Capítulo 21

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Estranhas coisas são os pressentimentos, as simpatias e os sinais!
Os três juntos constituem um mistério que a humanidade ainda não
conseguiu decifrar. Nunca ri de um pressentimento em minha vida, pois eu
mesma já tive os pressentimentos mais estranhos. Existem simpatias, eu
acho, que desafiam a compreensão humana. Por exemplo, entre parentes
distantes, longamente afastados, totalmente estranhos um ao outro e que,
apesar dessa separação, comprovam a unidade da fonte da qual se
originaram. E os sinais, por tudo que sabemos, podem ser as simpatias da
Natureza em relação ao homem.
Quando eu era bem pequena, com apenas seis anos, ouvi uma
noite Bessie Leaven dizer à Martha Abbot que havia sonhado com uma
criança, e que sonhar com crianças era um sinal seguro de problemas para
a própria pessoa ou alguém da família. Eu poderia ter esquecido essas
palavras, não fosse uma circunstância que se seguiu, e que serviu para
fixá-las na minha mente. No dia seguinte Bessie foi mandada para casa,
para junto do leito de morte da sua irmãzinha.
Nos últimos dias muitas vezes recordei essas palavras e esse
incidente, pois durante a semana anterior não se passara uma só noite sem
que eu fosse para a cama e sonhasse com uma criança. Algumas vezes eu a
acalentava nos braços, outras vezes a punha no colo, ou então a via brincar
com as margaridas no gramado ou mergulhar as mãos na água de um
regato. Uma noite era uma criança que chorava, na outra uma que ria. Às
vezes aninhada ao meu lado, outras vezes fugindo de mim. Mas, qualquer
que fosse a sua aparência ou aspecto, não deixou nunca, durante sete noites
seguidas, de vir ao meu encontro sempre que eu entrava na terra dos
sonhos.
Não me agradava a repetição desse sonho, nem a estranha
recorrência da imagem, e ficava nervosa quando se aproximava a hora de
deitar-me e o momento da visão se aproximar. Foi da companhia dessa criança-fantasma que fui despertada naquela noite de luar ao ouvir um
grito. E foi na tarde do dia seguinte que fui chamada ao andar térreo, com
a mensagem de que alguém desejava ver-me na sala de Mrs. Fairfax.
Havia um homem à minha espera, parecendo o criado de algum
cavalheiro. Vestia luto fechado, e na aba do chapéu ostentava uma faixa de
crepe.
– Creio que não se lembra de mim, Miss – disse ele, levantandose ao me ver entrar – mas meu nome é Leaven. Fui cocheiro de Mrs. Reed
quando a senhorita estava em Gateshead, há oito ou nove anos, e ainda
vivo lá.
– Oh, Robert! Como vai? Lembro-me de você muito bem.
Costumava me deixar montar o pônei baio de Georgiana. E como vai
Bessie? Casou-se com ela, não é?
– Sim, Miss. Minha esposa está muito bem, obrigado. Deu-me
outro filhinho, dois meses atrás – agora temos três. Tanto a mãe quanto o
pequeno estão muito bem.
– E como estão as pessoas na mansão, Robert?
– Lamento não poder dar-lhe notícias melhores, Miss. Estão
muito mal no momento, em grande aflição.
– Espero que ninguém tenha morrido – disse, olhando para sua
roupa preta.
Ele também olhou para a faixa no chapéu e disse:
– Ontem fez uma semana que Mr. John morreu, no seu
apartamento em Londres.
– Mr. John?
– Sim.
– E como a mãe dele está suportando esse golpe?
– A senhorita sabe, Miss Eyre, não foi uma desgraça qualquer. Mr.
John teve uma vida muito dissipada. Nos últimos três anos esteve metido
em coisas horríveis e teve uma morte chocante.
– Bessie me disse que ele não estava agindo bem. – Agir bem! Não podia agir pior! Arruinou sua saúde e sua
fortuna com o pior tipo de gente, homens e mulheres. Contraiu dívidas e
acabou preso. Sua mãe ajudou a soltá-lo duas vezes, mas assim que ficava
livre voltava aos velhos hábitos e às más companhias. Sua cabeça era
fraca. Os patifes com os quais andava o enganavam como eu jamais vi na
vida. Há três semanas, mais ou menos, voltou a Gateshead e queria que a
patroa desse tudo para ele. Ela recusou-se. Sua fortuna já estava bem
reduzida pela extravagância dele. Então ele voltou – e depois veio a
notícia de que tinha morrido. Como morreu ninguém sabe, dizem que se
matou.
Fiquei em silêncio, as notícias eram apavorantes. Robert Leaven
recomeçou:
– A patroa anda doente há bastante tempo. Ela sempre foi muito
robusta, mas não era forte o bastante para tudo isso. A perda de dinheiro e
o medo da pobreza estão aniquilando-a. A notícia da morte de Mr. John – e
o tipo de morte que teve – veio de repente. Ela teve uma crise. Ficou três
dias sem falar, mas na última terça-feira melhorou. Parecia querer dizer
alguma coisa, murmurava e fazia sinais para minha mulher. Foi só ontem
pela manhã que Bessie entendeu que ela pronunciava o seu nome. Por fim
ela conseguiu dizer: “Tragam Jane Eyre... Busquem Jane Eyre. Quero falar
com ela”. Bessie não sabe se ela está boa da cabeça, ou se sabe o que diz,
mas contou para Miss Reed e Miss Georgiana e aconselhou-as a chamá-la.
As duas moças não ligaram muito para isso no início, mas a mãe ficou tão
agitada, dizendo “Jane, Jane” tantas vezes, que por fim elas consentiram.
Deixei Gateshead ontem, e se a senhorita puder se aprontar gostaria de
voltar consigo amanhã de manhã.
– Sim, Robert. Estarei pronta. Acho que devo ir.
– Também acho, Miss. Bessie disse que sabia que a senhorita não
recusaria. Imagino que tenha que pedir licença antes de partir, não é?
– Sim. E vou fazer isso agora mesmo.
Encaminhei Robert para a ala dos criados, e recomendei-o aos
cuidados da esposa de John e às atenções do próprio John. Então saí à
procura de Mr. Rochester. Ele não estava em nenhuma das salas do térreo, nem no pátio, nos
jardins ou nos estábulos. Perguntei a Mrs. Fairfax se o vira. Sim, achava
que estava jogando bilhar com Miss Ingram. Apressei-me em direção ao
salão de bilhar, de onde vinha o barulho das bolas e o rumor de vozes. Mr.
Rochester, Miss Ingram, as duas Misses Eshton e os seus admiradores
estavam todos ocupados em jogar. Precisei de alguma coragem para
interromper uma partida tão interessante. A minha missão, no entanto, não
podia ser postergada e me aproximei do patrão que estava ao lado de Miss
Ingram. Ela se virou quando cheguei e me olhou com arrogância. Seus
olhos pareciam dizer “O que este verme quer agora?”. E quando falei em
voz baixa “Mr. Rochester” ela fez um movimento como se fosse me
enxotar. Lembro-me de sua aparência naquele momento. Estava muito
graciosa e cativante: usava um vestido leve de crepe azul claro, e um lenço
de gaze azul prendendo o cabelo. Parecia muito animada com o jogo e o
orgulho satisfeito não diminuía a arrogância dos seus traços.
