Quando Mr. St. John saiu, estava começando a nevar. A
tempestade prosseguiu durante toda a noite. No dia seguinte um vento
forte trouxe chuvas frias e torrenciais. Ao crepúsculo o vale inteiro estava
alagado e quase intransitável. Fechei a persiana, coloquei um capacho na
soleira da porta para evitar que a neve entrasse, aticei o fogo e sentei-me
junto à lareira por uma hora, ouvindo a fúria da tempestade. Então acendi
um candeeiro, peguei “Marmion” e comecei a ler.
Finda o dia sobre a escarpa do castelo de Northam
E sobre o rio Tweed, belo largo e profundo
E sobre as solitárias montanhas de Cheviot.
As torres maciças, o calabouço guardado,
As paredes que o rodeiam,
Brilham em dourado resplendor...
No ritmo da poesia, esqueci a tempestade.
Então ouvi um barulho. Pensei que fosse o vento balançando a
porta. Não. Era St. John Rivers que, tendo aberto o trinco, emergiu da
tormenta gelada, da escuridão profunda – e se postou diante de mim. A
capa que cobria sua alta figura estava branca como uma geleira. Fiquei
quase confusa, pois, com o vale bloqueado, não esperava nenhum visitante
naquela noite.
– Alguma notícia ruim? – perguntei. – Aconteceu alguma coisa?
– Não. Como você se alarma à toa! – respondeu.
Tirou a capa e pendurou-a atrás da porta. Recolocou também o
capacho que saíra do lugar com a sua entrada. Sacudiu a neve das botas. – Devo ter manchado a limpeza do seu assoalho – ele disse – mas
deve perdoar-me desta vez.
Aproximou-se do fogo.
– Tive bastante trabalho para chegar até aqui, acredite! –
observou, enquanto esquentava as mãos nas chamas. – Uma rajada de
vento quase me derrubou. Por sorte a neve ainda está bastante macia.
– Mas por que veio, então? – perguntei, sem conseguir me conter.
– Não é uma pergunta muito hospitaleira para se fazer a um
visitante. Mas já que perguntou, respondo que vim simplesmente para
conversar um pouco com você. Estava cansado dos meus livros silenciosos
e dos meus aposentos desertos. Além disso, desde ontem tenho
experimentado a ansiedade de uma pessoa a quem foi contada apenas a
metade de uma história, e que está impaciente para ouvir o resto.
Sentou-se. Lembrei-me da sua conduta estranha no dia anterior, e
comecei a temer que suas faculdades mentais tivessem sido abaladas. Mas
se estava louco, sua insanidade era do tipo mais comedido e frio. Eu nunca
vira seu belo rosto parecer mais cinzelado em mármore como agora,
enquanto ele afastava da testa os cabelos molhados de neve e deixava que
a luz do fogo batesse em cheio no seu rosto pálido. Senti pesar ao ver os
profundos traços de sofrimento e preocupação gravados ali. Esperei,
calada, que ele dissesse alguma coisa que eu pudesse ao menos
compreender. Mas agora ele apoiava a mão no queixo, o dedo sobre os
lábios: estava pensando. Espantei-me ao ver que sua mão parecia lívida,
como o rosto. Uma onda involuntária de piedade invadiu meu coração. Fui
levada a dizer:
– Gostaria que Diana ou Mary viessem morar com o senhor, não é
bom que viva assim sozinho. Além disso o senhor é muito descuidado com
a sua saúde.
– Absolutamente – ele disse. – Eu me cuido quando necessário.
Estou bem, agora. O que vê de errado em mim?
St. John disse isso de forma descuidada, com indiferença,
deixando evidente que a minha solicitude era totalmente supérflua, ao
menos na sua opinião. Fiquei em silêncio. Ele ainda movia vagarosamente o dedo sobre o lábio superior, e
seus olhos ainda vagavam, sonhadores, sobre as chamas brilhantes.
Considerando urgente dizer alguma coisa, perguntei-lhe então se não
estava sentindo uma corrente de ar vinda da porta atrás dele.
– Não, não! – respondeu, de modo breve e um tanto impaciente.
“Muito bem!” refleti “Se não quer falar, pode ficar calado. Vou
deixá-lo sozinho e retornar ao meu livro”.
