os dias seguintes quase não vi Mr. Rochester. Durante as manhãs
estava muito ocupado com os negócios, e à tarde os cavalheiros de
Millcote e das vizinhanças costumavam visitá-lo, ficando às vezes para
jantar. Quando seu tornozelo ficou bom o suficiente para permitir que
montasse, passou a cavalgar durante boa parte do tempo. Talvez estivesse
retribuindo as visitas, pois não voltava senão tarde da noite.
Nesse período, até mesmo Adele raramente era chamada à sua
presença. Todo o meu relacionamento com ele limitava-se a um ocasional
encontro no saguão, nas escadas, ou no corredor. Às vezes passava por
mim com seu ar arrogante e frio, só demonstrando notar a minha presença
com um cumprimento vago ou um olhar distante. Outras vezes fazia uma
reverência ou sorria com a afabilidade própria de um cavalheiro. Suas
mudanças de humor não me ofendiam, porque eu sabia que não tinha nada
a ver com elas. O fluxo e o refluxo da maré tinham causas que não
dependiam de mim.
Certa noite, ele tinha companhia para jantar e mandou pedir a
minha pasta, sem dúvida para mostrar as pinturas. Os convidados partiram
cedo para atender a um compromisso público em Millcote, conforme me
informou Mrs. Fairfax. Como a noite estava chuvosa e fria, Mr. Rochester
não os acompanhou. Logo que eles saíram, tocou a sineta e veio uma
mensagem para que eu e Adele descêssemos. Escovei o cabelo da menina
e arrumei-a. Como eu usava o meu traje puritano usual não havia
necessidade de retoques – tudo era muito simples e discreto, incluindo as
tranças, para evitar desalinho. Descemos. Adele se perguntava se o petit
coffre afinal tinha chegado, pois, devido a algum engano, sua chegada
havia sido retardada. Ela teve sorte: ali estava ela, uma caixa pequena
sobre a mesa, que vimos quando entramos na sala de jantar. Ela parecia
saber disso por instinto.
– Ma boite! Ma boite![17] – exclamou, correndo em direção a ela. – Sim, aí está a sua “boite” finalmente. Leve-a para um canto, sua
parisiense da gema, e divirta-se estripando-a – disse a voz profunda e um
tanto sarcástica de Mr. Rochester, vinda das profundezas de uma imensa
poltrona ao lado do fogo.
– E lembre-se – continuou ele – não me aborreça com detalhes do
processo anatômico nem notícias sobre a condição das entranhas. Faça
tudo em silêncio. Tiens-toi tranquille, enfant. Comprends-tu?[18]
Adele parecia nem precisar da recomendação. Já havia se retirado
com o seu tesouro para um sofá e ocupava-se em desatar o nó que o
prendia. Depois de remover esse empecilho e levantar algumas folhas de
papel prateado, apenas exclamou:
– Oh ciel! Que c’est beau![19] – e quedou-se em extática
contemplação.
– Miss Eyre está com você? – perguntou o patrão, levantando-se a
meio na poltrona para lançar um olhar na direção da porta, junto à qual eu
estava de pé.
– Ah, bem... venha sentar-se aqui – disse ele, puxando uma
cadeira para perto da sua. E continuou – Não gosto muito da conversa das
crianças porque, velho solteirão que sou, não tenho nenhuma recordação
feliz associada à sua linguagem ceceada. Não conseguiria passar uma
manhã inteira num tête-à-tête com um fedelho. Não afaste a cadeira, Miss
Eyre, sente-se exatamente aí onde eu mandei... isto é, faça o favor. São tão
confusas essas civilidades! Sempre me esqueço delas. Também não
aprecio particularmente velhas senhoras simplórias. A propósito, tenho
que me lembrar da minha, não posso esquecê-la. Afinal ela é uma Fairfax,
ou foi casada com um, e dizem que o sangue é mais espesso do que a água.