– É com você que essa pessoa quer falar? – perguntou a Mr.
Rochester.
E Mr. Rochester virou-se para ver quem era a “pessoa”. Fez uma
careta curiosa – uma das suas esquisitas e duvidosas demonstrações –
largou o taco de bilhar e me seguiu para fora da sala.
– Bem, Jane? – ele disse, apoiando as costas na porta da sala de
aulas, depois de fechá-la.
– Peço permissão, senhor, para tirar uma licença de uma ou duas
semanas.
– O que vai fazer? Aonde vai?
– Ver uma senhora doente que mandou me chamar.
– Que senhora doente é essa? Onde ela mora?
– Em Gateshead, no condado de...
– Condado de...? Fica a mais de cento e cinquenta quilômetros!
Quem ela pensa que é, para chamar uma pessoa de tão longe para vê-la?
– Seu nome é Reed, senhor... Mrs. Reed. – Reed, de Gateshead? Havia um Reed em Gateshead, um
magistrado.
– É a viúva dele, senhor.
– E o que você tem a ver com ela? Como a conhece?
– Mr. Reed era meu tio, o irmão da minha mãe.
– O diabo, que ele era! Você nunca me contou isso antes. Sempre
disse que não tinha parentes.
– Nenhum que me quisesse, senhor. Mr. Reed morreu e sua viúva
me expulsou.
– Por quê?
– Porque eu era pobre, era um incômodo e ela não gostava de
mim.
– Mas o Reed deixou filhos? Você deve ter primos, então? Ontem
mesmo Sir George Lynn estava falando de um Reed de Gateshead que,
segundo ele, é o mais completo patife da cidade. E Miss Ingram
mencionou uma tal de Georgiana Reed, do mesmo lugar, que foi muito
admirada em Londres por sua beleza, um ou dois anos atrás.
– John Reed também morreu, senhor. Ele arruinou-se e quase
arruinou a família, e depois se imagina que tenha cometido suicídio. As
notícias chocaram tanto a mãe que ela teve um ataque apoplético.
– E que bem você pode fazer a ela? Bobagem, Jane! Eu jamais
viajaria cento e sessenta quilômetros para ver uma velha senhora que,
provavelmente, estará morta antes que chegue lá. Além disso, você disse
que ela a expulsou.
– Sim, senhor. Mas foi há muito tempo, e quando a situação dela
era muito diferente. Eu não me sentiria bem de negligenciar seu desejo
agora.
– Quanto tempo ficará fora?
– O menos possível, senhor.
– Prometa-me que ficará apenas uma semana... – É melhor que eu não lhe dê minha palavra. Posso ser obrigada a
quebrá-la.
– De qualquer maneira prometa que vai voltar. Será que não vai
ser induzida, sob qualquer pretexto, a residir permanentemente com ela?
– Oh, não! Certamente voltarei, se tudo estiver bem.
– E quem irá com você? Não vai viajar essa distância toda
sozinha.
– Não, senhor. Ela mandou o cocheiro.
– É pessoa de confiança?
– Sim, senhor. Está há dez anos na família.
Mr. Rochester meditou.
– Quando pretende ir?
– Amanhã bem cedo, senhor.
– Bem, precisa de algum dinheiro. Não pode viajar sem dinheiro,
e acho que não possui muito. Ainda não lhe paguei o salário. Qual é a sua
fortuna neste mundo, Jane? – perguntou Mr. Rochester, sorrindo.
Abri a minha bolsa, que era bem magra.
– Cinco xelins, senhor.
Ele pegou a bolsa, pesou o tesouro na palma da mão e começou a
rir, como se a sua escassez o divertisse. Pegou então sua própria bolsa.
– Tome – disse ele, oferecendo-me uma nota.
Era uma cédula de cinquenta libras, e ele me devia apenas quinze.
Disse-lhe que não tinha troco.
– Não quero troco, você sabe disso. São os seus ordenados.
Recusei receber mais do que me era devido. Ele ficou zangado no
início. Depois, como se lembrasse de alguma coisa, disse:
– Certo, certo! É melhor não lhe dar tudo agora. Você poderia
ficar três meses fora, se tivesse cinquenta libras. Tome dez, então. Não é o
bastante?
– Basta sim, mas agora o senhor me deve cinco. – Volte para buscar, então. Vou guardar quarenta libras para você,
como seu banqueiro.
– Mr. Rochester, eu queria falar um outro assunto de negócios
com o senhor, enquanto tenho uma oportunidade.
– Assunto de negócios? Estou curioso para ouvir.
– O senhor me disse que brevemente vai se casar, não é?
– Sim, e daí?
– Neste caso, senhor, deve mandar Adele para a escola. Tenho
certeza que vai perceber a necessidade disso.
– Para tirá-la do caminho da minha noiva, que de outra forma
poderá marchar sobre ela com força excessiva? Há bom senso na sua
sugestão, sem dúvida. Adele, como diz, deve ir para a escola. E você, é
claro, deve ir direto para o... inferno?
– Espero que não, senhor. Mas devo procurar outra colocação em
algum lugar.
– É mesmo? – disse Mr. Rochester, com a voz aguda e uma
distorção dos traços ao mesmo tempo fantástica e ridícula. Olhou-me
durante alguns minutos.
– E pedirá a velha senhora Reed, ou às suas filhas, para arranjarlhe uma colocação, suponho?
– Não, senhor. Não tenho tão boas relações com meus parentes
que justifique pedir-lhes favores. Mas posso colocar um anúncio.
– Você vai é subir as pirâmides do Egito! – ele grunhiu. – Nem se
atreva a colocar um anúncio! Quem dera tivesse lhe dado apenas um
soberano, em vez de dez libras. Devolva-me nove libras, Jane! Preciso
delas.
– Eu também, senhor – respondi, escondendo as mãos e a bolsa
nas costas. – Não posso me desfazer desse dinheiro em hipótese alguma.
– Pequena avarenta! – disse ele – Recusando-me um empréstimo!
Dê-me cinco libras, Jane.
– Nem cinco xelins, senhor. Nem cinco pence. – Então só me deixe ver o dinheiro.
– Não. Não dá para confiar no senhor.
– Jane!
– Senhor?
– Prometa-me uma coisa.
– Eu lhe prometo qualquer coisa que eu seja capaz de cumprir,
senhor.
– Prometa que não vai anunciar, e que deixará a meu cargo
procurar-lhe outra colocação. Vou lhe encontrar uma quando chegar o
momento.
– Prometerei com prazer se o senhor, por sua vez, me prometer
que tanto eu quanto Adele estaremos longe desta casa quando a sua mulher
entrar aqui.
– Muito bem, então. Dou-lhe minha palavra. Vai partir amanhã
mesmo?
– Sim, senhor. Bem cedo.
– Virá ao salão após o jantar?