Avivei o candeeiro e retomei a leitura de “Marmion”. Não tardou
que ele se mexesse, e meus olhos se dirigiram instantaneamente para os
seus movimentos. Pegou no bolso uma carteira forrada em marroquim,
tirou uma carta de dentro, leu-a em silêncio, dobrou-a e colocou-a de
volta. Voltou a meditar. Era inútil tentar ler com aquela figura fixa e
impenetrável na minha frente. Nem podia, na minha impaciência,
consentir em ficar calada. Ele que me censurasse, se quisesse, mas eu iria
falar.
– Teve notícias de Diana ou Mary recentemente?
– Não desde aquela carta que lhe mostrei semana passada.
– E quanto aos seus planos, houve alguma mudança? Será
chamado a deixar a Inglaterra antes do que espera?
– Temo que não, de fato. Uma coisa assim é boa demais para
acontecer comigo.
Embaraçada, mudei de assunto. Pensei em falar da escola e das
minhas alunas.
– A mãe de Mary Garnett está melhor, e Mary voltou hoje a
frequentar as aulas. Na semana que vem devo receber mais quatro alunas,
de Foundry Close. Não puderam vir hoje por causa da neve.
– De fato!
– Mr. Oliver está pagando por duas alunas.
– É mesmo?
– E ele pretende oferecer uma ceia para todas as alunas, no Natal.
– Eu sei. – Foi ideia sua?
– Não.
– De quem, então?
– Da sua filha, eu acho.
– É bem típico dela. É tão generosa!
– É.
Novamente houve uma pausa na conversa. O relógio bateu oito
horas. O som pareceu despertá-lo. Descruzou as pernas, sentou-se ereto e
voltou-se para mim.
– Deixe seu livro por um momento e venha sentar-se mais perto
do fogo – ele disse.
Espantada, e como meu espanto não tinha fim, obedeci.
– Meia hora atrás – ele começou – falei da minha ansiedade em
ouvir o final de uma história. Pensando nisso, acho que será melhor que eu
assuma o papel do narrador e que você seja a ouvinte. Antes de começar, é
justo avisá-la que talvez ache a história um tanto banal, mas detalhes
comuns às vezes ganham novo frescor quando contados por outra pessoa.
Além disso, é curta, por velha ou nova que seja.
– Há vinte anos, um pobre pároco – não importa o seu nome neste
momento – apaixonou-se pela filha de um homem rico. Ela também se
apaixonou por ele e desposou-o, contra o conselho de todos os seus
parentes. Em consequência disso foi deserdada imediatamente após o
casamento. Antes de dois anos, o imprudente casal estava morto, e estão
enterrados lado a lado, sob a mesma lápide (vi o seu túmulo: é parte do
campo de um enorme cemitério que circunda a catedral, soturna e
enegrecida pela fuligem, de uma cidade industrial no condado de...).
Deixaram uma criança que, desde o seu nascimento, foi entregue ao regaço
da Caridade... tão frio quanto a neve na qual eu quase afundei esta noite. A
Caridade levou a pequena orfãzinha para a casa dos seus ricos parentes
maternos. Foi criada por uma tia postiça, chamada (agora chegamos aos
nomes) Mrs. Reed de Gateshead. Você estremeceu... ouviu algum barulho?
Acho que é apenas um rato correndo pelas vigas da escola ao lado. Era um celeiro, antes que eu a reformasse, e os celeiros costumam ser abrigos de
ratos. Prossigamos. Mrs. Reed manteve a órfã por dez anos. Se estava feliz
ou não com ela não sei dizer, nunca me contaram. Mas, ao final desse
tempo, a menina foi transferida para um lugar que você conhece: a Escola
de Lowood, onde você mesma morou por tanto tempo. Parece que a
carreira dela lá foi honrosa: de aluna tornou-se professora, como você... É
espantoso como existem paralelos entre a sua história e a dela! Então
deixou a escola para ser governanta. Nisso também o destino dela é igual
ao seu. E a moça encarregou-se de educar a protegida de um certo Mr.
Rochester.
– Mr. Rivers! – interrompi.
– Posso imaginar o que sente – ele disse – mas contenha-se um
pouco mais. Já estou quase terminando, ouça-me até o fim. Nada sei do
caráter de Mr. Rochester, a não ser o simples fato de que ofereceu um
casamento honroso a essa jovem, e que ela descobriu, no próprio altar, que
ele tinha uma esposa ainda viva, embora fosse louca. Qual foi sua conduta
subsequente ou seus propósitos, fica no terreno da simples conjetura. Mas,
quando surgiu um fato que tornou necessária a presença da governanta,
descobriu-se que ela fugira... Ninguém sabia dizer quando, como, nem
para onde. Deixara Thornfield Hall à noite e todas as buscas para descobrir
o seu paradeiro foram infrutíferas. Reviraram o condado de um canto a
outro, e não se achou qualquer vestígio de informação a seu respeito.