Ele tocou a sineta e mandou chamar Mrs. Fairfax, que logo
chegou, com a cestinha de costura na mão.
– Boa noite, madame. Eu a chamei com um propósito caridoso.
Proibi Adele de falar comigo sobre os presentes e ela está queimando de
impaciência. Tenha a bondade de servir-lhe de ouvinte e interlocutora.
Será um dos atos mais benevolentes que a senhora já praticou. De fato, assim que Adele viu Mrs. Fairfax chamou-a para o sofá,
e então encheu-lhe o colo com os objetos de porcelana, de marfim e de
cera da sua “boite”, enquanto despejava exclamações e mostras de enlevo,
naquele inglês quebrado em que ela era mestra.
– Bem, agora que já cumpri meu papel como bom anfitrião –
continuou Mr. Rochester– colocando meus hóspedes a se entreterem uns
com os outros, estou livre para cuidar do meu próprio prazer. Miss Eyre,
coloque sua cadeira um pouco mais à frente, ainda está muito longe. Não
posso vê-la sem modificar minha posição nesta confortável poltrona, o que
não pretendo fazer.
Fiz como ele pediu, embora tivesse preferido ficar um pouco mais
na sombra. Mas Mr. Rochester tinha um modo tão incisivo de dar ordens,
que parecia natural obedecer-lho prontamente.
Nós estávamos, como eu disse, na sala de jantar. O lustre, que
havia sido aceso para a refeição, inundava o ambiente com sua luz festiva.
Um enorme fogo crepitava na lareira, todo rubro e claro. As cortinas
púrpura pendiam, ricas e amplas, diante da alta janela e do arco mais alto
ainda. Tudo estava imóvel, fora os sussurros de Adele (que não ousava
falar alto) e, preenchendo todas as pausas, o bater do vento de inverno
contra as vidraças.
Mr. Rochester, sentado na sua poltrona forrada de damasco,
parecia diferente daquele que eu conhecia antes. Não tão sério... e muito
menos melancólico. Havia um sorriso nos seus lábios e os olhos
brilhavam, talvez por efeito do vinho... não tenho certeza, mas acho
bastante provável. Para resumir: ele estava em seu humor pós jantar, mais
expansivo e cordial, e também mais indulgente consigo próprio que o seu
humor frio e rígido da manhã. Ainda assim, parecia afetadamente severo,
apoiando a cabeça maciça contra o espaldar da poltrona, a luz do fogo
batendo-lhe em cheio sobre os traços graníticos e os olhos grandes e
negros. Porque ele possuía grandes olhos negros, e muito bonitos
também... não sem uma certa mudança nas suas profundezas que, se não
era suavidade, pelo menos dava essa impressão.
Ele ficou olhando o fogo por uns dois minutos, enquanto eu
passava esse mesmo tempo a olhá-lo. De repente ele virou-se, e viu meus olhos cravados no seu rosto.
– Está me examinando, Miss Eyre – disse ele. – Acha que sou
bonito?
Se tivesse tido tempo para pensar, teria respondido a essa questão
com uma evasiva convencional e polida. Mas a resposta escapou-me dos
lábios antes que eu me desse conta:
– Não, senhor!
– Ah! Palavra de honra que existe alguma coisa de singular em
você! – disse ele – Quando senta assim, com as mãos cruzadas no colo e os
olhos no tapete (exceto, é claro, quando estão fixos no meu rosto, como
agora, por exemplo), tem o aspecto de uma pequena nonnete – uma noviça
– modesta, quieta, grave e simples. E quando a gente lhe faz uma pergunta
ou uma observação que é obrigada a responder, você dá uma resposta
direta que, se não é indelicada é pelo menos brusca. O que quer dizer com
isso?
– Fui muito franca, senhor, peço-lhe perdão. Eu deveria ter
respondido que não é muito fácil dar uma resposta imediata sobre questões
de aparências, que os gostos variam muito, e que a beleza é de pouca
importância, ou algo assim.