– Não, senhor. Preciso preparar-me para a viagem.
– Então você e eu devemos nos despedir por algum tempo?
– Acho que sim, senhor.
– E como as pessoas fazem a cerimônia do adeus, Jane? Me
ensine. Não tenho muita experiência nisso.
– Elas dizem ‘Adeus’ ou qualquer outra palavra que prefiram.
– Então diga, Jane.
– Adeus, Mr. Rochester. Até a volta.
– O que eu devo dizer?
– O mesmo, se desejar, senhor.
– Adeus, Miss Eyre. Até a volta. Isso é tudo?
– Sim, acha pouco? – Parece muito econômica para os meus padrões, além de seca e
pouco cordial. Gostaria de alguma coisa mais, uma pequena adição ao
ritual. Apertar a mão, por exemplo, mas não... isso também não me
satisfaria. Então não vai fazer nada além de dizer adeus, Jane?
– É o suficiente. Um voto sincero cabe tão bem numa única
palavra dita de coração quanto em muitas palavras.
– É provável. Mas ainda parece vazia e fria. Adeus.
“Quanto tempo ele ainda vai ficar encostado nessa porta?”
perguntei a mim mesma. “Preciso fazer as malas.”
A campainha tocou para o jantar. Mr. Rochester, de repente,
afastou-se sem dizer mais nada. Não o vi durante o resto do dia, e parti
antes que ele se levantasse de manhã.
Cheguei à portaria de Gateshead às cinco horas da tarde do
primeiro dia de maio. Parei no chalé antes de ir até a casa. Tudo era limpo
e organizado. Das janelas ornamentadas pendiam pequenas cortinas
brancas; o chão não tinha uma única mancha; a grelha e os metais da
lareira brilhavam e havia um belo fogo aceso. Bessie sentava-se junto à
lareira, amamentando o recém-nascido, enquanto o pequeno Robert e a
irmã brincavam tranquilamente num canto.
– Deus a abençoe! Eu sabia que viria! – exclamou Bessie quando
entrei.
– Sim, Bessie – eu disse, depois de beijá-la. – espero não ter
chegado tarde demais. Como está Mrs. Reed? Ainda viva, espero.
– Sim, está viva. E mais sensível e controlada do que era. O
médico disse que ela deve durar ainda uma semana ou duas. Mas não
acredita que consiga se recuperar.
– E ela falou de mim, ultimamente?
– Falou em você ainda esta manhã, desejando que viesse. Mas
está dormindo agora, ou estava há dez minutos, quando vim da casa. Ela
geralmente fica a tarde toda numa espécie de letargia e acorda às seis ou
sete horas. Quer descansar aqui por uma hora, Miss, e então eu lhe
acompanho até lá? Robert chegou nesse momento, e Bessie colocou o bebê no berço
para recebê-lo. Depois insistiu para que eu tirasse o chapéu e tomasse chá,
dizendo que eu parecia pálida e cansada. Fiquei contente de aceitar a sua
hospitalidade. Permiti que tirasse a minha capa de viagem, tão
passivamente como no tempo de criança, quando ela me despia.
Os velhos tempos voltaram à minha memória enquanto observava
a sua atividade – pegando a bandeja de chá com sua melhor louça,
cortando pão e manteiga, assando um bolo e, nos intervalos, passando um
pito ou dando um repelão nos pequeninos Robert e Jane, como costumava
fazer comigo antigamente. Bessie mantivera seu temperamento impulsivo,
assim como o andar lépido e a aparência bonita.
Pronto o chá, eu ia me aproximando da mesa, quando ela me
ordenou que ficasse quieta, no seu antigo tom decidido. Disse que eu seria
servida na sala, perto da lareira. Colocou junto a mim uma pequena
banqueta redonda, com a xícara e o prato de torta, exatamente como
costumava me acomodar numa cadeira da ala das crianças, com alguma
guloseima roubada. Sorri e obedeci como fazia naqueles tempos.
Bessie queria saber se eu estava feliz em Thornfield, e que
espécie de pessoa era a dona da casa. Quando eu lhe disse que só havia um
dono, quis saber se era um cavalheiro bonito e se eu gostava dele. Contei
então que ele era feio, mas muito educado. Que me tratava gentilmente e
que eu estava bastante satisfeita. Segui contando sobre os alegres
visitantes que ultimamente estavam na casa, e Bessie ouviu os detalhes
com muita atenção, pois eram exatamente do tipo de que gostava.
E assim a hora se passou rapidamente. Bessie devolveu-me o
chapéu e, acompanhada por ela, saí do chalé em direção à casa. Fora
também na companhia dela, quase nove anos atrás, que eu descera o
mesmo caminho que agora subia. Numa manhã de janeiro, escura,
nevoenta e gelada, eu deixara um teto hostil com o coração em desespero e
amargurado. Sentia-me condenada, quase proscrita, em busca do frio
abrigo de Lowood, que ficava tão distante e me era desconhecido. O
mesmo teto hostil agora se abria diante de mim, mas minhas perspectivas
ainda eram duvidosas e meu coração continuava dolorido. Novamente me
senti como se vagasse pela face da terra. Mas agora tinha uma confiança mais firme em mim mesma e nas minhas forças, e já não temia tanto a
opressão. A enorme ferida das injúrias, também, estava completamente
curada, e a chama do ressentimento extinta.
– Deve ir primeiro à sala de almoço – disse Bessie, enquanto me
precedia no saguão. – As moças devem estar lá.
Num momento eu estava dentro da peça. Todos os móveis e
ornamentos continuavam do mesmo modo que naquela manhã em que fui
apresentada a Mr. Brocklehurst. O mesmo tapete em que ele se plantara
jazia estendido no chão. Lançando um olhar para a estante pensei
distinguir os dois volumes de “História dos Pássaros Ingleses”, de Bewick,
ainda ocupando seu antigo lugar na terceira prateleira. As “Viagens de
Gulliver” e “As Mil e Uma Noites” ficavam logo acima. Os objetos
inanimados não haviam mudado, mas os vivos estavam irreconhecíveis.
Duas jovens surgiram diante de mim. Uma era muito alta, quase
tão alta quanto Miss Ingram. Muito magra, também, com uma face pálida
de traços severos. Havia algo de ascético no seu aspecto, aumentado pela
extrema austeridade do vestido preto de saia reta, da gola de linho
engomada, do cabelo penteado para trás das têmporas e dos adornos de
freira: um rosário de contas de ébano e um crucifixo. Esta devia ser Eliza,
embora eu achasse pouca semelhança entre o rosto antigo e este rosto
esquálido e sem cor.
A outra com certeza era Georgiana, mas não a Georgiana de quem
eu me lembrava, uma menina de onze anos esbelta e com ares de fada.
Esta era uma moça bastante robusta, bonita como uma figura de cera, com
belos traços, lânguidos olhos azuis e cabelos loiros cacheados. Vestia-se de
preto também, mas o modelo era tão diferente do da irmã – muito fluido e
bem cortado – que parecia tão elegante quanto o outro parecia puritano.
