18. Em Chamas

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Pouco depois, fui recuperando minha noção, e a cada segundo que isso acontecia era derrubado pela decepção

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Pouco depois, fui recuperando minha noção, e a cada segundo que isso acontecia era derrubado pela decepção. Ainda incrédulo, reagi movido pela raiva e dei um soco bem dado no muro da capela. Foi forte o suficiente para arrancar uma lasca da parede, e também esfolar superficialmente a pele dos meus dedos.

A dor me fez entrar num torpor que  acalmou meus ânimos. Encostei nessa mesma parede e fiquei segurando meu punho, procurando uma explicação para a atitude de minha irmã.

Comecei a repensar em tudo o que fiz, com um certo receio nauseante de ter de fato imaginado demais, sonhado demais, me inspirado demais. Ela seria tão maldosa a ponto de me iludir? Talvez, eu fosse inocente a ponto de ter criado expectativa quando na realidade Charlotte só jogava comigo.

Que vítima patética eu era. Sai para a chuva, andando sem muita questão de me manter seco, em direção ao carro.

Comecei a rir da minha própria desgraça, ao alcançar o veículo e entrar nele pela milésima vez naquele dia de cão, onde era o único lugar que estaria protegido da sociedade.

Eu não merecia isso. Precisava, de um jeito ou de outro, tirar satisfação com minha irmã. Mesmo que tivesse de enfrentar todos os seguranças da pousada, mesmo que me mandassem pra cadeia. Ou, pelo menos, vê-la uma última vez. A chuva ia diminuindo e a iluminação da Lua vinha sobre o asfalto encharcado.

No fundo, havia uma esperança tola de que Charlotte foi chantageada a me abandonar, provavelmente forçada pelo nosso pai. Independente disso, eu precisava descobrir o que estava acontecendo.

Para minha sorte - ou não, a chuva havia cessado, o que colaborava para seguir pela estrada de terra lamacenta que dava caminho à pousada. Eu vi a lua surgindo fraca por detrás das nuvens cinzentas que se desmanchavam no céu, a medida que ia dirigindo. Parti decidido a resolver esse caos, de uma vez por todas.

Na metade do caminho meu celular tocou. Estava jogado sobre a poltrona de passageiro. Com as mãos no volante, olhei para ele pensando se deveria atender.

Se fosse Charlotte, eu certamente a xingaria e não sabia se me encontrava em condições de falar. Era como se estivesse com o choro travado na garganta. Apenas pretendia agir, se parasse para uma reflexão, estaria fadado ao pranto. Mas a chamada insistia.

Bufando com certo ódio, estiquei o braço e peguei o aparelho, atendendo e colocando no ouvido. Veio a voz dela estremecida e fraca junto do fôlego cortado.

– Ben…?

– O que você quer?

– Eu… - começou a dizer, mas não terminou a frase. Estava com a respiração pesada, como se estivesse sem ar.

– Qual o problema? - perguntei meio secamente.

– Eu coloquei fogo na pousada. - explicou, com uma breve risada no final.

– Você… você o quê?!

– Coloquei fogo na pousada.

Eu permaneci incrédulo olhando para a estrada escura à minha frente.  Talvez devido ao dia exaustivo e horrível, tudo parecia um estranho pesadelo. Um medíocre sonho. Por um instante entendi Charlotte dizer que incendiou a pousada?

– Você está tirando um sarro da minha cara, Charlotte?

Nesse momento fui surpreendido por um caminhão de bombeiro que passou pelo meu carro a toda velocidade, quase me fazendo ir contra o barranco do acostamento. Na confusão, segurei o volante com urgência e o virei, e com isso o meu celular escapou de minha mão, voando para algum canto.

– Merda! - exclamei, assustado. Brequei o carro para apanhar o aparelho. A ligação havia caído. Tentei rediscar o mesmo número, mas ele nem mesmo chegava a chamar. Novamente tornei a ligar e dessa vez ela atendeu.

