8. Chapéu de Palha

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FAZENDEIRA

Não sei que dia é hoje. Quando todos eles começam a ser iguais é difícil dizer. Mas hoje às ruas estão um pouco mais movimentadas, então provavelmente é sexta. O que significa que amanhã será minha folga. Dia de dormir e jogar videogame até que seja noite.

Hábito que minha mãe sempre odiou, mas agora é uma fuga pra mim. Sinto falta dela. E, pensando bem, que mal há em tentar uma coisa nova? Talvez seja divertido.

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Calor, suor, e mosquitos aos montes. O que eu vim fazer aqui? Isso não é ambiente pra mim. Não posso deixar de pensar na minha cama, no meu quarto, ar condicionado... E se eu fechar os olhos, quase posso fingir que estou em casa.

O parque é bem bonito, uma grama verde estendida sob meus pés como um tapete. Árvores com sombras generosos estão por toda parte. Algumas pessoas brincam com um cachorro, um salsichinha preto.

Os mosquitos se amontoam no meu rosto e eu me forço a tomar uma decisão. Vou procurar algo pra fazer. Não preciso caminhar muito pra encontrar uma cachoeira. A pequena queda d'água forma um arco-íris tão pequeno quanto.

Ele é tão convidativo. E sei que é um ímpeto bobo, mas não posso evitar.

Olho para os lados e constato que estou sozinho. Estico meus dedos tentando encostá-los no arco-íris. Posiciono melhor os pés e tento mais uma vez. Estico mais os dedos. Só mais um pouco.

E nada, não acontece nada quando meus dedos atravessam. Eu não sei o que eu esperava, mas me sinto frustrado.

Tentando voltar a minha posição inicial acabo me desequilibrado e caindo no córrego, fazendo um barulho alto que joga água para todos os lados.

Saio da água tomado pela vergonha, e me preparo para secar minhas roupas. Mas elas não estão molhadas, e isso nem é a parte mais bizarra.

Eu sou um boneco em 2D pixelado.

Eu sou a porra de um boneco 2D pixelado!

O tempo parece passar mais rápido e ainda em choque, me apresso para procurar um abrigo. Um centro comercial toma forma na minha frente. Há um armazém, uma academia, uma enfermaria e... A casa do prefeito?

Tem uma placa de madeira com alguns dizeres nela, forço a visão para enxergar melhor e leio as palavras. "Vila Pelicanos". 

Ah, merda! Isso é impossível! Eu vim parar em Stardew Valley? Como?

Sigo pela estradinha de barro que já conheço bem e chego ao pequeno casebre, está caindo aos pedaços então provavelmente ainda estamos no início do jogo.

Dentro da casinha tudo está bem conservado, assim como eu me lembro. Uma cama confortável, uma lareira, uma tevê e um tapete bonito. Me deito na cama e não demoro a pegar no sono.

Acordo no meio da noite com uma espada a 2cm do meu nariz. Ofegante, afasto os olhos aos poucos para ver quem está tão perto de ceifar minha vida.

E eu posso estar louco, mas os pixels dela se agrupam fazendo uma boneca muito bonitinha. O nome Kimberly flutua sobre sua cabeça. Ela usa uma camiseta roxa, um macacão preto, e cabelos que se enrolam em cachos negros.

Sua expressão é pura determinação.

— Não me mate! — levanto minhas mãos rendido. Ela não diz nada, mas parece disposta a ouvir. Conto tudo o que aconteceu e ela afasta a espada do meu rosto.

O relógio informa que são duas da manhã e ela simplesmente desmaia. O tempo é o maior inimigo por aqui. Coloco ela na cama e me deito no tapete. Pela manhã eu com certeza vou estar de volta pra minha casa e meu trabalho ruim.

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Pela manhã não estou de volta em casa nem no meu trabalho ruim. Não, continuo no cubículo de pixels.

Lá fora Kimberly se apressa em regar os morangos (escolha esperta pra plantar), e ela faz tudo com uma agilidade impressionante.

Ainda é primavera, posso ver. Pelo tamanho das plantas sei que ela plantou ontem, e eu também sei que morangos só podem ser comprados no festival do ovo. O chapéu de palha sobre sua cabeça comprova que ele já passou, já que é o prêmio do vencedor da caça aos ovos. Hoje é dia 14 da primavera, concluo.

Engraçado como é fácil identificar o dia aqui, quando na vida real eu sempre parecia perdido.

Penso na loucura que é estar aqui. Como foi que isso aconteceu? Penso um pouco enquanto Kimberly rega os últimos morangos.

É claro! O arco-íris!

Será que eu poderia voltar se encontrasse outro arco-íris aqui? Penso um pouco mais.

O evento de São Patrício é daqui a três dias. Ao sul da fazenda, no dia 17 da primavera o arco-íris e o pote de ouro vão estar na cachoeira. É a minha chance de voltar pra casa.

Kimberly corre na direção das montanhas, posso imaginar onde ela está indo. Corro atrás dela porque essa atividade é a minha preferida.

Entramos na caverna e descemos pelo elevador precário. Andar 80? Kimberly é rápida! Eu demorei bem mais do que 14 dias pra chegar até aqui.

Depois de um dia inteiro quebrado pedras, encontrando jóias e enfrentando monstros, comemos um bolo rosa. Kimberly devora. Ela é uma companhia agradável, apesar de não conseguir falar.

No dia seguinte, ela já termina de regar os morangos quando eu acordo. Um dia inteiro de pesca! É tão tranquilo e relaxante, o barulho do mar, o sentimento de conquista a cada peixe pescado. Mal posso esperar pelo dia seguinte.

O dia de hoje ela resolveu dedicar aos animais da fazenda. Tirar leite, recolher ovos e encontrar trufas. Me pergunto como seria viver todos os dias assim.

E então eu percebo, hoje já é o dia 17 da primavera. Corro o máximo que posso em direção ao arco-íris e ao pote de ouro. Para minha surpresa Kimberly me acompanha.

O arco-íris está a minha frente agora, e Kimberly ao meu lado. Eu não deveria ficar relutante em voltar, mas a vida aqui é tão melhor do que a que eu costumava ter. Me sinto feliz como nunca.

Os dois únicos pixels que formam os olhos de Kimberly parecem tristes, e eu tomo minha decisão. Posso deixar o arco-íris para o próximo ano.

Autor(a): GeanneSoaress

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