– Não devia ter respondido nada disso. Dizer que a beleza não tem
importância, francamente! E desse modo, com a pretensão de suavizar seu
ultraje anterior e abrandar-me até a placidez, você enfia uma faca afiada
no meu ouvido! Vá em frente: quais os defeitos que encontra em mim?
Será que não tenho os membros e as feições de qualquer outro homem?
– Mr. Rochester, permita-me retirar minha resposta anterior. Não
pretendia fazer uma réplica espirituosa. Foi apenas um erro.
– Apenas isso. Também acho. Mas você deve assumir a
responsabilidade dele. Vamos, faça-me uma crítica: meu semblante não
lhe agrada?
Levantou as ondas negras do cabelo, que se atravessavam em sua
testa, e mostrou uma cabeça bastante sólida, denotando o poder de suas
faculdades intelectuais, mas com uma abrupta deficiência onde o suave
sinal da benevolência devia elevar-se. – E agora, senhora: sou algum tipo de bobo?
– Longe disso, senhor. Acharia rude da minha parte perguntar-lhe
se é um filantropo?
– Mais essa! Outra estocada com a faca afiada, quando ela
pretende elogiar minha cabeça! E isso só porque eu disse que não gostava
da companhia de crianças e de mulheres mais velhas (falemos baixo!).
Não, minha jovem, geralmente não sou um filantropo, mas tenho
consciência.
E ele apontou, na própria cabeça, as proeminências que se
imagina indiquem a consciência e que, para sorte dele, eram bastante
desenvolvidas e emprestavam à parte superior da sua cabeça uma largura
marcante.
– Além disso – ele continuou – eu já tive um tipo de rude ternura
no coração uma vez. Quando tinha a sua idade eu era um rapaz
sentimental, defensor dos imaturos, infelizes e desvalidos. Mas o Destino
me maltratou desde então: até mesmo me amassou entre os dedos, e agora
me orgulho de ser duro e rijo como uma bola de borracha indiana.
Permeável, talvez, através de uma ou duas frestas, e com um ponto
sensível no meio da massa bruta. E então: há alguma esperança para mim?
– Esperança de quê, senhor?
– De minha re-transformação de borracha indiana em carne
humana?
“Ele com certeza bebeu demais” pensei, e não soube o que
responder a essa estranha questão. Como eu podia dizer se ele era capaz de
ser re-transformado?
– Você parece muito embaraçada, Miss Eyre, e já que não é mais
bonita do que eu sou, um ar de embaraço fica-lhe bem. Além disso, ajuda a
manter esses olhos penetrantes longe do meu rosto e os distrai com as
piores flores do tapete. Assim, continue embaraçada. Minha jovem, estou
disposto a ser comunicativo e sociável esta noite.
Com esse anúncio ele levantou-se e ficou de pé, apoiando o braço
no consolo de mármore da lareira. Nessa posição seu corpo era claramente
visível, assim como o rosto. O tórax muito largo era quase desproporcional aos membros. Muitos talvez o considerassem um homem
feio, mas havia tanto orgulho inconsciente no seu porte, tanta desenvoltura
nas maneiras, um olhar de tanta indiferença quanto à própria aparência,
uma confiança tão arrogante no poder de suas outras qualidades,
intrínsecas ou não, que não se atentava para a falta de atrativos pessoais.
Olhando para ele, imediatamente se compartilhava dessa indiferença que,
mesmo num sentido cego e imperfeito, revelava fé em si próprio.
– Estou disposto a ser comunicativo e sociável esta noite – ele
repetiu – foi por isso que a chamei. O fogo e o lustre não são companhia
suficiente para mim, nem mesmo Pilot, pois nenhum deles pode falar.
Adele seria um pouquinho melhor, mas ainda está bem longe do esperado.
Mrs. Fairfax idem. Assim, presumo que você pode me acompanhar, caso
deseje. Deixou-me intrigado na primeira noite que a convidei a descer.