Em cada uma das irmãs havia um traço da mãe, e apenas um. A
filha mais velha, magra e pálida, tinha os olhos dos Cairngorm. A moça
mais nova, rosada e radiante, tinha o mesmo queixo e contorno do rosto –
talvez um pouquinho mais suave, mas ainda assim emprestando uma
dureza indisfarçável ao semblante que de outra forma seria voluptuoso e
jovial. As duas moças se levantaram para me receber, e ambas se
dirigiram a mim como “Miss Eyre”. O cumprimento de Eliza foi feito em
voz abrupta, seca, sem um sorriso. Depois sentou-se novamente, fixou os
olhos no fogo e pareceu esquecer-se da minha existência. Georgiana,
depois de um “como tem passado?” acrescentou várias banalidades sobre a
minha viagem, o tempo, e coisas assim, sempre num tom vagaroso.
Acompanhava essas expressões com vários olhares de esguelha que me
examinavam dos pés à cabeça, ora reparando nas dobras da minha capa de
lã, ora passeando pelos modestos enfeites do meu chapéu. As jovens têm
uma maneira especial de fazer alguém saber que é considerada uma “pobre
coitada”, sem realmente dizer uma palavra. Um certo olhar superficial,
uma frieza de maneiras, um tom descuidado, expressam plenamente seus
sentimentos a respeito, sem comprometê-las com nenhuma grosseria de
palavras ou ações.
Um olhar de desprezo, todavia, disfarçado ou ostensivo, já não
exercia sobre mim o mesmo efeito de antigamente. Quando me sentei
entre as minhas primas, fiquei surpresa de perceber como me sentia à
vontade sob o total desprezo de uma e as atenções meio sarcásticas da
outra. Eliza não me mortificava, nem Georgiana me irritava. O fato era
que eu tinha outras coisas em que pensar. Nos últimos meses fora movida
por sentimentos muito mais potentes do que qualquer um que elas
pudessem despertar. Senti dores e prazeres tão mais intensos e deliciosos
do que qualquer um que elas pudessem me infligir ou conceder. Suas
atitudes não me causavam impressão, nem de bem nem de mal.
– Como está Mrs. Reed? – perguntei, olhando calmamente para
Georgiana que empinou o nariz à minha pergunta direta, como se fosse
alguma inesperada ousadia.
– Mrs. Reed? Ah! Mamãe, você quer dizer! Está muito mal, acho
que não conseguirá vê-la esta noite.
– Se pudesse apenas subir e dizer a ela que estou aqui, eu ficaria
muito agradecida – disse eu.
Georgiana quase se assustou. Arregalou para mim uns belos olhos
azuis e furiosos. – Sei que ela tem um desejo particular de me ver – continuei. – E
não pretendo adiar o atendimento do seu pedido por mais tempo que o
necessário.
– Mamãe não gosta de ser perturbada à noite – observou Eliza.
Então levantei-me, peguei calmamente o chapéu e as luvas e, sem
esperar convite, disse que ia procurar Bessie – que devia estar na cozinha –
e pedir-lhe que fosse saber se Mrs. Reed iria ou não receber-me naquela
noite. Saí, e depois de encontrar Bessie e designar-lhe a incumbência,
comecei a tomar outras medidas. Até aqui eu tivera por hábito sempre
retrair-me diante da arrogância. Se fosse recebida dessa mesma maneira
um ano atrás, teria decidido deixar Gateshead bem cedo no dia seguinte.
Mas agora isso me parecia um plano sem sentido. Havia viajado mais de
cento e sessenta quilômetros para ver minha tia e devia ficar com ela até
que estivesse melhor... ou morresse. Quanto ao orgulho ou loucura das
filhas, devia pô-los de lado e distanciar-me. Assim, dirigi-me à
governanta, pedi que me indicasse um quarto, disse que talvez ficasse de
visita por uma ou duas semanas, solicitei que levassem minha bagagem
para o quarto e fui para lá. Encontrei Bessie no caminho.
– A senhora está acordada – ela disse. – Contei-lhe que está aqui.
Venha, vamos ver se ela a reconhece.
Não precisava que me guiassem àquele quarto bem conhecido,
onde nos velhos tempos muitas vezes fora chamada para receber um
castigo ou uma reprimenda. Fui na frente de Bessie. Abri mansamente a
porta: uma luz suave brilhava na cabeceira, pois estava anoitecendo. Ali
estava a antiga cama de quatro pilares, com seus cortinados cor de âmbar.
A penteadeira, a poltrona e o escabelo, onde muitas vezes fora obrigada a
me ajoelhar e pedir perdão por ofensas que não cometi. Olhei para um
canto conhecido, meio que esperando ver a fina silhueta de um outrora
temível açoite, que costumava ficar escondido ali, esperando para espantar
o demônio e fustigar minhas mãos trêmulas ou meu pescoço encolhido.
Aproximei-me da cama, abri o cortinado e olhei para a alta pilha de
travesseiros.
Lembrava-me muito bem do rosto de Mrs. Reed e procurei
ansiosamente aquela imagem familiar. Felizmente o tempo acalma os desejos de vingança e ameniza os impulsos da raiva e da aversão. Havia
deixado esta mulher com amargura e ódio e voltava para ela agora apenas
com um tipo de piedade pelos seus sofrimentos, e um forte desejo de
esquecer e perdoar todas as injúrias. Queria reconciliar-me e trocar um
aperto de mãos de amizade.
A face bem conhecida ali estava: severa e rígida como sempre.
Ali estavam os olhos, que nada podia enternecer, e as sobrancelhas altas,
imperiosas e despóticas. Quantas vezes haviam me imposto medo e ódio!
E enquanto olhava seus duros traços, voltavam-me todas as lembranças
dos meus sofrimentos de criança! Ainda assim, abaixei-me e beijei-a. Ela
me olhou.
– É Jane Eyre? – perguntou.
– Sim, tia Reed. Como está, querida tia?
Eu havia jurado nunca mais chamá-la de tia. Pensei que, naquele
momento, não seria pecado esquecer isso e quebrar o juramento. Meus
dedos tomaram-lhe a mão, que pendia para fora dos lençóis. Se ela a
tivesse apertado gentilmente, eu teria ficado bastante feliz. Mas as
naturezas duras não se dobram tão depressa, nem tão facilmente se
erradicam as antipatias naturais. Mrs. Reed retirou a mão, e virando o
rosto disse que a noite estava quente. Tornou a me olhar com tanta frieza
que pensei que sua opinião sobre mim – ou seus sentimentos por mim –
não haviam mudado, e nem mudariam. Vi nos seus olhos duros,
impermeáveis à ternura, imunes às lágrimas, que ela resolvera me
considerar má até o fim dos meus dias. Considerar-me boa não lhe daria
nenhum prazer, apenas um sentimento de humilhação.
Senti dor e senti raiva. Decidi subjugá-la, ser a sua mestra, a
despeito da sua natureza e da sua determinação. Lágrimas me vieram aos
olhos, como quando eu era criança, e mandei-as de volta. Trouxe uma
cadeira para junto do leito. Sentei-me e inclinei-me para o travesseiro.
