Um novo capítulo num romance é como um novo ato numa peça
teatral. E desta vez, quando eu levantar a cortina, leitor, deve imaginar que
está num quarto da Hospedaria George, em Millcote. As paredes são
forradas pelo mesmo papel de parede estampado que todos os quartos de
estalagem têm; possui o mesmo carpete, o mesmo mobiliário, os mesmos
ornamentos sobre a lareira, as mesmas gravuras, incluindo um retrato de
George III e outro do Príncipe de Gales, e uma representação de morte de
Wolfe. Tudo isso pode ser visto à luz de uma lamparina a óleo que pende
do teto e ao clarão do excelente fogo, junto ao qual estou sentada de capa e
chapéu. Minha sombrinha e o agasalho estão sobre a mesa. Estou tentando
me aquecer para espantar o frio e o entorpecimento contraídos em
dezesseis horas de exposição à crueza de um dia de outono. Deixei Lowton
às quatro horas da manhã, e o relógio de Millcote acaba de bater oito da
noite.
Bem, leitor, embora eu pareça confortavelmente instalada, não
estou muito tranquila. Pensei que quando a diligência chegasse haveria
alguém me esperando. Olhei ao redor ansiosamente, enquanto descia a
escadinha de madeira colocada junto ao estribo para minha conveniência.
Esperei ouvir o meu nome ser pronunciado, e ver uma carruagem qualquer
esperando para me transportar a Thornfield. Não havia nada disso à vista.
E quando perguntei a um atendente se alguém tinha perguntado por Miss
Eyre, recebi uma resposta negativa. Assim não tive outro recurso senão
solicitar um quarto. E aqui estou à espera, enquanto todo o tipo de dúvidas
e temores me assalta o espírito.
É uma sensação muito estranha para uma jovem inexperiente
sentir que está totalmente sozinha no mundo, sem contato com qualquer
parente, sem saber se o porto de destino pode ser alcançado e impedida,
por muitas razões, de voltar ao lugar que deixou. A emoção da aventura
atenua essa sensação, a chama do orgulho a aquece. Mas depois a pulsação do medo volta a perturbar. Esse medo se tornou mais intenso quando,
passada meia hora, eu ainda estava só. Resolvi tocar a campainha.
- Existe um lugar chamado Thornfield, aqui nas redondezas? -
perguntei ao criado que atendeu ao chamado.
- Thornfield? Não sei, senhora. Vou perguntar no bar.
E ele desapareceu, para reaparecer logo em seguida.
- Seu nome é Eyre, Miss?
- Sim.
- Tem uma pessoa lá embaixo lhe esperando.
Pulei, peguei meu agasalho e a sombrinha, e corri para a entrada.
Um homem estava de pé junto à porta aberta, e à luz dos lampiões da rua
pude ver vagamente um veículo atrelado.
- Esta é a sua bagagem? - disse ele de modo um tanto abrupto,
apontando para o baú.
- Sim.
Colocou-o no veículo, que era uma espécie de caleça, e entrei.
Antes que ele fechasse a porta perguntei-lhe a que distância ficava
Thornfield.
- Mais ou menos dez quilômetros.
- Quanto tempo leva para chegar lá?
- Uma hora e meia, mais ou menos.
Fechou a porta do carro, subiu à boleia e partimos. Nosso
progresso era lento, e tive bastante tempo para refletir. Sentia-me contente
por estar tão perto do fim da jornada. Reclinei-me no assento do veículo,
que era confortável, mas não elegante, e meditei à vontade.
Pensava comigo: "A julgar pela simplicidade da carruagem e do
criado, acho que Mrs. Fairfax não é uma pessoa muito elegante. Melhor
assim. Só uma vez vivi no meio de pessoas elegantes, e fui muito infeliz.
Será que ela vive só, apenas com essa menina? Se for assim, e se ela for
um pouquinho amigável, certamente nos daremos bem. Farei o melhor que
puder. É uma pena que fazer o melhor nem sempre seja suficiente. Em Lowood eu tomei essa resolução, perseverei nela e tive sucesso. Mas com
Mrs. Reed o meu melhor foi sempre tratado com desprezo. Peço a Deus
que Mrs. Fairfax não seja uma segunda Mrs. Reed. E se for não fico com
ela, de jeito nenhum! Pior por pior, sempre posso colocar outro anúncio.
Quanto será que já rodamos?"
Baixei a janela e olhei para fora. Millcote ficara para trás, e a
julgar pela quantidade de luzes devia ser um lugar de tamanho
considerável, muito maior que Lowton. Agora estávamos numa espécie de
propriedade comum, tanto quanto pude ver. Mas havia casas espalhadas
por todo o caminho. Senti que estava numa região bem diferente de
Lowood, mais populosa e menos pitoresca; mais movimentada e menos
romântica.
Os caminhos estavam pesados e a noite enevoada. O condutor
deixou o cavalo trotar na maior parte do caminho, e a hora e meia se
esticou para duas, pelo menos. Por fim ele voltou-se no assento e disse:
- A senhora não tá muito longe de Thornfield agora.
Olhei para fora de novo. Passávamos por uma igreja. Vi sua torre
larga e baixa contra o céu; o sino batia o quarto de hora. Vi também uma
estreita galáxia de luzes numa colina, assinalando um vilarejo ou aldeia.