Quase me esqueci de você desde então: outras ideias afastaram-na da
minha cabeça. Mas esta noite estou decidido a ficar à vontade, dispensar o
que me incomoda e procurar o que me agrada. Agora me agradaria ajudála a se sentir mais à vontade... saber mais a seu respeito. Portanto, fale.
Em vez de falar eu sorri. E não era um sorriso nem complacente
nem submisso.
– Fale! – insistiu ele.
– Sobre o quê, senhor?
– Sobre o que quiser. Deixo o assunto e a maneira de abordá-lo
inteiramente à sua escolha.
Assim, sentei-me e não disse nada.
“Se ele espera que eu fale pelo simples prazer de falar e me
exibir, vai perceber que bateu na porta errada” pensei.
– Você é muda, Miss Eyre?
Eu estava muda e imóvel. Ele inclinou levemente a cabeça na
minha direção, e com um simples e rápido olhar pareceu mergulhar nos
meus olhos.
– Teimosa e irritada... – ele disse – Ah! Tem alguma razão. Fiz
meu pedido de modo absurdo, quase insolente. Peço-lhe perdão, Miss Eyre. O fato é que não desejo tratá-la como uma subalterna, isto é
(corrigindo-se), reconheço apenas a superioridade que resulta de uma
diferença de vinte anos na idade e um século de adiantamento na
experiência. Isso é legítimo e j’y tiens, como diria Adele. E é apenas em
função dessa superioridade que lhe peço que tenha a bondade de conversar
um pouco comigo e distrair o meu espírito, que está atormentado por
pensar constantemente numa coisa só... gangrenando como um prego
enferrujado.
Ele se dignara a dar uma explicação, quase uma desculpa, e não
fiquei insensível à sua condescendência, nem queria parecer assim.
– Estou disposta a entretê-lo, se puder, senhor... bastante disposta.
Mas não posso escolher o assunto, pois como saberei o que pode interessálo? Pergunte alguma coisa e responderei da melhor forma possível.
– Bem, então para começar você concorda comigo que tenho o
direito de ser um pouco autoritário e brusco. Talvez até exigente algumas
vezes, nos terrenos estabelecidos. A saber: que sou velho o suficiente para
ser seu pai, e que tive experiências variadas com muitos homens de muitas
nações e vaguei por metade do globo, enquanto você viveu calmamente
com um grupo de pessoas numa casa?
– Como quiser, senhor.
– Isso não é resposta. Ou melhor, é uma resposta muito irritante,
porque é muito evasiva. Responda claramente.
– Eu não acho, senhor, que tenha o direito de me comandar só
porque é mais velho do que eu, ou porque viu mais do mundo do que eu. O
seu direito à superioridade depende do que fez com seu tempo e
experiência.
– Muito bem! Resposta pronta! Mas não vou permitir isso, não
favorece a minha causa, pois fiz um uso indiferente, para não dizer mau,
dessas duas vantagens. Deixando a superioridade de lado, ainda assim
concorda em receber minhas ordens agora e sempre, sem ficar ressentida
ou magoada com o meu tom de comando? Promete?
Sorri. Pensei comigo que Mr. Rochester era mesmo esquisito.
Esquecera-se que me pagava trinta libras por ano para receber suas ordens. – O sorrido é muito bom – disse ele, captando imediatamente a
expressão. – Mas fale, também.
– Estava pensando, senhor, que muito poucos patrões se dariam
ao trabalho de perguntar se os seus subordinados assalariados ficaram
ressentidos ou magoados com as ordens que receberam.
– Subordinados assalariados! Que é isso? Você é minha
subordinada assalariada? Ah, sim, havia me esquecido do salário! Bem,
então, nesse terreno mercenário me permitirá ser um pouco prepotente?
– Não, senhor. Nesse terreno não. Mas naquele em que o senhor
esquece isso e se preocupa se uma empregada está feliz ou não sob a sua
dependência, concordo de todo o coração.