Como era questão de extrema urgência que ela fosse encontrada, foram
colocados anúncios em todos os jornais. Eu mesmo recebi uma carta de
um tal Mr. Briggs, um procurador, comunicando os detalhes que acabei de
lhe contar. Não é uma história estranha?
– Diga-me apenas uma coisa – eu disse. – Já que sabe tanto pode
seguramente contar-me isto: o que foi feito de Mr. Rochester? Como e
onde ele está? O que está fazendo? Ele está bem?
– Ignoro qualquer coisa a respeito de Mr. Rochester: a carta só se
refere a ele para contar a tentativa fraudulenta e ilegal a que me referi.
Você devia perguntar o nome da governanta... e a natureza do evento que
requer a sua presença. – Ninguém foi a Thornfield Hall, então? Ninguém viu Mr.
Rochester?
– Creio que não.
– Mas escreveram-lhe?
– Naturalmente.
– E o que ele disse? Quem está com as suas cartas?
– Mr. Briggs declarou que a resposta ao seu pedido não veio de
Mr. Rochester, mas de uma senhora que se assinava “Alice Fairfax”.
Senti frio e empalideci. Meus piores temores provavelmente eram
verdadeiros. Mr. Rochester devia ter deixado a Inglaterra, com toda
probabilidade, e se precipitado em desespero para algum antigo refúgio no
continente. E qual o alívio que teria encontrado lá para seus severos
sofrimentos? Que objeto para suas fortes paixões? Oh, meu pobre patrão –
quase meu marido – a quem eu tantas vezes chamei de “meu querido
Edward”!
– Ele deve ter sido um homem mau – observou Mr. Rivers.
– O senhor não o conhece... não o julgue! – repliquei, com
veemência.
– Muito bem – respondeu ele, calmamente. – De qualquer forma,
meus pensamentos estão ocupados com outras coisas além dele: tenho que
terminar minha história. Se você não pergunta o nome dessa governanta
tenho que dizê-lo por minha própria conta. Espere! Tenho o nome aqui...
Sempre é melhor tomar nota das coisas mais importantes, para que fique
tudo preto no branco.
E ele pegou de novo a carteira, deliberadamente. Abriu-a,
vasculhou-a e de um dos seus compartimentos extraiu uma tirinha de
papel bem desgastada, rasgada às pressas. Reconheci na sua textura e nas
manchas de tinta azul, roxa e vermelha, a margem arrancada da folha que
cobria o retrato de Rosamond. Ele a colocou sob os meus olhos. E eu li –
escrita a nanquim, na minha própria letra – as palavras “Jane Eyre”,
resultado, sem dúvida, de algum momento de abstração. – Briggs escreveu-me a respeito de uma Jane Eyre – continuou –
os anúncios pediam por Jane Eyre. Eu conhecia uma Jane Elliot...
Confesso que tive minhas suspeitas, mas foi apenas ontem à tarde que elas
se transformaram em certeza. Aceita o nome e renuncia ao nome suposto?
– Sim... Sim! Mas onde está Mr. Briggs? Talvez ele saiba mais de
Mr. Rochester do que o senhor.
– Briggs está em Londres. Duvido que ele saiba de qualquer coisa
sobre Mr. Rochester. Não é nele que Briggs está interessado. Enquanto
isso, você esquece dos pontos principais para se interessar por ninharias:
não perguntou por que Mr. Briggs está à sua procura... o que ele quer com
você.
– Bem, o que ele quer?
– Apenas contar-lhe que seu tio, Mr. Eyre, residente em Madeira,
morreu. Que ele lhe deixou todos os seus bens e que você agora é rica...
Nada mais que isso.
– Eu? Rica?
– Sim. Você. Rica. Uma legítima herdeira.
Silêncio.
– Terá que provar sua identidade, é claro – continuou St. John. –
algo que não deve oferecer dificuldades. Depois entrará imediatamente na
posse da herança. Sua fortuna está investida em títulos ingleses, Briggs
tem o testamento e os documentos necessários.
