Continuei com meu trabalho na escola, com o máximo de
diligência e fidelidade possível. Era um trabalho realmente difícil, no
início. Passado algum tempo, com muito esforço já conseguia
compreender as minhas alunas e a sua natureza. Analfabetas de todo, com
as faculdades embotadas, me pareciam irremediavelmente estúpidas. À
primeira vista, todas igualmente, mas eu me enganava. Havia uma
diferença entre elas, como existe entre as crianças educadas. E quando
passei a conhecê-las, e elas a mim, essa diferença logo apareceu. Uma vez
acalmado o espanto em relação à minha pessoa, meu modo de falar,
minhas regras e meus processos, descobri que algumas dessas camponesas
obtusas e boquiabertas se haviam transformado em meninas
suficientemente espertas e inteligentes. Muitas se mostravam gentis e
amáveis, e descobri entre elas não poucos exemplos de polidez natural e
autorrespeito inato, assim como excelente aptidão, que conquistaram a
minha boa vontade e admiração. Estas logo demonstraram prazer em fazer
bem os seus trabalhos, em manter-se limpas, aprendendo suas tarefas
regularmente e adquirindo maneiras ordeiras e discretas. Em alguns casos,
a rapidez do seu progresso era mesmo surpreendente. Fiquei tomada por
um orgulho honesto e feliz. Além disso, comecei a estimar pessoalmente
algumas das melhores meninas, e elas gostavam de mim. Entre as alunas
havia muitas filhas de lavradores, quase moças feitas. Já conseguiam ler,
escrever e costurar, e ensinei-lhes os elementos de gramática, geografia,
história e trabalhos de agulha mais elaborados. Entre elas encontrei
algumas de bom caráter, desejosas de aprender e dispostas a melhorar.
Com elas passava uma hora agradável durante a tarde, em suas próprias
casas. Seus pais (o lavrador e a esposa) me cumulavam de atenções. Era
um prazer aceitar a sua bondade simples e retribuir-lhes com consideração
– com um respeito escrupuloso pelos seus sentimentos – ao qual eles
talvez não estivessem acostumados, e que ao mesmo tempo os encantava e beneficiava. Isso os elevava perante seus próprios olhos, e os fazia lutar
para merecer o tratamento diferente que recebiam.
Senti que me tornara querida na vizinhança. Onde quer que fosse
ouvia por todo o lado saudações gentis, e era recebida com sorrisos
amistosos. Viver entre a aprovação geral, ainda que vinda apenas de
pessoas pobres, é como “sentar-se ao sol calmo e doce”, sentimentos de
serenidade brotam e florescem sob os seus raios. Nesse período da minha
vida, meu coração mais comumente se enchia de gratidão do que afundava
no desânimo. E ainda assim, leitor, para dizer-lhe tudo, no meio dessa
existência calma e útil, após um dia passado em meio ao meu ofício entre
as alunas, ou de uma noite solitária ocupada em ler ou desenhar, eu
costumava mergulhar em estranhos sonhos à noite. Sonhos cheios de cor,
de agitação, de ideais, de movimentos, de tempestades. Sonhos em que,
entremeando cenas inusitadas – carregadas de aventura, de perigos,
agitação e mudanças românticas – eu encontrava Mr. Rochester uma e
outra vez, e sempre em alguma crise excitante. E a impressão de estar nos
braços dele, ouvindo sua voz e fitando os seus olhos, tocando sua mão e
sua face, amando-o, sendo amada por ele, renovava com todo o ardor a
esperança de passar a vida ao seu lado. Então acordava. Lembrava de onde
estava, e em que situação. Levantava-me da cama sem cortinas, tremendo,
tiritando. E a noite escura e calma testemunhava a convulsão do desespero
e ouvia o grito da paixão. Às nove horas da manhã seguinte, pontualmente,
estava abrindo a escola. Tranquila, composta, preparada para as duras
tarefas do dia.
Rosamond Oliver cumpriu sua palavra de vir me visitar.