– E concordará em dispensar uma porção de fórmulas e frases
convencionais, sem considerar que a omissão é uma insolência?
– Estou certa que nunca confundiria informalidade com
insolência. Da primeira eu gosto bastante. Quanto à outra nenhum ser
humano nascido livre pode submeter-se, mesmo por um salário.
– Bobagem! A maioria dos seres humanos nascidos livres se
submeteria a qualquer coisa por um salário. Então, guarde isso para si e
não se aventure em generalidades nas quais é extremamente ignorante. No
entanto, eu a cumprimento mentalmente pela resposta, a despeito da sua
imprecisão. Quanto ao modo com que foi dito, ou a substancia do discurso,
foi franca e sincera. Não se vê tais maneiras com frequência. Não! Ao
contrário! Afetação, frieza, estupidez, injúrias, mal entendidos são as
recompensas usuais da franqueza. Nem três em três mil governantas mal
saídas do colégio, teriam me respondido da maneira que você fez. Mas não
pretendo envaidecê-la. Se foi moldada de um modo diferente da maioria,
não é mérito seu: a natureza é que a fez assim. E, além de tudo, estou indo
muito longe em minhas conclusões: pelo que sei até agora você pode não
ser melhor do que o resto. Pode ter defeitos intoleráveis, para
contrabalançar seus pontos positivos.
“E o senhor também” pensei. Enquanto essa ideia cruzava a
minha mente meu olhar encontrou o dele. Mr. Rochester pareceu ter lido a mensagem, pois respondeu como se eu tivesse expressado em voz alta esse
pensamento.
– Sim, sim, você está certa... – disse ele. – Eu também tenho
muitos defeitos. Sei disso e não pretendo disfarçá-los, acredite. Deus sabe
que não preciso ser muito severo com os outros. Eu tenho um passado,
uma série de ações, uma vida de erros dentro do meu próprio peito, que
pode muito bem atrair para mim os escárnios e censuras dos meus
vizinhos. Eu entrei, ou antes, fui empurrado (como outros pecadores
também gosto de atribuir metade da culpa à má sorte ou adversidade) para
o caminho errado quando tinha vinte e um anos, e desde então nunca
recuperei o caminho certo. Mas eu devia ser bem diferente, devia ser tão
bom quanto você... mais sensato, quase sem mácula. Eu invejo sua paz de
espírito, sua consciência limpa, sua memória impoluta. Menina, uma
memória sem nódoa ou contaminação deve ser um tesouro valioso... uma
fonte inexaurível de puro consolo. Não é assim?
– E como era a sua memória aos dezoito anos, senhor?
– Muito bem, então. Era límpida e saudável. Nenhum jato de água
suja a tinha transformado numa poça fétida. Aos dezoito anos eu era como
você, exatamente assim. A natureza pretendia que eu fosse, de forma
geral, um homem bom, Miss Eyre, da melhor qualidade. Mas, como vê, eu
não sou. Você pode dizer que não me vê assim (pelo menos é o que me
orgulho de ler em seus olhos, portanto, tome cuidado com o que expressar
com o olhar, sou perito em interpretar sua linguagem). Aceite minha
palavra quanto a isso, não sou um vilão. Você não supõe tal coisa... não me
atribui uma fama tão ruim. Mas acredito sinceramente que, tanto pelas
circunstâncias quanto pelo meu dom natural, sou um banal e vulgar
pecador, acostumado a todas as infames dissipações que os ricos e
imprestáveis puseram na vida. Você se espanta de me ouvir confessar isso?
Saiba que, no curso da sua vida futura, muitas vezes vai perceber que foi
eleita a involuntária confidente dos segredos dos seus amigos. As pessoas
vão instintivamente perceber, como eu percebi, que o seu forte não é falar
de si própria, mas ouvir o que os outros têm a falar sobre si mesmos. Eles
sentirão, também, que você ouve sem fazer nenhum julgamento maldoso
da indiscrição alheia, mas com um tipo de simpatia inata, que só não é mais confortadora e encorajadora, porque é muito modesta em sua
manifestação.