Então, as cartas mudavam de mãos! É muito bom, leitor, ser
alçada da indigência à riqueza em apenas um momento... Realmente muito
bom. Mas não é uma coisa que se possa entender e, por conseguinte,
desfrutar tão de repente. Existem outros tipos de sorte na vida, até mais
emocionantes e sensacionais. Esta, no entanto, é uma coisa sólida, um
negócio do mundo real, não há nada de romântico em relação a isso. Todas
as suas ligações e manifestações são sólidas e racionais. Uma pessoa não
pula, ou salta, ou grita ao ouvir que ganhou uma fortuna. Começa a pensar
em responsabilidades, a ponderar negócios, a ver que uma satisfação tão
sólida exige certos cuidados, e se contém, pensando na sua bênção com
solenidade. Além do mais, as palavras Herança e Legado andam de mãos
dadas com as palavras Morte e Funeral. Acabara de ouvir que meu tio
morrera... o único parente que eu tinha. Desde que soube da sua existência
tinha acalentado a ideia de um dia conhecê-lo: agora isso nunca
aconteceria. E assim aquele dinheiro vinha apenas para mim, não para
mim e uma família que se alegrasse também. Apenas para mim. Sem
dúvida era um grande benefício. E a independência seria gloriosa – sim, eu
o sentia – meu coração se alargava com a ideia.
– Levantou a cabeça, afinal – disse Mr. Rivers – Pensei que
Medusa tivesse olhado para você e que a tivesse transformado em pedra.
Talvez agora pergunte quanto irá receber?
– Quanto vou receber?
– Oh! Uma ninharia! Nada que valha a pena mencionar... Vinte
mil libras, eu acho... Mas o que vale isso, não é mesmo?
– Vinte mil libras?
Levei outro susto... Havia pensado em quatro ou cinco mil. Essa
notícia me tirou o fôlego por um momento e Mr. St. John, a quem eu nunca
ouvira rir, agora ria.
– Bem – disse ele – se você tivesse cometido um assassinato e eu
lhe dissesse que seu crime foi descoberto, dificilmente poderia parecer
mais perplexa.
– É uma quantia muito alta... Não acha que há algum engano?
– Não há engano nenhum.
– Talvez tenha lido errado as cifras... Devem ser duas mil!
– Foi escrito em letras, não em números – vinte mil.
Senti-me novamente como um indivíduo que, avaliando mal seus
poderes gastronômicos, senta-se sozinho para festejar numa mesa
abarrotada de comida para cem pessoas. Mr. Rivers levantou-se e vestiu a
capa.
– Se a noite não estivesse tão terrível – ele disse – mandaria
buscar Hannah para fazer-lhe companhia. Parece desesperada demais para
ficar sozinha. Mas Hannah, coitada!, não consegue enfrentar a neve tão bem como eu, suas pernas não são tão firmes. E por isso devo deixá-la só
com sua tristeza. Boa-noite.
Ele já ia abrindo o trinco quando, de repente, me ocorreu um
pensamento.
– Espere um minuto! – gritei.
– O que foi?
– Quero saber o motivo pelo qual Mr. Briggs lhe escreveu a meu
respeito. Como ele o conhecia, ou como pôde imaginar que o senhor,
vivendo num lugar tão retirado, pudesse ajudá-lo a me encontrar.
– Ah! Eu sou um clérigo – ele disse – e os clérigos são sempre
consultados sobre casos estranhos.
O trinco rangeu outra vez.
– Não. Essa resposta não me basta! – exclamei.
E, de fato, havia algo naquela resposta apressada e pouco
esclarecedora que, em vez de aplacar, provocou ainda mais a minha
curiosidade.
– É um negócio muito estranho! – acrescentei. – Preciso saber
mais a respeito disso.
– Numa outra ocasião.
– Não! Agora... Agora!
Como ele fizesse menção de sair, coloquei-me entre ele e a porta.
St. John pareceu muito embaraçado.
– O senhor não irá embora até que me conte tudo – disse.
– Eu preferia não dizer agora.
– O senhor pode dizer... deve dizer!
– Preferia que Diana ou Mary lhe contassem.
É claro que essas objeções levaram minha ansiedade ao máximo.
Ele devia satisfazer a minha curiosidade, e sem demora. Disse-lhe isso.
– Mas eu lhe informei que era um homem duro – ele disse –
difícil de persuadir. – E eu sou uma mulher dura – impossível de dissuadir.
– Também sou frio – ele continuou. – Nenhuma emoção me afeta.