Geralmente visitava a escola durante sua cavalgada matutina. Chegava
galopando até a porta com seu pônei, seguida por um criado de libré,
também montado. Não se podia imaginar nada mais delicioso que a sua
aparência: o traje cor de púrpura, o chapéu de amazona de veludo negro
graciosamente pousado sobre os longos cachos que beijavam suas faces e
cascateavam pelos ombros. E era assim que ela entrava na escola rústica, e
passeava entre as fileiras de espantadas aldeãs. Costumava vir na hora em
que Mr. Rivers estava dando sua aula diária de catecismo. Creio que os
olhos da visitante penetravam profundamente no coração do jovem pastor.
Uma espécie de instinto parecia avisá-lo da sua entrada, mesmo quando não estava olhando. E se ele estivesse olhando para a porta quando ela
aparecia, ficava ruborizado, e suas feições de mármore, mesmo sem
relaxar, mudavam de modo indescritível. Expressavam um fervor
reprimido na sua própria quietude, mais intenso do que indicavam a
contração dos músculos ou os lampejos do olhar.
Estava claro que ela conhecia o seu poder. Na verdade, St. John
não escondia – porque não conseguia – o efeito que ela lhe causava. A
despeito do seu estoicismo cristão, quando ela surgia e se dirigia a ele,
sorrindo-lhe de modo alegre, encorajador e mesmo afetuoso, suas mãos
tremiam e os olhos brilhavam. Era como se ele dissesse, com seu olhar
triste e resoluto, o que os lábios não diziam: “Eu a amo, e sei que também
me ama. Não é o medo do fracasso que me mantém calado: se oferecesse
meu coração acredito que o aceitaria. Mas meu coração já foi destinado a
um altar sagrado, as chamas já se acenderam em torno dele. Logo não será
mais do que um sacrifício consumado”.
E ela então ficava zangada, como uma criança desapontada. Uma
nuvem empanava sua radiante vivacidade. Tirava rapidamente a mão de
entre os dedos dele e dava as costas com petulância à sua figura ao mesmo
tempo heroica e martirizada. Sem dúvida, quando ela o deixava desse
modo, St. John daria o mundo para segui-la, chamá-la, detê-la. Mas não
concederia uma oportunidade aos céus, nem desistiria, pela bemaventurança do seu amor, da esperança de alcançar o verdadeiro e eterno
Paraíso. Além disso, não poderia abrigar tudo o que tinha em sua natureza
– o refugiado, o ambicioso, o poeta, o sacerdote – nos limites de uma
única paixão. Ele não podia – e não queria – renunciar ao seu árduo campo
de luta de missionário pelos salões e a paz de Vale Hall. Aprendi tanto
sobre ele ao invadir uma vez os seus segredos, apesar da sua reserva.
Miss Oliver já me honrara com frequentes visitas ao meu chalé.
Eu já conhecia seu caráter por completo, pois não tinha mistérios nem
disfarces. Era coquete, mas não insensível. Exigente, mas não
desprezivelmente egoísta. Havia sido agraciada pelo nascimento, mas não
era totalmente mimada. Arrebatada, porém bem-humorada. Vaidosa (nem
poderia deixar de sê-lo, quando qualquer olhar no espelho mostrava-lhe
tantos atributos adoráveis), mas não arrogante. Era generosa, isenta do
orgulho da riqueza, ingênua, bastante inteligente, alegre, vivaz e descuidada. Encantadora, em suma, mesmo para uma fria observadora do
seu próprio sexo como eu. Mas não despertava um interesse profundo,
nem era inteiramente empolgante. Tinha uma mente muito diferente, por
exemplo, das irmãs de St. John. Gostava dela quase como gostava da
minha aluna Adele. Exceto que, quando se cuida e ensina uma criança,
cria-se um afeto mais intenso do que aquele que se dedica a uma pessoa
adulta igualmente atraente.