– Como o senhor sabe?... Como pode adivinhar tudo isso?
– Eu sei disso muito bem. Por isso prossigo falando com tanta
liberdade, como se estivesse escrevendo meus pensamentos num diário.
Você pode dizer que eu devia ter sido superior às circunstâncias. Eu sei
que devia. Mas vê que não sou. Quando o destino me traiu, não tive a
sabedoria para permanecer frio. Fiquei desesperado e assim degenerei.
Agora, quando qualquer simplório desperta minha cólera por sua
insignificante velhacaria não posso me orgulhar de ser melhor do que ele.
Sou forçado a confessar que ele e eu estamos no mesmo nível. Quem me
dera tivesse resistido... Deus sabe que eu queria. Cuidado com o remorso,
quando tiver a tentação de cair em erro, Miss Eyre. O remorso é o veneno
da existência.
– Dizem que a sua cura é o arrependimento, senhor.
– Não, o arrependimento não é a cura. A regeneração é que pode
ser a cura, e eu podia me regenerar. Ainda tenho força suficiente para isso,
se... Mas qual é a utilidade de pensar nisto, tolhido, oprimido e
amaldiçoado como estou? Além disso, como a felicidade me é
irrevogavelmente negada, tenho direito de conseguir o prazer fora da vida,
e hei de consegui-lo, custe o que custar.
– Então vai degenerar ainda mais, senhor.
– Possivelmente. E porque me preocupar, se posso conseguir um
doce e suave prazer? E posso obtê-lo tão doce e fresco como o mel
silvestre que as abelhas colhem das plantas.
– Esse mel será ácido... terá um gosto amargo, senhor.
– Como é que você sabe? Nunca o provou. Você parece tão séria,
tão solene e, no entanto, é tão ignorante nessa questão quanto esta cabeça
de camafeu (e apanhou uma cabeça de camafeu que estava sobre o consolo
da lareira). Você não tem o direito de me passar sermões, é uma novata
que nem passou pelo pórtico da vida, e não tem intimidade alguma com os
seus mistérios. – Lembro-lhe apenas de suas próprias palavras: o senhor mesmo
disse que o erro traz o remorso e que o remorso é o veneno da existência.
– E quem está falando de erro agora? Eu dificilmente acharia que
a ideia que atravessou o meu cérebro é um erro. Acho que é mais uma
inspiração do que uma tentação. Foi muito suave, muito branda... Já sei. Aí
vem você de novo! Não é nenhum demônio, garanto-lhe. E se for, veio
vestida como um anjo de luz. Acho que devo admitir uma hóspede tão
linda, quando pede abrigo no meu coração.
– Desconfie dela, senhor, não é um anjo de verdade.
– Mais uma vez: como pode saber? Por qual instinto pretende
distinguir entre um anjo caído vindo do abismo e um mensageiro do trono
eterno? Entre um guia e um tentador?
– Eu julgo pela sua expressão, senhor, que estava perturbada
quando disse que a visão tinha voltado. Tenho certeza que será ainda mais
infeliz se der ouvidos a isso.
– Absolutamente. Ela traz a mais graciosa mensagem do mundo.
E depois, você não é a guardiã da minha consciência, portanto, não fique
apreensiva. Venha, entre, bela viajante!
Ele disse essas palavras como se falasse com uma visão, invisível
a todos menos a ele. Então, cruzando sobre o peito os braços que havia
estendido, parecia incluir no abraço o ser invisível.
– Agora – ele continuou, dirigindo-se a mim – recebi a peregrina,
uma divindade disfarçada, acredito. Já está me fazendo bem. Meu coração
era uma espécie de capela mortuária, agora será um santuário.
