SHU
O som era sempre um problema, isso eu posso lembrar com clareza.
Alto demais, cortante demais. Suas ondas entrando em mim e vibrando até chacoalhar meu cérebro. Atrapalhando minha linha de raciocínio.
Enquanto alguns epikos tinham medo demais de não escutar, de se tornar um pária para sua própria espécie por não conseguir suprir suas expectativas elementais, eu tinha medo de ouvir demais. E não a ponto de ouvir os mortos, como Galileu o fazia ou como, bem... Você não se importa se eu acender esse cigarro, né? Desculpe, talvez pareça até um pouco francês da minha parte, mas... esse vício é o que acontece quando se vive da forma em que vivemos. Ele pode aparecer de várias formas, encontram uns mais rápidos do que outros, mas aparece.
Enfim... Meu maior medo era de que eu escutasse a ponto de meus tímpanos estourarem. Absurdo, não é? Ter esse tipo de fraqueza. Mas o som era assim para mim, meu ponto fraco. Desde pequena, quando eu escutava o som da sirene começar a tocar pela casa, quando éramos obrigadas a levantar para começar o treinamento.
Eu cresci com aquele som ensurdecedor em meus ouvidos e, quando já não o ouvia, ele passou a me assombrar de outras formas.
A Malasartes Academia não se importava com o que acontecia na torre Tálassa, nossa pequena Toca do Coelho, talvez pudéssemos ter torturado alguém por horas sem que ninguém percebesse. Por ser distante da movimentação do resto do castelo? Claro que não! Até uma criança epiko de vento conseguiria sentir a vibração do som descontrolado na nossa Toca. A verdade é que não existia limite em nossas regalias. Podíamos fazer o que quiséssemos, quando quiséssemos, que não seríamos facilmente censurados. Nossos avisos, como aquele que Natura Malasartes fez ao pedir que parássemos de estragar a propriedade da Academia eram apenas aquilo; avisos. Não foi o primeiro que recebemos, tampouco foi o último.
Talvez o que nos cedesse tanta folga fosse os laços familiares entre Olinda e Natura, que estava sempre tentando conquistar a sobrinha postiça. Mas isso certamente não está mais em pauta. O divórcio é uma coisa terrível... E estamos aqui, afinal.
[Liriana, preciso que foque.]
Vocês não deviam ter me drogado... Eu posso acabar falando demais!
[A intenção é essa.]
Que seja.
Naquela primeira festa, eu precisei abafar os ouvidos com uma pressão de ar que me acolheu como fones. Não me entenda mal... Eu gostava do som se ele viesse de forma confortável aos meus ouvidos, gostava da música, do entorpecimento, do esquecimento automático. A presença deles era constante mas eles não entenderiam a necessidade de deixar tudo para trás — exceto Olinda, que entendia até demais. E eu precisava daquele esquecimento. As festas eram sempre uma boa pedida quando conseguíamos entrar em um consenso de ir todos juntos. As baladas que contornavam de forma esporádica as extremidades da Zona Monarca também eram ótimas opções.
Olinda havia aprendido desde cedo que sempre deveria me convidar quando fosse dar suas escapadas. Ela nunca me deixava para trás independente do objetivo; se quisesse terminar a noite na cama de alguém, eu provavelmente terminaria no sofá da mesma casa. Escutando tudo.
[Ela nunca admitiria mas gostava de me escutar.]
Babaca!
Eu queria aquela festa mais do que colocar o plano em prática, mesmo que tivéssemos estado em uma boate nem 24 horas antes. Queria compensar pela madrugada em claro que passei observando a Vulcano aqui, para ter certeza de que não vomitaria as tripas deitada de barriga para cima enquanto o Caos fazia efeito.
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Aóratos - A Última Mesa
Fantasi"Aóratos vem do grego para Invisíveis. Invisíveis éramos nós, os cinco percursores do caos auto-imposto do imediatismo primitivo." Em um futuro distante e destorcido de nossa realidade, a morte de um ser imortal jogou uma praga na terra escurecida o...