– Enquanto eu sou passional, e o fogo derrete o gelo. O calor
daquele fogo derreteu toda a neve da sua capa e espalhou-a sobre o meu
assoalho, transformando-o numa rua suja. Se deseja ser perdoado, Mr.
Rivers, pelo alto crime e a deselegância de ter estragado o meu piso, digame o que quero saber.
– Está bem, então – ele disse. – Concordo. Senão pela sua
ansiedade, ao menos pela sua persistência. Como água mole em pedra
dura... Além disso, algum dia vai descobrir... Tanto faz agora ou depois.
Seu nome é Jane Eyre?
– Naturalmente. Isso já foi esclarecido antes.
– Você não sabe, talvez, que eu tenho o seu sobrenome? Que fui
batizado St. John Eyre Rivers?
– Não, realmente! Lembro-me agora de ter visto a letra “E” no
meio das suas iniciais, escritas nos livros que me emprestou tantas vezes.
Mas nunca perguntei a que nome se referia. E então? Certamente...
Parei. Não confiava em mim para imaginar, muito menos para
expressar, a ideia que me assaltou... que tomou corpo... e que em poucos
segundos se tornou uma forte e sólida probabilidade. As circunstâncias se
entrelaçavam, se ajustavam, entravam em ordem. A cadeia que até aqui
sustentara uma sucessão de elos sem forma definida, surgia agora
coordenada – todos os aros perfeitos, em conexão completa. Eu soube, por
instinto, como as coisas eram, antes mesmo que St. John dissesse uma
palavra. Mas não posso esperar que o leitor tenha a mesma percepção
intuitiva, por isso repito a sua explicação.
– O nome da minha mãe era Eyre. Ela tinha dois irmãos. Um, o
clérigo que casou-se com Miss Jane Reed, de Gateshead. O outro era John
Eyre, proprietário de terras, comerciante, até há pouco estabelecido em
Funchal, na ilha da Madeira. Mr. Briggs, na qualidade de procurador de
Mr. Eyre, escreveu-nos em agosto passado para informar a morte do nosso
tio, e dizer que ele deixara sua fortuna para a filha órfã de seu irmão
clérigo. Negligenciou-nos no testamento por causa de uma briga, jamais esquecida, entre ele e meu pai. Escreveu novamente há poucas semanas
para nos contar que a herdeira não fora localizada, e perguntar se sabíamos
algo a respeito dela. Um nome, casualmente escrito numa folha de papel,
permitiu-me encontrá-la. O resto você sabe.
Novamente tentou sair, mas encostei-me na porta para impedi-lo.
– Deixe-me falar – eu disse – mas preciso de um momento para
recobrar o fôlego e refletir.
Fiz uma pausa. Ele continuou parado diante de mim, chapéu na
mão, parecendo bastante sereno. Continuei:
– Sua mãe era irmã do meu pai?
– Sim.
– E, portanto, minha tia?
Ele assentiu.
– O meu tio John também era o seu tio John? O senhor, Diana e
Mary são filhos da irmã, assim como eu sou filha do irmão dele?
– Inegavelmente.
– Vocês três, portanto, são meus primos? Metade do nosso sangue
provém da mesma fonte?
– Somos primos, sim.
Observei-o. Sentia como se tivesse encontrado um irmão. Um
irmão de quem podia me orgulhar, a quem podia amar. E duas irmãs, cujas
qualidades eram tais que, mesmo quando as conhecera como simples
estranhas, inspiraram-me sincera afeição e admiração. As duas moças a
quem – ajoelhada no chão molhado e espiando pela baixa janela
envidraçada da cozinha de Moor House, eu fitara com uma mistura tão
estranha de interesse e desespero – eram minhas parentas próximas. E o
jovem e soberbo cavalheiro que me encontrara quase morrendo na soleira
da sua porta era meu parente de sangue. Que gloriosa descoberta para uma
infeliz solitária! Isso era a verdadeira riqueza! A riqueza do coração! Uma
mina de afetos puros e felizes. Era uma verdadeira bênção: brilhante,
vívida e revigorante. Não era como a dádiva do ouro, pesada e medida:
bem-vinda ao seu modo, mas moderada no seu efeito. Bati palmas, numa explosão de súbita felicidade... Meu pulso se acelerou, minhas veias
latejavam.
– Oh! Estou feliz! Estou feliz! – exclamei.
St. John sorriu.
