C A P Í T U L O 26

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Eles estavam tão próximos ao Senguell.

Faltava apenas uma cachoeira antes de chegarem às cataratas: a junção de todos os rios e córregos em direção ao abismo enevoado. Exatamente em cima, suspenso por nada mais do que poderosas raízes, estava a árvore sagrada.

Tão grandiosa, quanto magnífica.

Veias pulsantes e delicadas de luz projetavam esplêndidos arcos-íris em combinação com a luz dos cristais e o próprio nevoeiro. A seiva sagrada escorre pela madeira, em cor fluorescente.

Dandara estava perdendo a oportunidade de contemplar a paisagem.

Seu cochilo havia se tornado um sono tão pesado que nem mesmo o som das cataratas a despertou. Talvez seu corpo tenha finalmente parado de resistir contra as ervas que vem ingerindo nos últimos tempos.

Ou talvez, ela tenha começado a ficar à vontade na presença dos predadores.

Ela não precisava mais ficar em extremo alerta. A humana, apesar de frágil, não estava desprotegida.

Cuidadoso estava com ela em seu colo, acariciando o rosto cansado com suas garras enquanto simplesmente encarava o horizonte e pensava na melhor rota a seguir.

O Senguell é a riqueza da alcatéia. Uma árvore esculpida em seu interior para ser o santuário. Oferendas aos seus principais governantes e aos próprios deuses são depositadas pelas demais criaturas inteligentes da região.

Por isso, Cuidadoso precisa ser atencioso em verificar se nenhum outro macho rival está por perto, principalmente sob a total ausência de seus companheiros de viagem.

Se Dandara acordasse, veria que está completamente sozinha com o predador em um momento de decisão crucial.

Pilantra e Capacho também sabiam…

Cuidadoso só tolera a presença deles próximo a sua fêmea porque são úteis em facilitar a comunicação, em distrair ou explicar sua situação. São úteis para ajudar na vigilância e disfarçar a passagem deles. Porém, no momento em que Dandara demonstrar estar mais calma e confiante em relação a ele, Cuidadoso não permitirá a aproximação de ninguém.

Cuidadoso tem o diazilla kamal para traduzir suas palavras e Dandara dorme em seu colo, quase como uma criança.

Agora, ele deve esperar seus parceiros de viagem e confiar que não irão apontar nada? Ou partir sozinho?

O mesmo dilema que Capacho e Pilantra enfrentam: Serem úteis e esperar reconhecimento de Cuidadoso, ou alertar outros machos da presença de Dandara pelas proximidades?

Só bastaria um único uivo.

Um aviso…

A vegetação mais próxima ao Senguell é precisamente diferenciada. Sob a terra negra, nascem árvores alongadas, com tronco acinzentado. As folhas se perdem numa tonalidade mais escura onde os chrynnos poderiam se ocultar.

Ele seguiu evitando essas árvores, se mantendo em altos caminhos rochosos próximo a vegetação. O caminhar era visando o conforto da fêmea nos braços tal como evitava todo e qualquer tipo de barulho.

Mais abaixo um grupo de tricornes, um herbívoro esguio com três perigosos chifres fazia estrondos ao disputarem suas forças. Dandara sequer reagiu à presença escandalosa.

A fera seguiu os rastros de Pilantra até mais a frente, numa relva alta, com flores laranjas exalando um doce perfume. Mas ele não entrou.

Deveria confiar?

Pelos arredores, ele buscou também os passos de Capacho, seja a sua pegada ou o cheiro. Até mesmo um desenho ao chão seria válido visto que ele também deveria apagar os rastros ao passar com a fêmea.

Sendo menor, Capacho tem mais facilidade em se aproximar cada vez mais das cataratas e detectar o perigo antes que o perigo o encontre.

Nenhum outro macho estava à vista.

Nem mesmo Pilantra. Seu porte mais definido faz com que adote uma estratégia de reforço: se Cuidadoso for atacado, ele não estará muito longe para ajudar. Para protegê-la.

Porém, ambos sabiam que se Capacho fosse realmente descoberto e encurralado, também seria abandonado. É uma concorrência a menos.

Então o rapaz dobrou sua cautela. Seu caminhar se tornou lento… e os pássaros ficaram em silêncio.

O estrondo da água abafou o som de qualquer criatura, exceto a de um uivo. As orelhas de Capacho se levantaram em resposta.

Um chamado.

Uma convocação.

Pior! Uma exigência.

A um quilômetro de distância, houve outro uivo de resposta. Cinco respostas. Havia cinco machos naquela direção, seguindo o rio.

Eles ecoaram de todos os lados. Grupos de sete, três e nove. Todos marcando a sua localização. O som era a própria identificação.

Capacho olhou para o caminho de onde veio. Quem não se identificasse e fosse encontrado naquela região, seria suspeito. Eles estavam perto demais para não ter ouvido…

Cuidadoso ficou em silêncio.

Pilantra ficou em silêncio.

Capacho rosnou, levantou a cabeça e uivou. O som reverberou pelo abismo e, alto e belo. Um uivo fraco, nada mais do que marcando sua passagem simplesmente para que nenhum outro macho suspeitasse.

Logo após terminar, sua pelagem se eriçou.

A alguns metros a frente, um grande e forte adulto se revelava em contraste com o tronco mais claro das árvores. Ele olhava fixamente para Capacho.

Ele não uivou.

Não se revelou.

Ele rosnou.

ACASALAMENTO: Lua CheiaOnde histórias criam vida. Descubra agora