GUERREIRO
Havia três desaparecimentos três anos antes e mais dois cinco...
— Kai, está me escutando? — Uma voz se elevou contra meus pensamentos.
Parei de escrever e encarei o conjunto de letras que formavam palavras, que formavam frases, que por sua vez formavam parágrafos em meu caderno. Por que não podiam me deixar em paz por cinco minutos?
E, sim, eu estava escutando. Tudo o que eu fazia era escutar, o tempo inteiro. Mesmo o que eu não queria ouvir afligia meus ouvidos. O anulador de ruído deixava a maior parte de fora, mas ainda restavam muitos sons para se contabilizar. Rabisquei mais algumas datas no pequeno caderno. A linha do tempo estava começando a tomar forma. Três desaparecimentos no último ano, mais dois cinco anos antes. Eu não sabia quem eram os alunos ainda, em que perfil encaixavam, mas era um problema para ser descoberto mais para frente. O que demoraria um século para acontecer pois eu não tinha mais tempo.
Meu cronograma estava organizado por minuto e Sorianne fazia questão de não me ver com tempo livre o suficiente para coçar o saco. Eu poderia admirar a organização minuciosa e bem explicada mas não o faria quando atrapalhava minha atividade extracurricular. Bem, considerando que o Aóratos agora era minha atividade extracurricular... então a situação estava mais para extra-extracurricular.
Eu definitivamente não estava enlouquecendo. Ainda.
Porque, no fim das contas, a única coisa que ainda mantinha meu último fio de sanidade no lugar eram os minutos roubados que passava naquela busca que começou a tomar forma conforme a primeira semana correu e me atravessou como um caminhão em alta velocidade. Fui atropelado — figurativamente, é claro — pela nova ordem das coisas.
Desde os dez anos eu seguia uma rotina meticulosa. Sabia como fazer as coisas e como elas funcionavam e agia de acordo, meu mundo tinha sentido daquela forma. Com o tempo entendi os gatilhos, me ensinei a reconhecer e resolver, a manter as explosões ao menor tamanho possível. Não podia correr para longe do problema se ele viesse, aquele era um sonho que aprendi a enterrar, mas podia enfrentá-lo sozinho sem depender do discernimento de terceiros da situação.
Tudo poderia ser resolvido se tivesse paciência e cuidado. Se fizesse as coisas na ordem.
E, apesar de ter passado pela minha cabeça que tudo mudaria uma vez que aceitasse o convite, não considerei que a mudança seria tão drástica. Pensei que teria mais controle sobre meu cotidiano, mas o que descobri foi que controle era a última coisa que qualquer um de nós, Sucessores, tínhamos. O Aóratos não tinha paciência, não se importava com minha condição e mudou completamente o que eu via como a ordem certa. Meus colegas de quarto tinham suas próprias formas de lidar com as coisas, e eu não tinha escolha a não ser ir na onda. Estava correndo contra o tempo para fazer funcionar, já na metade da segunda semana de adaptação, e nada havia mudado.
Me sentia pior a cada passo que dava. E a única coisa me mantendo ali era aquela busca.
Então, é, eu tinha escutado a pergunta. Mas também tinha consciência de que adiantei a leitura de três capítulos para estudo enquanto comia para ter quinze minutos de sossego reservado no jardim interno do refeitório — provavelmente meu lugar favorito ali. E tive apenas cinco minutos até a voz se intrometer em meus assuntos. Não queria responder, se eu respondesse ia perder a linha de raciocínio que estava começando a se formar.
Três desaparecimentos agora, dois meia década antes. Talvez houvesse mais um que eu não tenha encontrado, claramente faltava uma pessoa. Três devia ser o padrão. Deveria haver mais. Tentei fazer buscas não supervisionadas no computador seguro que recebi do Aóratos, mas se houveram pessoas desaparecidas antes, as mídias enterraram. Nem mesmo jornais locais falavam sobre.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Aóratos - A Última Mesa
Fantasia"Aóratos vem do grego para Invisíveis. Invisíveis éramos nós, os cinco percursores do caos auto-imposto do imediatismo primitivo." Em um futuro distante e destorcido de nossa realidade, a morte de um ser imortal jogou uma praga na terra escurecida o...