– Eu não disse que você esquece os pontos essenciais para se
ocupar com ninharias? – perguntou. – Quando lhe contei que ganhou uma
fortuna, ficou séria. E agora, por uma coisa sem importância, está
exultante.
– O que quer dizer? Pode não ter importância para o senhor, pois
tem irmãs e não liga para uma prima. Mas eu não tinha ninguém, e agora
três parentes – ou dois, se o senhor prefere não ser incluído – surgiram no
meu mundo adulto. Repito: estou feliz!
Caminhei a passos largos pela sala. Parei, meio sufocada pelos
pensamentos que se sucediam mais rápido do que eu os podia receber,
entender e ajustar... Ideias sobre o que podia, devia, seria e poderia ser dali
para frente. Olhei para a parede branca: parecia um céu cheio de estrelas
ascendentes, cada uma iluminando um desejo ou um propósito. Agora
poderia beneficiar aqueles que me salvaram a vida, a quem até aqui amara
de forma estéril. Estavam sob um jugo: eu podia libertá-los. Achavam-se
dispersos: eu podia reuni-los. A independência e a abundância que me
abençoavam poderiam ser deles também. Não éramos quatro? Vinte mil
libras, divididas igualmente, dariam cinco mil para cada um. Seria justo
para com todos, nossa felicidade mútua estaria assegurada. A riqueza,
então, não me seria pesada. Não representaria mais um legado de moedas,
mas um legado de vida, esperança e alegria.
Qual era a expressão do meu rosto enquanto essas ideias tomavam
conta do meu espírito, não saberia dizer. Mas percebi que Mr. Rivers
colocara uma cadeira atrás de mim e delicadamente tentava me fazer
sentar. Também pediu que eu me acalmasse. Desprezei a insinuação de
desamparo e perturbação, afastei sua mão e comecei a andar novamente.
– Escreva amanhã para Diana e Mary – eu disse – e diga-lhes para
virem para casa imediatamente. Diana me disse que elas se considerariam
ricas se tivessem mil libras. Com cinco mil, vão viver muito melhor. – Diga-me onde posso pegar um copo-d’água – disse St. John. –
Deve realmente fazer um esforço para controlar suas emoções.
– Bobagem! E qual seria o efeito desse legado sobre o senhor?
Será que o manteria na Inglaterra e o induziria a casar-se com Miss Oliver
e estabelecer-se como um mortal comum?
– Você está divagando: sua cabeça ficou confusa. Fui muito
abrupto ao comunicar-lhe as notícias. Excitou-se além das suas forças.
– Mr. Rivers! O senhor me faz perder a paciência. Estou no meu
juízo perfeito, é o senhor que não compreende. Ou melhor, finge não
compreender.
– Talvez eu possa compreender, se você se explicar um pouco
melhor.
– Explicar! O que há para ser explicado? Será que não vê que
vinte mil libras, a soma em questão, dividida igualmente entre um
sobrinho e três sobrinhas dá cinco mil para cada um? O que lhe peço é que
escreva para suas irmãs e lhes conte da fortuna que virá para elas.
– Para você, é o que quer dizer.
– Já firmei meu ponto de vista sobre este caso, e sou incapaz de
adotar outro. Não sou uma egoísta brutal, nem cegamente injusta, nem
maldosamente ingrata. Além do mais, estou decidida a ter um lar e uma
família. Gosto de Moor House e viverei ali. Gosto de Diana e Mary e vou
apegar-me a elas pela vida inteira. Seria agradável e benéfico para mim
possuir cinco mil libras. Com vinte mil me sentiria atormentada e
oprimida, pois não me pertenceriam por justiça, mas por imposição da lei.
Abro mão, então, daquilo que é supérfluo para mim. Não deve haver
oposição nem discussão sobre isso. Vamos entrar em acordo e decidir esse
ponto de uma vez por todas.
– Está agindo num primeiro impulso. Deve pensar no assunto
durante alguns dias, para que sua decisão seja considerada válida.
– Ah! Se está duvidando da minha sinceridade, fico tranquila.
Consegue ver a justiça do caso?– Eu vejo uma certa justiça, mas isso é contrário ao costume.
Além do mais, a fortuna é toda sua por direito. Meu tio a ganhou por seu
próprio esforço e estava livre para deixá-la a quem quisesse. Deixou para
você. Afinal de contas, a justiça lhe permite recebê-la. Deve considerá-la,
em sã consciência, inteiramente sua.