– O que você fez, Charlotte?… - perguntei.

– Estão todos queimando agora, Ben. Consegue ouvi-los?

Eu apenas ouvia por detrás do ar cansado que Charlotte inspirava e expirava, alguns ecos de gritos distantes. Uma sensação de medo desconhecida e incômoda me infectava,  me perturbando a medida que os gritos tornavam-se mais altos, junto com as tosses sequentes da minha irmã.

– Ben… - ela ofegou. - Você está aí? Sabe o que papai disse? "Charlotte, você deve falar pro seu irmão ir embora pra Suécia. Ele ainda está aqui. Você… diga a ele pra  ir embora, e diga que não quer mais ficar com ele,  convença a ir embora, ou nunca mais olharemos pra ele, nunca mais." -  parou de falar. Parecia chorar com a voz mole, quase delirante. - "É errado, Charlotte", é errado amar o próprio irmão assim… Não se pode deitar com o próprio irmão, é errado…

– Charlotte… você está no meio do fogo?!

– O que é errado, afinal, Ben!? -  indagou com súplica, entre soluços de exaltação. - Eles não vão nos separar, eu prometo… Você não foi embora, foi?

– Eu estou indo pra pousada agora. - falei,  descrente que fosse real. Impaciente e transtornado, retornei para a estrada dirigindo com pressa, com uma mão no volante e outra sem soltar o celular. Tentando não pensar muito, pisei no acelerador.

Meu coração pulsava adrenalina. Algo me dizia, gritante e constante na minha consciência, para não agir impulsivamente.

Por outro lado, a paixão que tinha por Charlotte me instigava feito um mau espírito, me forçando a continuar, mesmo sabendo que essa não era uma boa ideia e que eu certamente poderia morrer.

– Onde você está… na casa, exatamente, onde??

–  Estou te esperando... eu te amo tanto! - a voz dela sumiu e eu não ouvi mais nada além de ensurdecedores barulhos indefinidos de algo caindo ou desabando.

– Charlotte! Tá me ouvindo? Charlotte, por favor, eu imploro… me responde! - implorava, sem parar de dirigir.

Ela não respondeu. Até que, de repente, a ligação caiu. A ausência completa de ruídos me fez entrar em pânico. Seja lá o que Charlotte fizera, se eu não chegasse logo, ela iria morrer.

Chegando na pousada, estacionei o carro de qualquer forma em qualquer lugar, e corri pela trilha  que dava para o imenso jardim. Aos poucos, meus passos foram perdendo a velocidade quando me deparei com uma das visões mais atordoantes que já presenciei.

O fogo alto lavrava intensamente contra o céu. As nuvens que estavam se afastando após a tempestade eram iluminadas pelo vermelho  quente que se espalhava junto com a fumaça densa, que subia para as estrelas, as ofuscando e pretejando todo o ambiente que antes era verde e limpo.

O calor chegava até mim acompanhado do barulho, exprimindo um pavor que me atingia, me estremecendo.  De olhos arregalados, assistia o horror da cena, e respirava o cheiro ardente  do fogo, que ia destruindo tudo o que alcançava.

Ia correr em direção àquele inferno ao ouvir um chamado que me paralisou.

- Não, Ben!

Olhei pro lado, na direção da voz rouca e feminina que me chamou, era Charlotte!! Ela surgiu através das árvores do jardim, estava inteira coberta de fuligem, tremendo dos pés à cabeça, a roupa levemente chamuscada. Um sorriso insano surgiu no rosto sujo.

- Agora ninguém vai nos impedir de ser feliz, irmãozão! Vamos embora. - disse, aliviada em me ver.

E em seus olhos claros eu encontrei a razão de ter queimado a pousada. Era nossa chance de fuga.

Cry Little Sister || Bill Skarsgård ✓Onde histórias criam vida. Descubra agora