurrava na hera atrás de
mim. Mas nenhum arcanjo Ariel gentil usou esse murmúrio como forma
de expressão. Os pássaros cantavam no alto das árvores, mas seu canto,
embora doce, também não dizia nada.
Mr. Rochester propôs novamente a questão:
– Um peregrino e pecador, mas agora arrependido e à procura de
paz, estaria justificado se afrontasse a opinião do mundo para prender
junto a ele para sempre este estranho gentil, gracioso e alegre – e assim
assegurar a própria paz de espírito e a regeneração da sua vida? – Senhor – respondi – o repouso de um andarilho ou a
regeneração de um pecador nunca deveria depender de um companheiro.
Os homens e mulheres morrem, os filósofos falham em sua sabedoria, e os
cristãos em sua bondade. Se alguém que conhece errou e sofreu, deixe que
olhe acima dos seus iguais em busca de força para a mudança e consolo
para a cura.
– Mas o instrumento! O instrumento! Deus, que opera o milagre,
também manda o instrumento. Eu mesmo tenho sido – e digo isso sem
rodeios – um homem dissipado, mundano e inquieto. E acredito que achei
o instrumento para a minha cura em...
Ele parou. Os pássaros continuaram cantando, as folhas
murmurando suavemente. Eu quase me surpreendia de que não houvessem
parado seus cantos e sussurros para ouvir a revelação suspensa no ar. Mas
teriam que esperar vários minutos, tão prolongado foi o silêncio. Por fim,
levantei os olhos para o vagaroso interlocutor: ele me olhava avidamente
– Minha amiguinha – disse ele, num tom muito diferente,
enquanto sua face mudava também, perdendo toda suavidade e atração
para tornar-se dura e sarcástica – você notou minha inclinação por Miss
Ingram. Não acha que se eu desposá-la ela me regeneraria
impetuosamente?
Levantou-se de súbito. Foi até o outro lado do caminho e, quando
voltou. cantarolava uma canção.
– Jane, Jane – falou, parando em frente a mim – você ficou muito
pálida com essa vigília. Não tem raiva de mim por perturbar seu sono?
– Raiva? Não, senhor...
– Então, apertemos as mãos para confirmar o trato. Que dedos
frios! Estavam quentes a noite passada, quanto os toquei na porta do
quarto misterioso. Jane, quando voltaremos a fazer uma vigília juntos?
– Quando eu for necessária, senhor.
– Por exemplo, na véspera do meu casamento! Tenho certeza de
que não serei capaz de dormir. Promete ficar sentada comigo me fazendo
companhia? Com você posso falar da minha adorada, porque você a viu e a
conhece. – Sim, senhor.
– Ela é uma raridade, não acha, Jane?
– Sim, senhor.
– Uma conquistadora, uma verdadeira conquistadora, Jane: alta,
morena e jovial. E com o mesmo cabelo que deviam ter as mulheres de
Cartago! Valha-me Deus! O Dent e o Lynn estão nos estábulos. Vá
andando pelos arbustos, por aquela passagem ali.
Enquanto eu ia por um lado, ele ia pelo outro. Ouvi-o no pátio,
chamando alegremente:
– Mason tomou a dianteira de todos vocês e partiu antes do
alvorecer. Levantei-me às quatro para me despedir dele!
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Jane Eyre - Charlotte Brontë
RomantikÓrfã desde muito cedo, Jane Eyre leva uma vida solitária, até que encontra um emprego como governanta em Thornfield Hall, uma propriedade rural do misterioso e taciturno senhor Rochester. Jene se sente atraída por aquele homem calado, de espírito pe...