– A senhora mandou me chamar – eu disse – e aqui estou. É
minha intenção ficar até ver a senhora melhorar.
– Sim, claro! Já viu minhas filhas?
– Sim. – Bem, diga-lhes que desejo que fique até que possa conversar
com você algumas coisas que tenho na cabeça. Hoje já está tarde, e não
consigo me lembrar. Mas há algo que quero lhe dizer... deixe-me ver...
O olhar vago e a voz sumida mostraram-me o quanto estava
arruinado aquele corpo outrora vigoroso. Virou-se agitada, afastando as
cobertas de si. Meu cotovelo prendeu a coberta no canto: ela ficou logo
irritada.
– Levante-se! – disse – Não me aborreça segurando as cobertas.
Você é Jane Eyre?
– Sim, sou Jane Eyre.
– Tive mais problemas com essa criança do que qualquer um
possa acreditar. Era um fardo que foi deixado em minhas mãos. Ela me
causava tanto incômodo, todo dia, toda hora, com sua disposição belicosa
e seus ataques repentinos de cólera... Além disso vivia continuamente
vigiando os movimentos das pessoas, isso não era natural! Uma vez falou
comigo como se fosse uma entidade má, um demônio!... Uma criança
jamais falaria ou olharia daquele modo! Fiquei feliz quando a vi longe de
casa. O que será que foi feito dela em Lowood? A febre devastou o lugar,
muitas alunas morreram. Ela, no entanto, não morreu. Mas eu disse que
tinha morrido – quem dera tivesse morrido!
– Um desejo estranho, Mrs. Reed. Porque a odiava tanto?
– Nunca gostei da mãe dela. Era a única irmã do meu marido, e
sua grande favorita. Ele se opôs quando a família quis deserdá-la por causa
do casamento inferior que fizera. E quando veio a notícia de sua morte,
chorou como um tolo. Mandou buscar a criança, apesar de eu insistir que
era melhor mandá-la para algum lugar e pagar para que fosse cuidada. Eu
a odiei desde que pus os olhos nela... Era uma coisinha doentia, chorosa e
consumida! Passava a noite toda choramingando no berço... não gritava
com energia, como qualquer outra criança, mas ficava gemendo e
resmungando. Reed tinha pena, e costumava niná-la e cuidá-la como se
fosse sua filha, embora nunca tivesse cuidado dos próprios filhos naquela
idade. Tentou fazer com que as minhas crianças fossem amigas daquela
mendigazinha, mas os queridos não podiam tolerar isso. Ele ficava muito
zangado com eles, quando mostravam seu desprezo. Na última vez que ficou doente, pedia sem cessar que a levassem para junto da sua cama. E
apenas uma hora antes de morrer, arrancou-me a promessa de que cuidaria
daquela criatura. Antes eu tivesse sido encarregada de cuidar de um bando
de indigentes num asilo. Mas ele era fraco, naturalmente fraco. John não
saiu ao pai, graças a Deus. Fico contente, pois John é como eu, como os
meus irmãos... é um Gibson dos pés à cabeça. Oh! Gostaria que parasse de
me mandar essas cartas pedindo dinheiro! Não tenho mais dinheiro para
lhe dar, estamos ficando pobres. Terei que mandar embora a metade dos
criados e fechar uma parte da casa, ou então deixar as coisas correrem.
Não poderei jamais me submeter a isso... mas como vamos sobreviver?
Dois terços da minha renda são para pagar os juros da hipoteca! John joga
muito, e perde sempre... pobre rapaz! Está sendo importunado por esses
tubarões, está arruinado e degradado. Seu olhar é terrível, sinto vergonha
por ele quando o vejo.
Mrs. Reed estava ficando muito agitada.
– Acho melhor deixá-la agora – eu disse para Bessie, que estava
do outro lado da cama.
– Talvez seja melhor, Miss, mas ela sempre fica assim à noite...
De manhã está mais calma.
Levantei-me.
– Espere! – exclamou Mrs. Reed. – Tem outra coisa que queria
dizer. Ele me ameaçava – me ameaçava constantemente – com a sua
própria morte ou a minha... Eu sonho às vezes com ele, vejo-o atirado ao
chão, com uma grande ferida na garganta, ou então com o rosto inchado e
escuro. Cheguei numa encruzilhada, tenho problemas enormes. Que devo
fazer? Onde está o dinheiro para fazer alguma coisa?
Bessie agora tentava fazê-la tomar um calmante. Conseguiu-o
com dificuldade. Em seguida, Mrs. Reed ficou mais calma e caiu num
estado letárgico. Então me retirei.
Passaram-se mais de dez dias até que eu tivesse uma nova
conversa com ela. Mrs. Reed continuava alternando entre o delírio e a
letargia, e o médico proibiu qualquer coisa que pudesse excitá-la.
Enquanto isso, procurei me arranjar da melhor maneira com Georgiana e Eliza. A princípio, realmente, foram muito frias. Eliza passava o dia
costurando, lendo ou escrevendo, e raramente trocava uma palavra comigo
ou com a irmã. Georgiana podia passar uma hora falando bobagens com o
seu canário, e não me dava a menor importância. Mas eu estava decidida a
não ficar parada, sem ocupação ou divertimento. Trouxera meus materiais
de pintura que me serviam para ambas as coisas.
Com algumas folhas de papel e um conjunto de lápis, costumava
sentar-me longe delas, perto da janela, e me ocupava esboçando
fantasiosas vinhetas. Representavam alguma cena que no momento
tomasse forma no movimentado caleidoscópio da minha imaginação. Uma
nesga de mar entre duas rochas. A lua que surgia e um navio cruzando à
frente do seu disco. Um grupo de juncos e plantas aquáticas, e a cabeça de
uma náiade, coroada de flores de lótus, surgindo entre eles. Um elfo
sentado num alto ninho de pardais, sob uma grinalda de espinheiros.
Certa manhã me aconteceu de desenhar um rosto. Que tipo de
rosto seria, eu não sabia e nem me importava. Peguei um lápis preto
macio, fiz-lhe uma ponta larga e comecei a trabalhar. Logo havia
desenhado uma testa larga e proeminente, e um rosto de linhas quadradas.
O contorno me agradou, e meus dedos começaram a trabalhar agilmente,
completando-lhe as feições. Sobrancelhas horizontais bem marcados eram
o ideal para essa testa. Seguiu-se um nariz bem modelado, com sulcos
estreitos e narinas cheias. Então uma boca flexível, que não fosse estreita.
Um queixo firme, com uma decidida covinha no meio. Havia necessidade
de suíças pretas, é claro. E também um cabelo cheio, com tufos nas
têmporas, e ondulado sobre a testa. Os olhos ficaram para o final, porque
exigiam um trabalho bastante cuidadoso. Desenhei-os bem grandes, e
caprichei nos contornos – cílios longos e escuros, íris grandes e brilhantes.