– Para falar a verdade, senhor, não consigo compreendê-lo de
modo algum. Não posso manter a conversa porque saiu fora do meu
alcance. Só sei de uma coisa: o senhor disse que não era tão bom quanto
deveria, e que lamentava a sua própria imperfeição... Insinuou que ter uma
memória maculada era uma maldição perpétua. Parece-me que, se tentasse
com mais empenho, com o tempo veria que é possível tornar-se aquilo que
o senhor desejava. E que, se decidir corrigir seus pensamentos e ações a
partir de agora, em poucos anos terá uma nova e imaculada coleção de
memórias, à qual poderia recorrer com prazer. – Muito bem pensado e corretamente dito, Miss Eyre. E neste
momento estou pavimentando o inferno com energia.
– Como, senhor?
– Estou estabelecendo novas e boas intenções, que são tão
duráveis quanto a rocha. Com certeza, meus companheiros e objetivos
deverão ser diferentes do que eram.
– E melhores?
– Melhores... Tanto quanto o minério puro é melhor do que o
entulho imundo. Você parece duvidar de mim. Pois eu não duvido, sei qual
é o meu alvo e quais são os meus motivos. Neste momento promulgo uma
lei, inalterável como a dos Medos e dos Persas, de que ambos estão certos.
– Não podem estar, senhor, se exigiram um novo estatuto para
dirigi-los.
– Eles estão, Miss Eyre, embora realmente pedissem um novo
estatuto: uma combinação insólita de circunstâncias implica em regras
insólitas.
– Parece uma máxima perigosa, senhor. Pode-se perceber que está
sujeita ao abuso.
– Frase muito sábia. E assim é, mas juro pelos meus espectadores
familiares não abusar dela.
– O senhor é humano e falível.
– Sou. E você também. E então?
– O humano e falível não pode se arrogar um poder que só ao
divino e ao perfeito pode ser confiado com segurança.
– Que poder?
– Aquele de dizer de qualquer linha de ação estranha e não
sancionada: “Está certa!”
– “Está certa!” São as palavras exatas, e você as pronunciou.
– Pode estar certa, então – eu disse, retificando.
Levantei-me, considerando inútil continuar uma conversa que era
incompreensível para mim. E também tinha consciência de que o caráter do meu interlocutor estava além da minha compreensão. Pelo menos, além
do meu alcance no momento. Sentia a incerteza, o vago sentimento de
insegurança que acompanha a convicção da ignorância.
– Aonde vai?
– Vou colocar Adele na cama, já passou da sua hora de dormir.
– Está com medo de mim, porque falo como uma esfinge.
– Sua linguagem é enigmática, senhor, mas embora eu esteja
perturbada, com certeza não estou com medo.
– Você está com medo. Seu amor-próprio teme cometer um erro.
– Nesse sentido realmente me sinto apreensiva. Não tenho
nenhuma vontade de falar bobagens.
– Se falasse, seria de uma maneira tão calma e grave que eu
tomaria isso por bom senso. Nunca ri, Miss Eyre? Não se incomode em
responder. Raramente a vi sorrindo, mas seu riso pode ser bastante feliz.
Acredite, você não é austera, não mais do que eu sou naturalmente mau. A
disciplina restrita de Lowood de alguma forma ainda está impregnada em
você: controlando suas expressões, abafando sua voz e restringindo seus
movimentos. E na presença de um homem – seja um irmão, ou pai, ou
patrão, ou o que for – teme rir muito ruidosamente, falar livremente, ou
mover-se com desembaraço. Mas com o tempo acho que aprenderá a ser
natural comigo, assim como acho impossível ser convencional com você.
E então seus olhares e movimentos terão mais graça e vivacidade do que
ousa oferecer agora. De vez em quando vislumbro em você um curioso
tipo de pássaro, entre as grades de uma gaiola. É um cativo muito vívido,
inquieto e resoluto o que está lá dentro. Se acaso fosse livre, voaria até as
alturas. Ainda deseja ir embora?
– Já são nove horas, senhor.