Ela se tomou de um amável capricho por mim. Dizia que eu era
parecida com Mr. Rivers, mas, acrescentava “não tem nem um décimo da
beleza dele, apesar de ser uma almazinha pura e bela; ele, porém, é um
anjo”. Mas eu era, no entanto, boa, inteligente, equilibrada e firme como
ele. Como professora de aldeia eu era uma lusus naturae[40], afirmou.
Estava certa que a minha história, se fosse conhecida, daria um delicioso
romance. Uma tarde, enquanto inspecionava o armário e a gaveta da mesa
na minha pequena cozinha, com seu habitual jeito infantil e suas perguntas
indiscretas, embora inofensivas, primeiro descobriu dois livros franceses,
um volume de Schiller, uma gramática e um dicionário de alemão. Depois
encontrou meus materiais de desenho e alguns esboços, incluindo um
desenho a lápis de uma menina de rosto angélico, uma das minhas alunas,
e diversas vistas do Vale de Morton e da charneca ao redor. Primeiro foi
tomada pela surpresa, depois vibrou de satisfação. Aqueles desenhos
haviam sido feitos por mim? Eu sabia francês ou alemão? Que amor, que
milagre eu era! Desenhava melhor que a sua professora na principal escola
de S... Será que aceitaria fazer um retrato dela, para oferecer ao pai?
– Com prazer – respondi.
Senti a excitação do artista ante a ideia de fazer um retrato de um
modelo tão perfeito e radiante. Ela usava um vestido de seda azul
profundo, o pescoço e os braços nus. Seu único adorno eram os cabelos
castanhos, que ondulavam sobre seus ombros com toda a graça dos cachos
naturais. Tomei uma fina tela e tracei um cuidadoso perfil. Prometi a mim
mesma o prazer de colori-lo. Quando já estava ficando tarde, disse-lhe que
podia voltar outro dia para posar. Ela falou de mim ao pai de tal maneira que o próprio Mr. Oliver
acompanhou-a na tarde seguinte. Era um homem alto, de meia-idade,
feições maciças e cabelos grisalhos. Ao lado dele sua adorável filha
parecia uma flor vicejando radiosa ao lado de uma torre vetusta. Dava a
impressão de um homem taciturno e talvez orgulhoso, mas foi muito
gentil comigo. O esboço do retrato de Rosamond agradou-o imensamente.
Disse que daria um belo quadro. Insistiu, também, para que eu passasse a
tarde seguinte em Vale Hall.
Fui. Achei a residência grande e bonita, mostrando em
abundância a riqueza do proprietário. Rosamond demonstrou muita alegria
e prazer durante todo o tempo em que estive ali. Seu pai foi afável e,
quando começou a conversar comigo após o chá, expressou em termos
veementes sua aprovação pelo trabalho que eu estava realizando na escola
de Morton. Disse que, pelo que vira e ouvira, só temia que eu fosse boa
demais para o lugar, e que logo o deixasse em busca de uma situação
melhor.
– Na verdade – exclamou Rosamond – ela é inteligente o
suficiente para ser governanta de uma família de alta classe, papai.
Pensei que preferia muito mais estar onde estava do que em
qualquer família de alta classe do país. Mr. Oliver falou de Mr. Rivers – da
família Rivers – com grande respeito. Disse que era um nome muito
antigo naquela vizinhança e que os ancestrais haviam sido ricos. Que
antigamente toda a Morton pertencia a eles e que, mesmo agora, os
descendentes dessa casa poderiam, se quisessem, fazer uma aliança com as
melhores famílias. Considerava uma pena que um jovem tão educado e
talentoso tivesse decidido partir para longe como missionário, era
desperdiçar uma existência valiosa. Parecia, então, que o pai não colocaria
obstáculos a uma união entre Rosamond e St. John. Mr. Oliver, com
certeza, achava que a boa linhagem do jovem clérigo, seu nome antigo e
sua profissão sagrada eram compensações suficientes para a falta de
fortuna.
