17. Impossível

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Ainda faltavam seis horas para a meia-noite

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Ainda faltavam seis horas para a meia-noite. Se ela marcou tão tarde, então era para fugir? Quando pensava nessa possibilidade, me deixava levar puramente pela felicidade de viver em paz com Charlotte, longe de tudo e todos. No entanto, inquieto, nada poderia fazer além de esperar no interior claustrofóbico do carro.

Deixei meu notebook no colo e procurei me distrair o máximo em qualquer coisa que não me lembrasse o inferno que vivia. Era inevitável não olhar para o relógio a cada minuto, contando os segundos, fazendo as horas se arrastarem.

Era uma tortura. Desistente, encostei a cabeça na poltrona e tentei dormir. Não consegui devido a ansiedade. Assisti o sol se por, e observava as pessoas passando, em especial via os casais andando e convivendo em sintonia com o dia como se nada fosse importante. Era deprimente, eu jamais poderia fazer aquilo com a minha irmã sem ser amaldiçoado por todas as gerações... Aliás, que gerações? Nem filhos daria pra ter.

Mas, pouco a pouco, afastei meus temores a medida que via as ruas esvaziando e a noite tomando forma, ficando escura e fria. Veio junto a chuva. Chegou primeiro numa garoa branda e fresca que fez subir cheiro de terra molhada, e transformou-se num pé d'água que lavou o calor do asfalto. Veemente pensava que em breve veria Charlotte. Seria questão de um segundo para entrarmos no carro e desaparecer do mapa. Ficaria trancado por dias e semanas com ela. Não precisaria de nada, absolutamente nada. Quais seriam as probabilidades de viver assim?

Quando enfim deu onze e meia, dei partida com o carro até a praça central como Charlotte pediu. Estacionei e esperei apreensivo. À meia noite, saí do carro correndo contra a chuva, e segui para a praça. Estava vazia, e as ruas aos arredores ecoavam silenciosamente a tempestade, que se mantinha num ritmo constante. No meio da praça havia uma capela. Me recolhi sob a cobertura.

A brisa me alcançava com a água e me atingia. Para completar meu tormento, Charlotte demorou. Eu olhava de um lado ao outro, parado no lugar, e começando a tremer seja de ansiedade ou frio. A noite ia alta, não havia lua. As luzes amareladas nos postes  das ruas típicas de interior faziam o cenário parecer fantasmagórico e soturno.

Então após a espera, vi ao longe um cavalo que chegava trotando, e sobre ele estava Charlotte. Meu coração saltou, era absolutamente aliviante rever minha irmã depois do dia infernal que tive. Ela se aproximou montada em Wallace. Puxou as rédeas e o faz parar à minha frente. Mesmo com o lábio machucado, não deixei de sorrir. Minha irmã usava um casaco grande com capuz, desceu do animal e veio até mim. Quando ergueu o rosto muito branco, notei seu semblante carregado de mágoa. Os cabelos estavam úmidos.

– Charlotte... - disse, com a voz fraca.

– Ben, papai te machucou bastante... - disse ela, como quem chorou demais.

Eu neguei com a cabeça, e dei um sorriso  entristecido.

– Não foi nada. Como você está?... - num ímpeto segurei seu rosto com minhas mãos, mas ela se afastou.

– Benjamin, eu... Eu preciso te dizer algo muito sério... eu espero que você entenda. - começou, desviando o olhar. Eu não disse nada. Apenas olhava Charlotte. - Você precisa ir embora. Eu não vou com você.

Engoli em seco, desconfortável de ela não me olhar.

– Como assim, Charlotte?

– Não vou, eu acho que foi tudo um erro.

– Não entendi o que você disse. Me olhe... me explique direito, por favor.

Charlotte enfim me fitou e suspirou, com os olhos cheios de lágrimas.

– Eu acho que foi tudo um erro, Ben. - repetiu, dessa vez me encarando. - Você deve ir embora.

– Eu, ir embora? Sem você?

– Sim, por favor, entenda o que quero dizer. Eu não quero ficar com você.

– Como...? Do que está falando?

– Eu acho que nos precipitamos demais. Eu sinto muito, você é meu irmão, entende? Eu não posso me envolver com você.

Eu via as palavras saindo da boca de Charlotte e não entendia, era como se algo em mim não me permitisse aceitar. Dei uma risada nervosa, completamente desordenado e perdido.

– Você ficou louca?!

– Eu estava louca, agora não mais.

– Você está brincando comigo.

– Não, Ben. Estou falando sério, de verdade. Eu vim me despedir. Vamos ser... apenas irmãos, de agora em diante. Teremos que nos ver raramente, por causa do escândalo todo. Acho que minha carreira hípica despencou.

– Não... não... - murmurei, fechando os olhos por alguns segundos, e depois voltando a olhá-lá. - Deixa de ser boba, Charlotte. Vamos logo para meu carro, está frio e já deveríamos estar dentro do avião. - tentei puxá-la pelo braço, mas Charlotte recuou.

– Me solta! - exclamou, séria. - Eu não quero.

– Não quer?! Cristo, Charlotte, o que está acontecendo?! Você me tira a razão, me faz mudar, virar outra pessoa, para encarar e assumir o que sinto, e de repente vem me dizer que 'não quer'??

– Sim, Ben. Você deve ter confundido as coisas.

– Confundido?! Que... que "coisas"?

– Tudo... passamos só alguns dias juntos, e você está me falando de sentimento? Não era para se tornar tão sério.

– Você tá me dizendo que me seduziu de 'brincadeira'?? - perguntei com certo desespero, aumentando o tom de voz.

– Sim, na verdade, eu não sabia que acabaria chegando onde chegou. Não era para ter acontecido isso. Ben, eu preciso ir embora... eu sinto muito... por favor, volte para seu apartamento na Suécia. Por favor.

Segurei os braços de Charlotte, com pressão quase a erguendo do chão, e a trouxe para mim, pra me encarar.

– Escuta aqui, para com isso. Para de ser idiota. O que está fazendo?? Essa não é a Charlotte que eu conheço! O que fizeram com você?

Ela me empurrou, mais uma vez, e dessa vez com força.

– Me deixa! - se debateu, e eu não tive outra alternativa a não ser soltá-la, ou acabaria a machucando. - Me deixe em paz! Vá embora, Ben!

Dito isso, ela foi até o Wallace se preparando para subir nele.

– Não! Charlotte, pelo amor de deus, não faça isso comigo. - implorei.

Sem dizer nada, Charlotte deu impulso e subiu no cavalo, fazendo-o se virar e seguir.

– Charlotte! Estão te mandando fazer isso, não é?? O que nosso pai  falou?? Eles estão te obrigando a isso?

Me ignorando e parecendo prestes a chorar, Charlotte foi para debaixo da chuva com Wallace e o fez ganhar velocidade. O casco dele repercutiu batendo contra o chão molhado.

– Charlotte! - berrei, em pânico.

Ela não voltou.

Ofegante, trêmulo e com o coração acelerado como se tivesse acabado de correr quilômetros, permaneci imóvel onde estava, fitando a escuridão.  Estava inexplicavelmente sozinho.   Não conseguia sair dali, nem me mover. Apenas olhava as gotas de chuva caindo e refletindo a luz fraca da praça. Queria gritar ou correr atrás dela... mas sabia que seria impossível. Tudo tornou-se impossível, de um minuto para o outro.

Cry Little Sister || Bill Skarsgård ✓Onde histórias criam vida. Descubra agora