“Estão bons, mas não exatamente fiéis” pensei, enquanto olhava o
efeito “precisam de um pouco mais de força e espírito”. E aprofundei as
sombras, para que as partes claras sobressaíssem. Mais um ou dois traços
e pronto... Ali estava, tinha sob os olhos um rosto amigo. E que importava
que aquelas jovens damas me virassem as costas? Olhei de novo o desenho
e sorri ante a semelhança evidente. Estava ocupada e contente. – É o retrato de algum conhecido? – perguntou Eliza, que se
aproximara sem que eu percebesse.
Respondi que era apenas um rosto imaginário, e me apressei a
escondê-lo entre os outros esboços. Menti, é claro: era, na verdade, um
retrato bastante fiel de Mr. Rochester. Mas o que isso poderia significar
para ela, ou para qualquer um além de mim? Georgiana também
aproximou-se para ver. Os outros desenhos agradaram-lhe muito, mas sua
opinião sobre o retrato foi “um homem feio”. As duas pareciam muito
impressionadas com a minha habilidade. Ofereci-me para retratá-las, e
cada uma, por seu turno, sentou-se para posar. Georgina trouxe o seu
álbum e prometi-lhe uma aquarela. Isso logo a deixou de bom humor.
Propôs uma caminhada pelos jardins, e antes que estivéssemos fora por
duas horas, já se achava imersa em profundas confidências. Teve a
bondade de me descrever em detalhes a brilhante temporada que passara
em Londres dois anos antes – a admiração que havia provocado, as
atenções que recebera, fez até alusões a uma conquista. Durante a tarde e a
noite essas insinuações aumentaram. Reportou-me várias conversas
íntimas e representou-me cenas sentimentais. Em suma: improvisou para
mim, nesse dia, um volume de um romance sobre a vida mundana. As
confidências continuaram dia após dia, sempre caindo no mesmo tema –
ela mesma, seus amores, suas angústias. Era estranho que não se referisse
uma vez sequer à doença da mãe, à morte do irmão ou ao estado
calamitoso de suas finanças no momento. Sua mente parecia tomada pelas
reminiscências de alegrias passadas e aspirações de gozos futuros.
Georgiana passava cinco minutos por dia no quarto da mãe, não mais.
Eliza ainda falava pouco, evidentemente não tinha tempo para
conversar. Nunca vi ninguém parecer mais ocupada. Ainda assim era
difícil determinar o que fazia, ou melhor, ver o resultado da sua ocupação.
Tinha um despertador para acordá-la de manhã cedo. Não sei o que fazia
até a hora do café da manhã, mas depois dessa refeição dividia seu tempo
em porções regulares, e cada hora tinha a sua tarefa específica. Três vezes
por dia lia um pequeno livro, que eu descobri, bisbilhotando, tratar-se de
um “Livro das Orações Diárias”. Perguntei-lhe uma vez qual era o atrativo
desse livro e ela me disse: “a Rubrica”. Três horas eram destinadas a
bordar com linha dourada a barra de um pano quadrado, cor de carmim, – É o retrato de algum conhecido? – perguntou Eliza, que se
aproximara sem que eu percebesse.
Respondi que era apenas um rosto imaginário, e me apressei a
escondê-lo entre os outros esboços. Menti, é claro: era, na verdade, um
retrato bastante fiel de Mr. Rochester. Mas o que isso poderia significar
para ela, ou para qualquer um além de mim? Georgiana também
aproximou-se para ver. Os outros desenhos agradaram-lhe muito, mas sua
opinião sobre o retrato foi “um homem feio”. As duas pareciam muito
impressionadas com a minha habilidade. Ofereci-me para retratá-las, e
cada uma, por seu turno, sentou-se para posar. Georgina trouxe o seu
álbum e prometi-lhe uma aquarela. Isso logo a deixou de bom humor.
Propôs uma caminhada pelos jardins, e antes que estivéssemos fora por
duas horas, já se achava imersa em profundas confidências. Teve a
bondade de me descrever em detalhes a brilhante temporada que passara
em Londres dois anos antes – a admiração que havia provocado, as
atenções que recebera, fez até alusões a uma conquista. Durante a tarde e a
noite essas insinuações aumentaram. Reportou-me várias conversas
íntimas e representou-me cenas sentimentais. Em suma: improvisou para
mim, nesse dia, um volume de um romance sobre a vida mundana. As
confidências continuaram dia após dia, sempre caindo no mesmo tema –
ela mesma, seus amores, suas angústias. Era estranho que não se referisse
uma vez sequer à doença da mãe, à morte do irmão ou ao estado
calamitoso de suas finanças no momento. Sua mente parecia tomada pelas
reminiscências de alegrias passadas e aspirações de gozos futuros.
Georgiana passava cinco minutos por dia no quarto da mãe, não mais.
Eliza ainda falava pouco, evidentemente não tinha tempo para
conversar. Nunca vi ninguém parecer mais ocupada. Ainda assim era
difícil determinar o que fazia, ou melhor, ver o resultado da sua ocupação.
Tinha um despertador para acordá-la de manhã cedo. Não sei o que fazia
até a hora do café da manhã, mas depois dessa refeição dividia seu tempo
em porções regulares, e cada hora tinha a sua tarefa específica. Três vezes
por dia lia um pequeno livro, que eu descobri, bisbilhotando, tratar-se de
um “Livro das Orações Diárias”. Perguntei-lhe uma vez qual era o atrativo
desse livro e ela me disse: “a Rubrica”. Três horas eram destinadas a
bordar com linha dourada a barra de um pano quadrado, cor de carmim, quase tão grande quanto um tapete. Respondendo à minha pergunta sobre a
sua utilidade, disse tratar-se de uma toalha para o altar da nova igreja que
fora erigida perto de Gateshead. Devotava duas horas ao seu diário. Duas
para trabalhar no jardim e uma para cuidar das suas contas. Parecia não
desejar companhia nem conversa. Acredito que era feliz à sua maneira:
essa rotina bastava-lhe, e nada a incomodava mais do que a ocorrência de
algum incidente que a forçasse a alterar essa perfeita regularidade.
Uma noite, quando estava mais comunicativa que o habitual,
contou-me que a conduta de John e a ameaça de ruína da família havia
sido para ela uma fonte de profunda aflição. Mas agora, disse, já serenara
o espírito e firmara a sua resolução. Tratara de assegurar sua parte da
fortuna, e quando a mãe morresse – pois era muito improvável, observou
tranquilamente, que ela viesse a se recuperar ou durasse muito tempo – ela
se dedicaria a um projeto longamente acalentado. Procuraria um convento
– onde as regras a livrassem de qualquer perturbação – e colocaria
barreiras seguras entre ela e este mundo frívolo. Perguntei-lhe se
Georgiana iria acompanhá-la.
“Claro que não! Georgiana e ela nada tinham em comum, e nunca
tiveram. Ela não seria sobrecarregada com a companhia da irmã em
hipótese alguma. Georgiana devia seguir seu próprio caminho, e ela, Eliza,
seguiria o dela.”
Georgiana, quando não estava me abrindo seu coração, passava a
maior parte do tempo reclinada no sofá, preocupando-se com a melancolia
da casa, e desejando vezes sem conta que sua tia Gibson lhe mandasse um
convite para ir à capital.