Estávamos em cinco de novembro, um feriado. Minha pequena
ajudante, após me prestar auxílio na limpeza da casa, fora embora bem
feliz com a moeda de um centavo que eu lhe dera. Tudo a minha volta estava limpo e brilhante: o chão escovado, a grelha polida, as cadeiras
enceradas. Já fizera minha toalete e tinha a tarde inteira diante de mim
para passar como eu quisesse.
Ocupei-me por uma hora traduzindo algumas páginas do alemão.
Então peguei minha paleta e os pincéis e dediquei-me à tarefa mais
agradável, porque mais fácil, de completar o retrato em miniatura de
Rosamond Oliver. A cabeça já estava pronta, só faltava pintar o fundo e
um drapeado para sombrear. Adicionar um toque de carmim aos lábios, um
cacho macio aqui e ali, um pouco de cor na sombra dos cílios sob as
pálpebras. Estava absorta na execução desses detalhes quando, após uma
rápida batida, a porta abriu-se para dar entrada a St. John Rivers.
– Vim ver como está passando o feriado – ele disse. – Não está
melancólica, está? Não. Isso é bom: enquanto pinta não se sentirá sozinha.
Veja que eu ainda desconfio de você, embora tenha se saído muitíssimo
bem até aqui... Trouxe-lhe um livro para as horas solitárias da noite.
Colocou sobre a mesa um livro novo. Era um poema: uma dessas
publicações originais frequentemente destinadas ao público afortunado
daquela época – a era de ouro da literatura moderna. Ah! Os leitores atuais
são menos favorecidos. Coragem! Não vou fazer acusações nem me afligir.
Sei que a poesia não morreu, nem a imaginação foi perdida. Tampouco
Mammon[41] tem poder sobre qualquer delas, para amordaçá-las ou
destruí-las. Um dia virá em que ambas afirmarão novamente sua
existência, sua presença, sua liberdade e força! São anjos poderosos,
seguros no céu! Sorriem quando as almas sórdidas se vangloriam e as
almas fracas choram diante da sua destruição. A poesia morreu? A
imaginação perdeu-se? Não! Mediocridade, não: não permita que a inveja
o leve a esse pensamento. Não! Elas não apenas vivem, como reinam e
redimem, e sem a sua influência divina espalhada por toda parte
estaríamos no inferno... O inferno da nossa própria mesquinhez!
Enquanto eu percorria ansiosamente as brilhantes páginas de
“Marmion”[42] (porque era “Marmion”), St. John parou para examinar a
minha pintura. Voltou a aprumar o corpo esbelto com um sobressalto. Não
disse nada. Olhei para ele, mas evitou o meu olhar. Eu conhecia bem seus
pensamentos e podia ler claramente no seu coração. No momento me sentia mais calma e fria do que ele: tinha temporariamente sobre ele essa
vantagem. Resolvi fazer-lhe algum bem, se pudesse.
“Com toda sua firmeza e autocontrole” pensei “ele exige demais
de si mesmo. Tranca no coração qualquer sentimento e dor – não expressa,
não confessa nem partilha nada. Sei que seria benéfico para ele falar um
pouco da doce Rosamond, com quem acha que não deve se casar. Vou fazêlo falar.”
Comecei dizendo:
– Sente-se, Mr. Rivers.
Mas ele respondeu, como sempre, que não podia ficar.
“Muito bem” respondi, mentalmente. “Fique de pé se quiser, mas
não irá embora assim tão depressa. Estou decidida: a solidão, afinal, é tão
ruim para o senhor quanto é para mim. Vou tentar descobrir a fonte secreta
da sua confiança e abrir uma brecha nesse peito de mármore, por onde
possa derramar uma gota do bálsamo da simpatia.”
– O retrato está parecido? – perguntei, sem rodeios.
– Parecido? Parecido com quem? Não olhei direito.
– Olhou, sim, Mr. Rivers.
Ele quase se assustou com a minha estranha e repentina
brusquidão: olhou-me espantado.
“Isso ainda não é nada” disse para mim mesma. “Não pretendo
ficar embaraçada com uma pequena carranca da sua parte. Estou decidida
a ir muito longe.”