– Para mim – eu disse – é mais uma questão de sentimento do que
de consciência. Devo seguir os ditames do meu coração, raramente tive
oportunidade de fazê-lo. Mesmo que o senhor discuta, faça objeção e me
aborreça por um ano inteiro, não posso abrir mão do delicioso prazer que
antevi: o de pagar em parte uma pesada obrigação e ganhar afetos perenes.
– Pensa assim agora – respondeu St. John – porque ainda não sabe
o que é possuir riqueza, ou aproveitá-la. Não tem noção da importância
que vinte mil libras lhe darão, do lugar que será capaz de ocupar na
sociedade, das perspectivas que se abrirão para você. Você não pode...
– E o senhor? – interrompi. – Pode imaginar, de alguma forma, o
desejo que sempre senti pelo amor fraterno, de irmãos? Nunca tive um lar,
nunca tive irmãos ou irmãs. Agora quero e pretendo tê-los. O senhor não
está relutante em me aceitar e adotar como irmã, está?
– Jane, serei seu irmão, minhas irmãs serão suas irmãs – sem que
seja preciso sacrificar o seu legítimo direito.
– Irmão? Sim. A uma distância de mil léguas! Irmãs? Sim.
Escravizadas entre estranhos! E eu, rica! Feliz com um ouro que nunca
ganhei e que não mereço! E vocês, sem um centavo! Bela igualdade e
fraternidade! Estreita união! Afeto íntimo!
– Mas, Jane, seu desejo de ter laços de família e felicidade
doméstica pode ser realizado de outra maneira que não seja essa. Você
pode se casar.
– Bobagem, de novo! Casar! Não quero me casar e nunca vou me
casar!
– Isso é ir longe demais. Essas afirmações perigosas são uma
prova da perturbação em que se encontra.
– Não é ir longe demais. Sei o que sinto, e como tenho aversão à
simples ideia do casamento. Ninguém casará comigo por amor, e nunca aceitarei ser vista apenas como uma transação financeira. Não quero um
estranho, um forasteiro insensível, diferente de mim. Quero pessoas afins,
aqueles com quem eu tenha um sentimento de afinidade espiritual. Diga de
novo que será meu irmão: fiquei feliz e satisfeita quando disse essas
palavras. Repita, se puder, repita-as sinceramente.
– Acho que posso. Sei que sempre amei minhas próprias irmãs.
Sei em que se baseia minha afeição por elas: respeito pelo seu valor e
admiração por suas qualidades. Você também tem dignidade e princípios,
seus gostos e hábitos são semelhantes aos de Diana e Mary. Sua presença
me é sempre agradável, encontro conforto na sua conversa. Sinto que
posso, fácil e naturalmente, acolhê-la no meu coração, como minha
terceira e mais jovem irmã.
– Obrigada. Isso é suficiente por hoje. Agora é melhor que se vá,
pois se ficar provavelmente voltará a me atormentar com algum escrúpulo
duvidoso.
– E quanto à escola, Miss Eyre? Creio que agora deverá ser
fechada.
– Não. Manterei meu cargo de professora até que o senhor
encontre uma substituta.
Mr. St. John sorriu com aprovação. Apertamo-nos as mãos e ele
se foi.
Não preciso narrar em detalhes as lutas que se seguiram.
Consegui, à custa de muita argumentação, que os assuntos relativos à
herança fossem dispostos segundo o meu desejo. Minha tarefa foi muito
difícil. Mas, como eu estava absolutamente decidida – e meus primos
viram, afinal, que minha mente estava realmente fixada no propósito de
fazer uma divisão justa da fortuna – acabaram por sentir, nos seus próprios
corações, a equidade da intenção. Além disso, devem ter se convencido
intimamente que, em meu lugar, teriam feito exatamente a mesma coisa.
Consentiram, afinal, que o assunto fosse submetido à arbitragem. Os
juízes escolhidos foram Mr. Oliver e um hábil advogado e ambos
concordaram com o meu parecer: mantive minha decisão. Os papéis da
transferência foram emitidos, e St. John, Mary, Diana e eu fomos
legalmente habilitados.
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Jane Eyre - Charlotte Brontë
RomanceÓrfã desde muito cedo, Jane Eyre leva uma vida solitária, até que encontra um emprego como governanta em Thornfield Hall, uma propriedade rural do misterioso e taciturno senhor Rochester. Jene se sente atraída por aquele homem calado, de espírito pe...