– Seria muito melhor – ela disse – se pudesse apenas ficar longe
de Gateshead por um mês ou dois, até que tudo esteja acabado.
Não lhe perguntei o que queria dizer com “estar tudo acabado”,
mas imagino que se referisse à esperada morte da mãe e aos tristes ritos
funerários que se seguiriam. Eliza geralmente não dava muita atenção à
indolência e às queixas da irmã. Via-a apenas como um objeto lamuriento
e suspirante que estivesse diante de si. Um dia, no entanto, enquanto
deixava de lado o livro de orações e pegava o bordado, de repente
começou a dizer: – Georgiana, nunca se permitiu que a terra fosse sobrecarregada
com um animal mais inútil e absurdo que você! Você não tinha o direito de
nascer, pois não utiliza sua vida para nada. Em vez de viver com, em e
para você mesma, como deve fazer um ser humano sensato, procura
apenas escorar sua fraqueza na força de outra pessoa. E se não encontra
ninguém disposto a carregar um fardo tão pesado, fraco, inflado e inútil
como você, grita aos quatro ventos que está sendo maltratada, que está
sendo negligenciada e que é uma infeliz. Para você a vida tem que ser um
cenário em contínua mudança, cheio de excitação, ou então acha que o
mundo é uma masmorra. Você tem que ser admirada, cortejada, elogiada...
tem que ter música, dança e companhia, senão enlanguesce e morre. Será
que não tem cabeça para imaginar uma maneira de ser independente de
qualquer esforço ou desejo que não sejam os seus próprios? Pegue um dia,
divida-o em seções, e designe uma tarefa para cada seção. Não deixe
tempo nenhum sem emprego, seja um quarto de hora, dez minutos, cinco
minutos... utilize tudo. Faça cada coisa a seu tempo, com método e
regularidade rígida. O dia vai se passar quase antes que se dê conta. E você
não deverá a ninguém o fato de ter ocupado todo o seu tempo livre. Não
precisará buscar a companhia, nem a conversa, nem a simpatia ou a
paciência de qualquer pessoa. Terá vivido como um ser humano
independente deve viver. Aceite este conselho: é o primeiro e último que
lhe dou. Assim não precisará de mim nem de mais ninguém, aconteça o
que acontecer. Se o recusar – e continuar a agir como fez até agora,
desejando, lamentando e vivendo ociosa – sofrerá as consequências da sua
insensatez, que serão ruins e insuperáveis. Digo-lhe isso com franqueza.
Escute, portanto, pois não repetirei o que estou lhe dizendo, vou apenas
agir. Depois da morte da mamãe vou lavar as mãos no que diz respeito a
você. No dia que o caixão for levado para o túmulo na igreja de Gateshead,
você e eu vamos nos separar como se nunca nos houvéssemos conhecido.
Não fique achando que só porque aconteceu de nascermos dos mesmos
pais vou permitir que me detenha, mesmo com as súplicas mais chorosas.
Garanto-lhe isso: se toda a raça humana, com exceção de nós duas, fosse
varrida da face da terra, e eu e você ficássemos sozinhas no planeta –
assim mesmo eu a deixaria no velho mundo e me dirigiria para o novo.
Então cerrou os lábios. – Você podia ter-se poupado o incômodo de desfiar essa ladainha
– respondeu Georgiana. – Todos sabem que você é a criatura mais egoísta
e sem coração do mundo. E eu sei do ódio rancoroso que tem de mim. Já
tive uma prova disso com os truques que usou no caso do Lord Edwin
Vere. Não podia suportar que eu ficasse acima de você, que tivesse um
título, que fosse recebida nos altos círculos onde você nem ousa mostrar a
cara. Então bancou a espiã e delatora e arruinou para sempre os meus
planos.
Georgiana tomou do lenço e ficou quase uma hora assoando o
nariz. Eliza continuou sentada, impassível, e persistiu nas suas ocupações.
Os sentimentos verdadeiros e generosos não são para todos. Ali
estavam expostas duas naturezas: uma, intoleravelmente azeda, a outra
abominavelmente insípida. O sentimento sem o juízo é uma droga
impotente, de fato. Mas o juízo sem o tempero do sentimento é um bocado
amargo e duro demais para a deglutição humana.
A tarde estava úmida e ventosa. Georgina pegara no sono no sofá,
sobre as páginas de um romance. Eliza fora ao serviço do Santo do Dia na
igreja nova, pois em matéria de religião era uma formalista rigorosa. Não
havia mau tempo que a impedisse de cumprir com o que considerava seus
deveres religiosos. Fizesse chuva ou sol, ia à igreja três vezes cada
domingo, e várias vezes durante a semana, quando havia orações.
Pensei em subir e ver como estava a enferma, que jazia no seu
leito, quase ignorada. Até os criados lhe devotavam pouca atenção. A
enfermeira contratada, não tendo ninguém para vigiá-la, escorregava para
fora do quarto sempre que podia. Bessie era mais dedicada, mas tinha sua
própria família para cuidar e só podia vir à mansão ocasionalmente. Como
esperava, encontrei o quarto deserto. A enfermeira não estava. A doente
permanecia imóvel, num estado de letargia, a face pálida afundada nos
travesseiros. O fogo estava se extinguindo. Reavivei o fogo, arrumei as
cobertas, olhei alguns instantes para ela que não podia me reconhecer, e
fui até a janela.
A chuva batia forte contra as vidraças, o vento rugia
tempestuosamente. “Eis alguém que logo estará ao abrigo das revoltas dos elementos
terrestres” pensei. “Esse espírito que agora luta para deixar seu invólucro
mortal, conseguirá elevar-se ao céu quando for finalmente libertado?”
Pensando sobre esse grande mistério, lembrei-me de Helen Burns.
Recordei suas palavras antes de morrer, sua fé e sua doutrina da igualdade
das almas desencarnadas. Ainda ouvia, em pensamento, a sua voz gentil.
Lembrava-me do seu aspecto pálido e espiritual, da sua face lívida e do
olhar sublime quando jazia no leito de morte, sussurrando seu desejo de
ser restituída ao reino do Divino Pai. Nesse momento ouvi uma voz fraca,
vinda da cama atrás de mim:
– Quem está aí?
Eu sabia que Mrs. Reed não falava há dias. Estaria ressuscitando?
Fui até ela.
– Sou eu, tia Reed.
– Eu, quem? Quem é você?
Olhava-me com surpresa e uma espécie de alarme, embora sem
rancor.
– Não a conheço, absolutamente. Onde está Bessie?
– Está no chalé, tia.
– Tia... Quem me chama de tia? Você não é uma das Gibsons. Mas
acho que a conheço... Esse rosto, essa testa e os olhos me parecem
familiares. Você parece... Parece Jane Eyre!
Não disse nada. Temia provocar um choque ao declarar minha
identidade.
– No entanto – disse ela – tenho medo que seja um engano: minha
mente me engana. Desejo tanto ver Jane Eyre que talvez tenha imaginado
uma semelhança que não existe. Além disso, em oito anos ela deve ter
mudado bastante...