Continuei:
– O senhor observou-o de perto, distintamente. Mas não faço
objeções a que olhe outra vez.
Levantei-me e coloquei-lhe o retrato nas mãos.
– Uma pintura muito bem executada – ele disse. – Muito suave,
de cores claras. O desenho está correto e gracioso.
– Sim, sim. Sei disso. Mas que tal a semelhança? Com quem se
parece? Controlando a hesitação, respondeu:
– Miss Oliver, creio eu.
– É claro. E agora, senhor, para premiá-lo pela arguta resposta,
prometo-lhe pintar cuidadosa e fielmente uma réplica desta mesma
pintura, desde que admita que o presente seria do seu agrado. Não
pretendo perder meu tempo e trabalho oferecendo-lhe algo que considere
sem valor.
Ele continuava a observar a pintura. Quanto mais a olhava, quanto
mais firme a segurava, mais parecia cobiçá-la.
– É parecida! – murmurou. – Os olhos estão bem desenhados: sua
tonalidade, a luz e a expressão são perfeitas. E ela sorri!
– Seria um conforto ou uma tortura para o senhor possuir uma
pintura similar? Diga-me. Quando estiver em Madagascar, ou no Cabo, ou
na Índia, seria um consolo ter essa lembrança consigo? Ou a visão dela lhe
traria recordações que o deixariam angustiado e aflito?
Ele levantou os olhos furtivamente. Lançou-me um olhar
perturbado, hesitante. Voltou a fitar o retrato.
– Que eu gostaria de tê-la, é certo. Se isso seria sensato ou
prudente, é outra questão.
Desde que me convencera que Rosamond gostava dele, e que seu
pai provavelmente não se oporia ao casamento, eu – menos exaltada na
minha análise do que St. John – firmei no coração a decisão de promover a
união dos dois. Parecia-me que, se ele possuísse a enorme fortuna de Mr.
Oliver, poderia fazer com ela tanto bem quanto se fosse para o exterior
desperdiçar seu talento e suas forças sob o sol tropical. Persuadida disso,
respondi:
– Pelo que posso ver, seria mais sábio e sensato levar consigo o
original logo de uma vez!
Naquele momento ele já havia se sentado. Colocara a pintura na
mesa diante de si e, com a fronte apoiada nas mãos, debruçava-se
amorosamente sobre ela. Percebi que não ficara zangado nem chocado
com a minha audácia. Vi mesmo que, falar assim francamente de um assunto que ele considerava inabordável – e vê-lo ser tratado com tanta
liberdade – começava a dar-lhe um novo prazer, um alívio inesperado. As
pessoas reservadas muitas vezes precisam discutir livremente seus
sentimentos e aflições, muito mais do que as pessoas expansivas. Os que
parecem estoicos também são humanos, afinal de contas, e “irromper”
com audácia e boa vontade no “mar silencioso” das suas almas é,
frequentemente, fazer-lhes um favor.
– Tenho certeza que ela gosta do senhor – eu disse, postada atrás
da sua cadeira – e o pai dela o respeita. Além disso, ela é uma moça
adorável, embora um pouco inconsequente. Mas o senhor tem juízo
suficiente para os dois. Deve casar-se com ela.
– Ela gosta de mim? – perguntou.
– Certamente. Mais do que de qualquer outra pessoa. Fala no
senhor o tempo todo: não há assunto de que goste mais ou mencione com
mais frequência.
– É muito agradável ouvir isso – ele disse – muito mesmo:
prossiga por mais um quarto de hora.
E ele realmente tirou o relógio do bolso e colocou-o sobre a mesa,
para medir o tempo.
– Mas qual é o sentido em prosseguir – perguntei – se o senhor
provavelmente está preparando algum firme argumento em contrário ou
forjando algum par de algemas para aprisionar seu coração?
