BELENO
Os dormitórios d'Água ocupavam um quarteirão praticamente inteiro.
Seus quatro prédios tinham as entradas viradas para o centro, onde uma pequena praça as conectava. Com o tempo, os alunos fizeram popularizar nomes para cada prédio, então os d'Água eram: Gota, Riacho, Neve e Espelho. No meio da praça estava uma fonte com a imagem de Pontos esculpida, a personificação do oceano e suas profundezas. A imagem do velho barbudo tinha um dos joelhos no chão e segurava debaixo do braços um par de peixes longos e robustos, cujas bocas abertas jorravam água para a fonte de forma constante. O gesso do monumento já havia sido pichado tantas vezes que sua superfície estava manchada, uma vez que nem mesmo os produtos de limpeza eram capazes de tirar a tinta completamente.
Se eu fosse até os prédios de Fogo, encontraria quatro edifícios idênticos, mas com paisagismo, fonte, e pintura externa diferente. Quase um século após sua construção, o lar dos alunos já havia sido alterado de tantas pequenas formas que era uma surpresa não terem caído aos pedaços ainda. Apesar da absurda quantidade de informação uma sobre as outras, os desenhos há tanto grafitados nos prédios conseguiam traduzir a verdadeira essência daquele lugar.
Honestamente, sequer me lembrava mais da experiência de morar em um daqueles prédios. Sabia que odiava dividir o quarto com outra pessoa — que no caso foi uma Incendiária que adorava queimar minhas coisas. Normalmente o aluno com quem dividia o quarto no primeiro ano era com quem dividiria até a formatura. Graças aos Santos me livrei do fardo de lidar com aquela garota insípida por mais tempo que o necessário. Eu não trocaria minha suíte por nada.
Mas ali estava eu, fronte um daqueles prédios horrorosos novamente.
Um grupo de epikos d'Água me encararam quando pisei na praça. Seus olhares se prenderam no meu com atenção em cada passo que dava, as expressões se retorcendo em algo bem próximo de desgosto. Já havia me acostumado com os olhares de ódio daqueles alunos que me viam como inimiga. Mas, de alguma forma, parecia pior quando os d'Água o faziam. Como se eles soubessem que trai o time inteiro quando escolhi comungar com o Fogo. Como se eu fosse uma Beleno farsante.
Mantive a mão no bolso da calça e a expressão impassível quando os atravessei, mas não consegui segurar o sorriso uma vez que dei as costas e os sussurros começaram.
Era incomum que eu estivesse ali, no meio do povo, e não no Castelo onde era meu domínio.
O Aóratos não frequentava dormitórios, tínhamos segurança o suficiente de nós mesmos para levar pessoas para os nossos quartos ao invés de ir até eles. Nossos colegas nos procuravam no Castelo quando necessário, toda a nossa vida acontecia lá.
Eu gostaria de permanecer daquela forma mas, infelizmente, meu irmão decidiu que não estava mais falando comigo e se recusava a responder minhas mensagens. Então se Adamius não iria até a montanha...
A montanha botaria o dormitório de Adamius abaixo.
Encontrei muitos alunos caminhando pelos corredores do Espelho, seus objetos de higiene em mãos para enfrentar mais um dia de fila nos banheiros comunitários. Lembrei de uma manhã na semana anterior, quando encontrei Demétria discutindo com Idris pela aparente quantidade absurda de tempo que ele passava embaixo do chuveiro. Os outros tomaram suas dores e contribuíram na discussão, aumentando ainda mais a divisão entre eles e Idris, que preferiu correr longe de todos no dia. Os Sucessores brigavam o tempo inteiro e por qualquer motivo, como irmãos o faziam. Mas, é, eu quase suspirei com o alívio de não ter que dividir meu banheiro com mais ninguém.
Se me lembrava corretamente, meu irmão sempre morou no quarto 6 do décimo andar, onde o sol brilhava forte pela manhã. Bati na porta dele com violência, sem me importar com o horário.
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Aóratos - A Última Mesa
Fantasi"Aóratos vem do grego para Invisíveis. Invisíveis éramos nós, os cinco percursores do caos auto-imposto do imediatismo primitivo." Em um futuro distante e destorcido de nossa realidade, a morte de um ser imortal jogou uma praga na terra escurecida o...