Dez minutos depois, o cocheiro desceu e abriu um portão. Passamos e o
portão se fechou às nossas costas. Subimos lentamente uma rampa e
chegamos à frente de uma ampla casa. A luz de um candeeiro filtrava-se
pela cortina de uma janela em arco. Tudo o mais estava escuro. O carro
parou na frente da porta, que foi aberta por uma criada. Apeei-me e entrei
na casa.
- Por aqui, por favor, madame - disse a moça.
Eu a segui através de um saguão rodeado de portas altas. Ela
conduziu-me a uma sala duplamente iluminada, pelos candeeiros e pela
lareira, o que a princípio me ofuscou, pelo contraste com a escuridão a que
meus olhos tinham se habituado nas últimas duas horas. Quando consegui
enxergar, no entanto, encontrei-me diante de um quadro agradável e
delicioso. Uma sala pequena e confortável. Uma mesa redonda ao lado da
aconchegante lareira. E uma poltrona antiquada de espaldar alto, onde se
sentava a mais caprichosa velhinha, com um chapéu de viúva, vestido de
seda preta e um avental de musselina impecavelmente branco. Era
exatamente como eu imaginara Mrs. Fairfax, apenas parecia menos
imponente e mais suave. Estava ocupada em tricotar. Aos seus pés
sentava-se um gato enorme e cheio de pose. Em resumo, não faltava nada
para completar o ideal da felicidade doméstica. Raramente se poderia
imaginar uma recepção mais tranquilizadora para uma governanta nova.
Não havia grandeza para oprimir, nem pompa para envergonhar. Logo que
entrei a velha senhora levantou-se prontamente, e veio ao meu encontro
com a maior gentileza.
- Como vai, minha querida? Temo que sua viagem tenha sido
muito aborrecida, John dirige tão devagar! Deve estar com frio, venha para
junto da lareira.
- Miss Fairfax, imagino - disse eu.
- Sim, sou eu. Sente-se, por favor.
Levou-me até a sua própria cadeira, e começou a retirar meu xale
e desatar as fitas do meu chapéu. Supliquei-lhe que não se incomodasse.
- Oh! Não é incômodo algum! Acho que suas mãos estão quase
paralisadas de frio. Leah, traga um pouco de vinho do porto quente e uns
dois sanduíches: aqui estão as chaves da despensa.
Tirou do bolso um típico chaveiro de dona-de-casa, e entregou-o à
criada.
- Agora, chegue mais perto do fogo - ela continuou. - Trouxe sua
bagagem com você, não trouxe, minha querida?
- Sim, senhora.
- Vou mandar que levem para o seu quarto - disse, e saiu
apressada.
"Ela me trata como uma visita" pensei. "Não esperava essa
recepção, achei que encontraria frieza e secura. Isso não é nada parecido com o que ouvi sobre o tratamento dispensado às governantas. Mas não
devo cantar vitória tão cedo."
Mrs. Fairfax retornou. Tirou o material de tricô e um ou dois
livros que estavam sobre a mesa, para dar lugar à bandeja que Leah trouxe
em seguida. Ela mesma serviu o lanche. Senti-me um pouco confusa por
ser objeto de uma atenção maior do que jamais recebera na vida - ainda
mais que vinha da parte da minha patroa e superiora. Mas como ela
parecia não estar fazendo nada fora do comum, achei melhor aceitar sua
cortesia sem protestar.
- Devo ter o prazer de conhecer Miss Fairfax ainda esta noite? -
perguntei, depois de aceitar a refeição.
- O que você disse, minha querida? Eu sou um pouco surda -
respondeu a boa senhora, aproximando o ouvido da minha boca.
Repeti a questão com mais clareza.
- Miss Fairfax? Ah, você quer dizer Miss Varens! Varens é o
nome da sua futura aluna.
- É mesmo? Então ela não é sua filha?
- Não, não tenho filhos.
Eu teria prosseguido com as questões, perguntando de que modo
Miss Varens se relacionava com ela, mas me dei conta que não seria
educado fazer tantas perguntas. Além disso, saberia com o tempo.
- Estou tão feliz - ela disse, sentando-se à minha frente e pegando
o gato no colo - estou tão feliz que tenha vindo. Será muito agradável
viver aqui com uma companheira. Por certo que é bom a qualquer tempo,
pois Thornfield é uma bela mansão antiga, talvez um pouco negligenciada
nos últimos anos, mas ainda assim bastante respeitável. No inverno, porém, sentimos uma terrível solidão até nos melhores lugares. Quero
dizer... Leah é uma boa moça, e John e a esposa são ótimas pessoas, mas,
você sabe, são apenas criados, e não se pode conversar com eles em plano
de igualdade. Deve-se manter a devida distância, ou então se perde a
autoridade. No último inverno (que foi muito severo, você se lembra, quando não nevava, chovia e ventava) não recebemos nenhuma criatura
aqui, a não ser o açougueiro e o carteiro, E assim desde novembro até fevereiro. Fiquei realmente melancólica de sentar-me aqui sozinha, noite
após noite. Pedia a Leah que lesse para mim às vezes, mas creio que a
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Jane Eyre - Charlotte Brontë
RomansaÓrfã desde muito cedo, Jane Eyre leva uma vida solitária, até que encontra um emprego como governanta em Thornfield Hall, uma propriedade rural do misterioso e taciturno senhor Rochester. Jene se sente atraída por aquele homem calado, de espírito pe...