– Não imagine coisas tão duras. Imagine que me sinto agora dócil
e enternecido. O amor humano jorrando como uma fonte refrescante e
inundando docemente todo o campo que eu lavrei com tanto trabalho e
cuidado – que tão assiduamente semeei com sementes de boas intenções e
renúncias. E que nesse momento foi inundado por uma torrente de néctar...
os brotos afogados... um delicioso veneno a consumi-los. Vejo-me agora
esparramado numa poltrona em Vale Hall, ao pé da minha esposa
Rosamond Oliver. Ela está falando comigo na sua voz doce, olhando-me
com aqueles olhos que a sua mão habilidosa retratou tão bem, sorrindo-me
com seus lábios de coral. Ela é minha... eu sou dela... A vida presente e o
passado me bastam. Oh, não! Não diga nada. Meu coração está tomado de prazer, meus sentidos extasiados... Deixe que se passe tranquilamente o
tempo que eu marquei.
Fiz-lhe a vontade: o relógio prosseguia em seu tique-taque, ele
ofegava baixinho. Permaneci calada. No meio desse silêncio, o quarto de
hora passou. Ele guardou o relógio, deitou a pintura na mesa, levantou-se e
parou junto à lareira.
– Bem – disse ele – já concedi espaço ao delírio e à ilusão. Pousei
a fronte no seio da tentação e, voluntariamente, coloquei meu pescoço no
seu jugo de flores. Provei da sua taça. Os coxins queimavam: há uma
serpente entre as flores e o vinho tem um gosto amargo. Suas promessas
são vazias, suas dádivas falsas. Eu vejo e conheço tudo isso.
Olhei-o, espantada.
– É estranho – ele prosseguiu. – Embora eu ame Rosamond Oliver
tão intensamente – com toda a intensidade, na verdade, de um primeiro
amor cujo objeto é especialmente belo, gracioso e fascinante – ao mesmo
tempo sinto uma calma e isenta convicção de que ela não seria uma boa
esposa para mim; de que não é a companheira que me convém, e que vou
descobrir isso um ano depois do casamento. E a esses doze meses de
ventura se sucederá uma vida de remorsos. Disso eu tenho certeza.
– Realmente, é muito estranho! – não pude evitar exclamar.
– Enquanto alguma coisa dentro de mim é muito sensível aos seus
encantos – ele continuou – outra é profundamente consciente dos seus
defeitos. Ela não simpatiza com nenhuma das minhas aspirações, nem
coopera com nada que eu me empenhe em realizar. Rosamond, uma
sofredora, uma trabalhadora, um apóstolo mulher? Rosamond, a esposa de
um missionário? Não!
– Mas o senhor não precisa se tornar um missionário. Pode abrir
mão disso.
– Abrir mão? Renunciar à minha vocação? Desistir da grande
obra da minha vida? Das fundações que farei na terra para erguer minha
mansão no céu? Desistir da esperança de entrar para o rol daqueles que
renunciam a todas as ambições pela glória de melhorar a vida dos seus
semelhantes... de levar o conhecimentos ao reino da ignorância... de prazer, meus sentidos extasiados... Deixe que se passe tranquilamente o
tempo que eu marquei.
Fiz-lhe a vontade: o relógio prosseguia em seu tique-taque, ele
ofegava baixinho. Permaneci calada. No meio desse silêncio, o quarto de
hora passou. Ele guardou o relógio, deitou a pintura na mesa, levantou-se e
parou junto à lareira.
– Bem – disse ele – já concedi espaço ao delírio e à ilusão. Pousei
a fronte no seio da tentação e, voluntariamente, coloquei meu pescoço no
seu jugo de flores. Provei da sua taça. Os coxins queimavam: há uma
serpente entre as flores e o vinho tem um gosto amargo. Suas promessas
são vazias, suas dádivas falsas. Eu vejo e conheço tudo isso.
Olhei-o, espantada.