– Não faz mal... espere um pouco. Adele ainda não está pronta
para deitar-se. Minha posição, Miss Eyre, de costas para o fogo e de frente
para a sala, favorece a observação. Enquanto falava com você, eu também
observava Adele ocasionalmente (tenho minhas próprias razões para
considerá-la um caso curioso... razões que eu posso, não, não, que eu devo
compartilhar com você qualquer dia). Ela tirou da caixa, dez minutos atrás, um pequeno vestido de seda rosa. O enlevo brilhava em seu rosto
enquanto o desembrulhava. A faceirice corre no seu sangue, mistura-se aos
seus miolos, e tempera a medula dos seus ossos. “Il faut que je l’essaie! Et
a l’instant même!” – Preciso experimentá-lo agora mesmo! – ela gritou, e
correu para o quarto. Agora está com Sophie, no processo de vestir-se. Em
alguns minutos estará de volta, e sei bem o que vou ver: uma miniatura de
Celine Varens, como ela costumava aparecer nos palcos, quando levantava
a cortina... Mas isso não importa. Meus sentimentos mais ternos estão em
vias de receber um choque, no entanto, esse é o meu pressentimento. Fique
um pouco mais, para ver se ele se realiza.
Não demorou muito e ouviram-se os passinhos de Adele soando
no saguão. Ela entrou, transformada como seu tutor havia previsto. Um
vestido de cetim rosa, muito curto e todo cheio de babados, substituíra o
vestido marrom que ela vestia antes. Uma guirlanda de botões de rosa
cingia-lhe a fronte. Nos pés calçava meias de seda e pequenos sapatinhos
de cetim branco.
– Est-ce que ma robe va bien? – exclamou ela, adiantando-se. – Et
mes souliers ? Et mes bas ? Tenez, je crois que je vais dancer! [20] E sacudindo o vestido, ela deslizou num passo de balé através da
sala até que, alcançando Mr. Rochester, rodeou graciosamente na ponta
dos pés em frente a ele, então caiu de joelhos aos seus pés, exclamando:
– Monsieur, je vous remercie mille fois de votre bonté.[21] E levantando-se acrescentou:
– C’est comme cela que maman faisait, n’est pas, monsieur? [22]
– E-xa-ta-mente! – foi a reposta. – E “comme cela” ela arrancava
meu ouro inglês dos bolsos das minhas calças britânicas. Eu também já fui
verde, Miss Eyre... Ah! Muito verde! O matiz que a anima agora não pode
ser mais primaveril do que aquele que uma vez me animou. Minha
primavera se foi, no entanto, mas deixou-me nas mãos esta florzinha
francesa de que, de alguma maneira, eu gostaria de me livrar. Não podendo
avaliar a raiz de onde ela provém, e tendo descoberto que é de um tipo que
somente o pó de ouro pode adubar, sinto um pouco de tristeza em vê-la
florir, especialmente quando se mostra tão artificial como agora. Eu a mantenho e a educo mais pelo princípio católico romano que manda
praticar uma boa ação para expiar inúmeros pecados, grandes ou pequenos.
Algum dia lhe explicarei tudo isso. Boa noite.Nota: [17] Em francês no original: “Minha caixa! Minha caixa!”
[18] Em francês no original: “Fique quieta, menina. Compreende?”
[19] Em francês no original: “Oh, Deus! É tão linda!”
[20] Em francês no original: “Acha que o vestido ficou bem? E os sapatos? E as meias? Esperem, acho que vou dançar!”
[21] Em francês no original: “Senhor, agradeço muito a sua bondade.”
[22] Em francês no original: “Era assim que mamãe fazia, não é, senhor?”
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Jane Eyre - Charlotte Brontë
RomanceÓrfã desde muito cedo, Jane Eyre leva uma vida solitária, até que encontra um emprego como governanta em Thornfield Hall, uma propriedade rural do misterioso e taciturno senhor Rochester. Jene se sente atraída por aquele homem calado, de espírito pe...