ANÚBISSenti o cheiro de madeira queimada antes que escutasse o grito.
Estalos leves acompanhavam o odor sufocante, pintando minha mente com tons de marrom e vermelho. Um calor tão intenso me cobria que umedeceu a pele em poucos segundos. Havia algo errado. Meu corpo retesou quando sentiu a má vibração.
Os mortos estarem em silêncio em plena madrugada era estranho, mas não o suficiente.
Despertei do sono leve para o caos que era o sótão frio e poeirento, agora quente como um forno. Tentando me comer vivo. Chamas dos mais vivos tons de vermelho subiam pelas paredes e dominavam o piso de madeira firme que separava aquele lugar do teto dos quartos abaixo. As vigas que seguravam a abóbada estalavam, desfazendo-se em pedaços de carvão preto e avermelhado, deixando o teto pronto para tombar sobre mim. O afresco de Tálassa, a senhora das ondas, me olhava com decepção. Me culpava pelos crimes que presenciou em sua eterna vigilância. Ela desejava minha morte, talvez com mais razão que o resto deles.
Outro grito se seguiu, bem abaixo de mim.
Levantei da cama com suor frio se acumulando em minhas costas, meu corpo se revirando e contorcendo pela ansiedade e adrenalina de acordar tão repentinamente. Era Olinda, pensei, os gritos pertencem a ela. É seu fogo que tenta me matar de forma tão pouco heróica em um sótão grande demais para meu pequeno ser.
Precisava impedi-la.
Corri porta afora com o coração descompassado, meus pés queimando nas brasas que dominavam o chão, mas ao invés da pequena plataforma que descia em uma escada estreita até o corredor dos quartos, me vi em uma cabana em pleno inverno.
O caos maneou a sons mais calmos.
Vegetação coberta de geada podia ser vista pelas janelas. Um inverno atípico para o verão que tomava a região naquela época. Minha respiração condensava no ar, mas meu corpo não tremia com os ventos fortes vindo dos buracos no telhado de barro.
Dois corpos adultos largados no tapete felpudo cinza me encaravam mais a frente, de onde meu corpo pequeno e detestável se encolhia até formar uma pequena bola de desprezo e...
Medo.
O cheiro de queimado se tornou podre, guiado pelos zumbidos de moscas que pelejavam contra o frio para manter as asas batendo ao se alimentarem da carne podre deteriorada pelas larvas que se acomulavam na massa fétida.
Nina Simone tocava na vitrola do canto. Oh, freedom is mine and I know how a feel, ela cantava sua melodia intensa. Zombando de mim. De minhas correntes geladas.
Não pude sair do lugar. Não pude me mover, ao menos não na época. Eu fiquei sentado lá, acorrentado ao meu primeiro e maior crime, sem fazer nada. Por dias. E dias. Sendo consumido pelo frio que gelava meus ossos mas que não ultrapassava o vazio da minha mente.
Meu mindinho direito queimou de repente, uma fisgada de dor que me puxou pelos pés e me arrastou porta da cabana a fora. Era rápido demais, murmúrios se ergueram de minha mente como se vivas e inquisitivas, me chamando. Uma voz doce como mel se juntou às outras, me cantando para fora da paralisia...
Para fora do...
Meu corpo se ergueu bruscamente da cama fina que improvisei no sótão quando decidi morar lá. As madeiras soltas do estrado rangeram com o movimento. Não estava aos pedaços como pensei que estaria, não havia gritos de dor vindo de lugar nenhum. Sem fogo se espalhando. Nem cabanas esburacadas e congeladas no fundo da mente.
Era meu sótão, acima de mim Tálassa ainda me olhava com desprezo, mas, se não fosse pelo cobertor que joguei para fora da cama durante o pesadelo, tudo estava em seu devido lugar.
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Aóratos - A Última Mesa
Fantasy"Aóratos vem do grego para Invisíveis. Invisíveis éramos nós, os cinco percursores do caos auto-imposto do imediatismo primitivo." Em um futuro distante e destorcido de nossa realidade, a morte de um ser imortal jogou uma praga na terra escurecida o...