– É estranho – ele prosseguiu. – Embora eu ame Rosamond Oliver
tão intensamente – com toda a intensidade, na verdade, de um primeiro
amor cujo objeto é especialmente belo, gracioso e fascinante – ao mesmo
tempo sinto uma calma e isenta convicção de que ela não seria uma boa
esposa para mim; de que não é a companheira que me convém, e que vou
descobrir isso um ano depois do casamento. E a esses doze meses de
ventura se sucederá uma vida de remorsos. Disso eu tenho certeza.
– Realmente, é muito estranho! – não pude evitar exclamar.
– Enquanto alguma coisa dentro de mim é muito sensível aos seus
encantos – ele continuou – outra é profundamente consciente dos seus
defeitos. Ela não simpatiza com nenhuma das minhas aspirações, nem
coopera com nada que eu me empenhe em realizar. Rosamond, uma
sofredora, uma trabalhadora, um apóstolo mulher? Rosamond, a esposa de
um missionário? Não!
– Mas o senhor não precisa se tornar um missionário. Pode abrir
mão disso.
– Abrir mão? Renunciar à minha vocação? Desistir da grande
obra da minha vida? Das fundações que farei na terra para erguer minha
mansão no céu? Desistir da esperança de entrar para o rol daqueles que
renunciam a todas as ambições pela glória de melhorar a vida dos seus semelhantes... de levar o conhecimentos ao reino da ignorância... de substituir a guerra pela paz... o cativeiro pela liberdade... a superstição
pela religião... o temor do inferno pela esperança do céu? Devo renunciar a
tudo isso? Isso me é mais caro do que o sangue que corre nas minhas
veias. É isso que tenho que buscar, é para isso que devo viver.
Depois de uma longa pausa, perguntei:
– E Miss Oliver? Sua tristeza e desapontamento não importam
para o senhor?
– Miss Oliver está sempre cercada de admiradores e bajuladores.
Em menos de um mês a minha imagem se apagará do seu coração. Ela me
esquecerá, e provavelmente se casará com alguém que a fará muito mais
feliz do que eu.
– O senhor fala com bastante frieza, mas sofre com esse conflito.
Está se desgastando.
– Não. Se eu estou um pouco inquieto, é por ansiedade com meus
projetos ainda não concluídos – minha partida constantemente adiada.
Somente hoje recebi a comunicação de que o meu sucessor, cuja chegada
espero há longo tempo, não poderá vir antes de três meses. E talvez esses
três meses se estendam para seis...
– O senhor treme e fica ruborizado sempre que Miss Oliver entra
na escola.
De novo uma expressão de surpresa cruzou-lhe a face. Ele não
imaginava que uma mulher pudesse falar desta forma com um homem. Já
eu me sentia à vontade com esse tipo de conversa. Nunca consegui me
comunicar com pessoas de mente firme, discreta e refinada – fossem
homens ou mulheres – até que superasse a reserva convencional,
ultrapassasse o portal da confiança e conquistasse um lugar no aconchego
dos seus corações.
– Você é original – disse ele – e não é nem um pouco tímida. Há
qualquer coisa de corajoso no seu espírito, assim como há algo de
penetrante no seu olhar. Mas deixe-me dizer-lhe que se engana
parcialmente na interpretação das minhas emoções. Acha que são mais
profundas e intensas do que realmente são. Você me concede um grau
maior de simpatia do que realmente mereço. Quando fico ruborizado ou sombrio perto de Miss Oliver, não me perdoo. Desprezo essa fraqueza. Sei
que é ignóbil: um mero fremir da carne e não, afirmo-lhe, uma convulsão
da alma. Esta continua tão firme como uma rocha firmemente plantada
nas profundezas de um mar agitado. Conheça-me como sou: um homem
duro e frio.
Sorri com descrença.
– Você desvendou o meu segredo sem reservas – continuou St.
John – e agora ele está ao seu dispor. No meu estado natural, despido desse
manto manchado de sangue com o qual o cristianismo cobre as
deformidades humanas, sou simplesmente um homem frio, rude e
ambicioso. De todos os sentimentos, apenas a afeição natural exerce uma
influência permanente sobre mim. O meu guia é a razão, não o sentimento.
