Eu não quero reviver o passado.

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A fumaça do cigarro se enrolava no ar, uma dança lenta que refletia o turbilhão dentro de mim. Eu estava sentada naquela cadeira confortável, mas nada parecia capaz de aliviar o peso em meu peito. A minha psiquiatra me observava com aquele olhar gentil e paciente, esperando que eu encontrasse as palavras para descrever o indescritível.

— É estranho. — minha voz era um sussurro rouco entre tragadas.

— Você passa anos construindo um muro ao redor do seu coração, pedra por pedra, para se proteger de alguém que deveria amá-la. E então... ele se vai. Assim. - Eu estalei os dedos, um som seco na sala silenciosa.

— Marcus me machucou de maneiras que eu nem sabia que era possível. Ele me traiu, me diminuiu... e ainda assim.. — pausei, lutando contra a maré de emoções. — eu não consigo deixar de sentir essa... essa perda avassaladora. Como se parte de mim tivesse ido com ele.

A Doutora acenou com a cabeça, encorajando-me a continuar.

— Eu deveria estar aliviada, certo? Livre da dor e do caos que ele trouxe para a minha vida. Mas tudo o que sinto é esse vazio, essa melancolia profunda que não sei como preencher!

Deixei o cigarro morrer no cinzeiro e fechei os olhos por um momento, permitindo-me sentir a dor sem resistência.

— Eu o amei, apesar de tudo. E agora... agora eu tenho que aprender a viver com o fato de que ele escolheu partir dessa maneira, deixando-me com perguntas que nunca terão respostas.

A sessão continuou, cada palavra uma tentativa de navegar pelo luto complicado e contraditório que Marcus havia deixado em seu rastro.

Enquanto falava, Gabrielle levou a mão ao rosto, um gesto inconsciente que revelava mais do que palavras poderiam dizer. Seus dedos traçaram as linhas que o tempo havia esculpido em sua pele, cada ruga uma marca da vida que ela viveu, das risadas compartilhadas e das lágrimas derramadas.

Ela se deteve por um momento, sentindo a textura da própria história.

— Olhe para mim. — ela murmurou, mais para si mesma do que para a Dra.

— O tempo passou e eu mal percebi. Estive tão presa ao passado, às memórias de Marcus, que esqueci de viver.

Gabrielle baixou a mão e olhou para a psiquiatra com uma clareza recém-descoberta em seus olhos.

— Eu envelheci, não é? Não apenas por fora, mas aqui dentro. — Ela tocou o peito levemente. — Eu carreguei essa dor por tanto tempo que se tornou parte de quem eu sou.

A Dra assentiu suavemente, um gesto de compreensão e apoio.

— Mas eu não quero que isso me defina mais. — continuou Gabrielle, uma determinação firme em sua voz.

— Eu quero encontrar alegria novamente, quero criar novas memórias... sem ele.

— E Henry Cortez? — Questionou sem delongas a psiquiatra, foi como se ela tivesse aberto a ferida de Gabrielle com uma faca.

A pergunta sobre Henry fez o coração de Gabrielle bater mais rápido, uma mistura de dor e arrependimento inundando seus pensamentos. Ela respirou fundo antes de falar.

— Henry... ele foi uma parte importante da minha vida. — ela começou, sua voz carregada de emoção.

— Nós quase nos casamos, mas... eu o deixei. Eu escolhi Kim, a mulher que eu pensei ser o amor da minha vida.

Ela pausou, olhando para o nada enquanto as memórias a assombravam.

— Henry foi embora naquele dia e eu nunca mais o vi. Às vezes me pergunto como as coisas poderiam ter sido diferentes se eu tivesse feito outra escolha.

A Dra permaneceu em silêncio, permitindo que Gabrielle explorasse seus sentimentos.

— Eu me arrependo. — confessou Gabrielle. — não só pelo que fiz com Henry, mas por não ter percebido antes que Marcus era... tóxico para mim. Eu estava tão envolvida na ideia de quem eu queria que Marcus fosse que ignorei quem ele realmente era.

— Mas agora.. — ela continuou. — Marcus se foi e Kim é apenas uma lembrança distante, eu me vejo pensando em Henry. Não com desejo de voltar atrás, mas com a esperança de que ele tenha encontrado a felicidade que merece.

A Dra tocou delicadamente no assunto do divórcio, e Gabrielle sentiu um nó se formar em sua garganta.

— O divórcio foi... difícil, mas necessário. — ela disse, suas palavras tremendo ligeiramente.

— Kim precisava se encontrar, assim como eu. — ela respirou fundo, tentando manter a compostura.

— Kim encontrou seu amor com Sarah. Elas se casaram e... e eu estou feliz por elas. Realmente estou.

Gabrielle fez uma pausa, seus olhos começando a lacrimejar.

— E o mais irônico de tudo é que Lucas, o ex de Sarah, se tornou uma espécie de amigo para todas nós. O mundo dá voltas estranhas. — ela disse com um sorriso triste.

— É complicado. — continuou Gabrielle, enxugando uma lágrima que escapara.

— Mas há uma beleza nessa complicação, uma prova de que podemos superar a dor e ainda encontrar um lugar para a amizade... para a compaixão.

A sessão estava chegando ao fim, mas Gabrielle sentia que havia dado um passo importante ao falar sobre essas conexões complexas e sobre o processo de cura que estava apenas começando.

Uma batida suave na porta interrompeu o fluxo de conversa entre Gabrielle e a Dra.

— Entre. — disse a Dra, e a porta se abriu para revelar Lucas parado no limiar, um sorriso gentil em seu rosto.

— Desculpe interromper. — disse Lucas. — mas vim buscar Gabrielle, espero que não esteja atrapalhando.

Gabrielle olhou para ele, um sorriso grato surgindo em seus lábios.

— Não, você chegou na hora certa. — ela respondeu, levantando-se da cadeira.

Enquanto se aproximava de Lucas, Gabrielle sentiu uma onda de apreço por ele. Desde o incidente com Marcus, Lucas havia se mostrado um amigo inestimável, cuidando dela e oferecendo um ombro amigo nos momentos mais difíceis.

— Lucas tem sido incrível. — disse Gabrielle à Dra. enquanto pegava sua bolsa.

— Ele tem me tratado com tanta gentileza e compreensão... Eu não sei o que faria sem ele.

Lucas ofereceu seu braço a Gabrielle, e ela o aceitou, sentindo-se fortalecida pela presença dele. Juntos, eles saíram do consultório.

Quando Gabrielle chegou em casa após a sessão com o psiquiatra, sentindo-se drenada mas de alguma forma mais leve. Ela entrou no banheiro e se encarou no espelho, seus olhos percorrendo o reflexo da mulher que ela se tornou.

Com mãos trêmulas, ela começou a tocar seu rosto, seus ombros, descendo pelos braços até o abdômen, cada toque uma tentativa de se reconectar com seu próprio ser. Ela fechou os olhos, respirando fundo, tentando sentir cada parte de si mesma.

Foi então que ela ouviu a porta se abrir suavemente. Lucas estava parado na soleira, observando-a com uma expressão de preocupação e carinho.

— Não tem nada de errado com você. — ele disse suavemente.

Gabrielle abriu os olhos e encontrou o olhar de Lucas no espelho. As palavras dele eram simples, mas carregavam um peso imenso, enchendo-a de uma sensação de aceitação que ela não sabia que precisava.

Ela se virou para encará-lo diretamente, um sorriso frágil se formando em seus lábios.

— Obrigada. — ela sussurrou, e naquele momento, ela acreditou nele.

Gabrielle: O Coração da Lei.Onde histórias criam vida. Descubra agora