Gentilmente assegurei-lhe que eu era a pessoa que ela pensava e
desejava que fosse. Quando vi que ela me compreendera e que seus
sentidos estavam lúcidos, expliquei-lhe que Bessie havia mandado o
marido buscar-me em Thornfield. – Sei que estou muito doente – ela disse, após algum tempo. – Há
pouco tentava me virar na cama e descobri que não posso mexer um
músculo. Ainda bem que consigo dominar a minha mente antes de morrer:
aquilo que desprezamos quando temos saúde, nos mortifica numa hora
como esta. A enfermeira está aí, ou você está sozinha?
Assegurei-lhe que estávamos sozinhas.
– Bem, por duas vezes causei-lhe um mal de que agora me
arrependo. Um foi quebrar a promessa que fiz ao meu marido de criá-la
como se fosse minha filha. O outro... – ela parou.
“Afinal, esse mal talvez não tenha tido grande importância”
murmurou para si mesma “e depois, ainda posso melhorar. Humilhar-me
assim diante dela é doloroso...”
Fez um esforço para mudar de posição, mas não conseguiu. Sua
fisionomia alterou-se, como se experimentasse alguma sensação interior,
precursora, talvez, do suspiro final.
– Bem, tenho que ir até o fim. A eternidade me espera. É melhor
que eu lhe diga... Vá até a minha gaveta, abra e pegue uma carta que está
lá.
Obedeci as instruções.
– Leia a carta – ela disse.
Era curta, e escrita nestes termos:
“Senhora
Peço-lhe a gentileza de mandar-me o endereço de minha
sobrinha, Jane Eyre, e contar-me como ela está. É minha intenção
escrever-lhe sem demora, e pedir-lhe que venha morar comigo na ilha da
Madeira. Graças à Providência consegui fazer fortuna, e como sou
solteiro e sem filhos, gostaria de adotá-la enquanto eu viver, e torná-la
minha herdeira assim que eu me for.
Sou, senhora, etc. etc...
JOHN EYRE Madeira”
Era datada de três anos atrás.
– Por que nunca fui informada disso? – perguntei.
– Por que eu a detestava tão firmemente, tão completamente, a
ponto de negar-lhe a oportunidade de prosperar. Não pude esquecer da sua
conduta para comigo, Jane... da fúria com que me enfrentou uma vez. O
tom que usou para dizer que me odiava mais do que a qualquer pessoa na
face da terra. Da sua voz e do seu olhar, tão diferentes dos de uma criança,
quando me disse que só de me ver ficava doente e que eu a tratava com
miserável crueldade. Não consegui esquecer o que senti quando você me
atacou e destilou o veneno que trazia na alma. Senti medo, como se um
animal que eu tivesse golpeado ou irritado, de repente me olhasse com
olhos humanos e me amaldiçoasse com voz humana. Traga-me um pouco
de água! Depressa!
– Querida Mrs. Reed – eu disse, enquanto lhe entregava a água –
não pense mais nessas coisas. Tire isso da sua mente. Perdoe a minha
linguagem passional: eu era uma criança então. Oito ou nove anos já se
passaram desde aquele dia.
Ela não escutou nada do que eu disse. Depois de tomar o gole de
água e recuperar o fôlego, continuou:
– Já lhe disse que não pude esquecer isso. Então me vinguei, pois
não suportava a ideia de que fosse adotada pelo seu tio e passasse a
desfrutar de uma situação de prosperidade e conforto. Escrevi para ele.
Disse-lhe que sentia pelo desapontamento que iria causar, mas Jane Eyre
estava morta, morrera de febre tifoide em Lowood. Agora faça como
quiser: escreva-lhe e desminta as minhas palavras, exponha-lhe a minha
falsidade. Você nasceu para ser a minha provação, tenho certeza. Devo
passar a minha última hora de vida lembrando de um ato que, se não fosse
por você, jamais teria cometido.
– Se ao menos eu pudesse convencê-la a não pensar mais nisso,
tia, e olhar-me com bondade e perdão... – Você tinha um temperamento mau – disse ela – que até hoje eu
não consigo compreender. Como você conseguiu, por nove anos, ser
paciente e cordata em relação ao tratamento que recebia, e no décimo ter
um ataque de fúria e violência? É algo que nunca compreenderei.
– Meu temperamento não é tão mau quanto a senhora pensa. Sou
passional, mas não vingativa. Muitas vezes, quando era criança, teria
ficado feliz em amá-la se tivesse me permitido. Desejo ardentemente
reconciliar-me com a senhora agora. Beije-me, tia.
Aproximei meu rosto dos seus lábios. Ela não o tocou. Disse que
a deixava oprimida, inclinando-me assim sobre o leito, e novamente pediu
água. Quando a deitei outra vez – pois a levantara e segurara enquanto
bebia – cobri-lhe a mão gelada com a minha. Seus dedos frios tremeram
ao contato, os olhos brilhantes evitaram os meus.
– Ame-me ou me odeie, como desejar – eu disse por fim. – A
senhora tem o meu total e completo perdão. Agora peça a bênção de Deus,
e descanse em paz.
Pobre mulher! Como sofria! Era muito tarde para tentar uma
mudança no seu modo de ser. Enquanto vivera, sempre me odiara.
Morrendo, ainda me odiava.
A enfermeira entrou, seguida de Bessie. Fiquei por ali ainda uma
meia hora, esperando ver algum sinal de amizade. Mas foi em vão. Estava
agora caindo em torpor, e sua mente não voltou a se recuperar. Morreu à
meia-noite desse dia. Eu não estava presente para fechar-lhe os olhos, nem
tampouco as suas filhas. Vieram nos contar na manhã seguinte que tudo
havia acabado. No momento em que a tiravam do quarto, Eliza e eu fomos
vê-la. Georgiana, que desatara num choro convulso, disse que não tinha
coragem de ir. Ali estava o antigo corpo robusto e ativo de Sarah Reed,
agora imóvel e rígido. Seus olhos duros como pedra, estavam fechados
pelas pálpebras frias. Sua testa e os traços marcantes ainda expressavam a
sua alma inexorável. Para mim, esse cadáver era um objeto estranho e
solene. Fixei o olhar nele com tristeza e dor, pois não inspirava nada de
suave, nem doce, nem piedoso, esperançoso ou submisso. Inspirava apenas
uma grande angústia pelos seus infortúnios... não pela minha perda. E um terror sombrio e sem lágrimas, pelo horror de uma morte em tais
circunstâncias.
Eliza observava a mãe calmamente. Após alguns minutos de
silêncio, disse:
– Ela tinha saúde para viver até uma idade avançada. Sua vida foi
abreviada pelos desgostos que teve.
Então um espasmo contraiu-lhe a boca por um instante. Quando
passou, ela virou-se e deixou o quarto. Eu também saí. Nenhuma de nós
derramou uma lágrima sequer.

Jane Eyre - Charlotte Brontë Onde histórias criam vida. Descubra agora