Minha ambição não tem limites, meu desejo de me elevar mais alto e fazer
mais do que os outros é insaciável. Admiro o esforço, a perseverança, a
dedicação e o talento, pois são os meios com os quais os homens executam
grandes obras e sobem ao mais alto grau de eminência. Observo sua
carreira com interesse, porque a considero um tipo de mulher diligente,
ordeira e enérgica: não porque tenha pena do que sofreu ou ainda esteja
sofrendo.
– O senhor se descreve como um simples filósofo pagão – eu
disse.
– Não. Há uma diferença entre mim e os filósofos pagãos: eu
acredito em Deus, acredito no Evangelho. Você errou na classificação: não
sou pagão, mas um filósofo cristão. Um seguidor de Jesus. Como Seu
seguidor, adoto as Suas doutrinas puras, misericordiosas e benignas. Sou
um defensor do Senhor: jurei difundir a Sua doutrina. Cresci na religião, e
ela cultivou minhas qualidades inatas. Do germe da afeição natural fez
brotar a árvore frondosa da filantropia. Da selvagem e fibrosa raiz da
sinceridade fez crescer o senso de justiça divina. Da ambição de obter
renome e poder para a minha desprezível pessoa, formou a ambição de
propagar o reino do meu Senhor e obter vitórias para o estandarte da Cruz.
A religião me deu tudo isso, transformando a matéria original em algo
melhor, aparando e aperfeiçoando a natureza. Mas não pôde sufocar por completo a natureza. Não, ela não será sufocada até que este invólucro
mortal passe para a imortalidade.
Dito isto, pegou seu chapéu que estava sobre a mesa, ao lado da
minha paleta. Olhou novamente para o retrato.
– Ela é adorável – murmurou. – Realmente merece o nome de
Rosa do Mundo.
– E não devo pintar uma cópia para o senhor?
– Cui bono?[43] Não. Colocou sobre o retrato a fina folha de papel na qual eu
costumava descansar a mão enquanto pintava, para evitar sujar a tela. O
que ele de repente viu naquele papel branco é impossível dizer, mas algo
chamou-lhe a atenção. Pegou-a com pressa e olhou para a borda. Então
fixou em mim um olhar extremamente peculiar, de todo incompreensível.
Um olhar que parecia esquadrinhar e gravar mentalmente cada traço do
meu rosto, do meu corpo, do meu vestido. Atravessava tudo, penetrante,
rápido e afiado. Seus lábios se abriram, como se quisesse falar, mas
reprimiu o que ia dizer, fosse o que fosse.
– O que aconteceu? – perguntei.
– Nada deste mundo – foi a resposta.
Ao recolocar o papel vi-o rasgar um pedacinho da margem, que
desapareceu dentro da sua luva. E com um rápido aceno de cabeça e um
“boa-noite”, saiu.
– Bem! – exclamei, usando uma expressão da região. – Esta é de
tirar o chapéu, realmente!
Examinei o papel, por minha vez, mas não vi nada nele a não ser
algumas pequenas manchas de tinta, onde havia testado o pincel. Ponderei
sobre o mistério por um ou dois minutos. Achando-o insolúvel, porém, e
certa de que não devia ser importante, desisti do assunto e logo o esqueci.Nota: [40] Em latim no original = brincadeira da natureza. Termo criado pelos naturalistas medievais para designar qualquer criatura ou
espécime que desafia a classificação. [41] Mammon é um demônio, filho de Lúcifer, responsável pela avareza e também pela concessão de riquezas.
[42] Marmion é um poema épico de Sir Walter Scott, publicado em 1808.
[43] Expressão latina que significa “para o benefício de quem?”
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Jane Eyre - Charlotte Brontë
RomansaÓrfã desde muito cedo, Jane Eyre leva uma vida solitária, até que encontra um emprego como governanta em Thornfield Hall, uma propriedade rural do misterioso e taciturno senhor Rochester. Jene se sente atraída por aquele homem calado, de espírito pe...