CAPÍTULO 05 - A TORTURA DA TELA BRANCA

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SEGUNDA-FEIRA, 08h40.

Abro o armário distraída, presa no que achei que esqueceria com facilidade.
Entretanto, desde que acordei, cada ação me remete à noite anterior. Como um balde de água fria, a água fria que eu merecia.

Estou tão ferrada...

"Não acredito que fiz isso" penso e deixo meus pincéis caírem no chão sem cuidado algum.

— Tudo bem, posso esquecê-lo enquanto estiver focada no pincel e na tinta. — Digo a mim mesma buscando encontrar uma forma de consolo e apoio emocional.

Tranco o armário e faço o mesmo caminho diário até o atelier de artes. Nada de novo: encontro as mesmas pessoas brevemente durante o trajeto, me esforçando para não deixar cair nenhum material de pintura durante minha breve caminhada. Porém, hoje definitivamente não é o meu dia e sei que nenhum outro, de agora em diante, será tranquilo porque estou começando a alucinar.

Ver Jonathan caminhando no mesmo corredor que eu é algo totalmente incomum e levo um tempo para me acostumar com a ideia de que estou enlouquecendo.

É tão real que até parece…

Ah, não!

Por um momento, desejo estar realmente louca, isso seria melhor do que enfrentar minha realidade.

Dou meia volta, embora seja tarde para passar despercebida. Ele tinha me visto e isso não era fruto da minha imaginação. É tudo minha culpa. Se eu não tivesse ficado parada esperando meu cérebro revelar o que estava acontecendo, teria ganhado tempo e Jonathan não teria me visto.

O que ele está fazendo aqui?

Tenho certeza que nunca o vi na faculdade. Eu saberia. Eu teria o conhecido na noite passada. Se tem algo de que posso me orgulhar é da minha boa memória.

Depois de seguir um novo trajeto e desviar de um mar de pessoas no corredor, consigo finalmente chegar ao atelier. As cadeiras estão quase todas ocupadas, mas agradeço mentalmente que a do fundo ainda esteja livre.

Respiro fundo ao sentar-me em frente ao cavalete, deposito minha bolsa ao meu lado e tento me concentrar no trabalho. A exposição é em poucos dias e preciso ganhar aquela competição de artes se quiser continuar frequentando a faculdade.

— Tudo bem pessoal! Vamos começar! — A líder de sala anucia de forma animada, durante meu processo minucioso de organização dos materiais de pintura. — Devo me desculpar. Nossa modelo não poderá vir hoje, mas eu trouxe um substituto.

Olho concentrada para a tela branca na minha frente. O aroma de tinta fresca e madeira se misturam no ar como o habitual. Coloco fios de cabelo atrás da orelha para evitar muita sujeira. As paletas e os tubos de tintas ficam posicionados no lado esquerdo, enquanto o lado direito é reservado para os pincéis. Tudo era um conjunto que precisava se encaixar como um quebra-cabeças.

— Por isso, Jonathan, do departamento de música veio nos ajudar...

Ela continua e tenho certeza que meus ouvidos não estão funcionando corretamente. Por isso, ergo meu olhar para enxergar o impossível com meus próprios olhos.

Quando achamos que nosso destino não pode piorar, ele sempre tem outros planos para dificultar nossas vidas. Estou pagando por todos os meus pecados. Afinal:

01. Enganei uma pessoal aparentemente inocente;
02. Me passei por outra pessoa;
03. Fui rude como se não houvesse amanhã.

Tudo bem, eu merecia me sentir daquela forma.

Estou apavorada, sinto que vou vomitar e aquilo vai ficar para sempre na mente das pessoas que estão naquela sala. ''Ah, você conhece a menina que vomitou na aula de pintura? Ela faz as mesmas aulas que eu’’. Imagino todos os boatos. O medo da humilhação não se compara ao medo de ser descoberta que estou sentindo agora.

Sou como a tela branca à minha frente: sem graça, sem cores e sem saída. Para piorar não posso ir embora, meu futuro depende desse teste simulador. Depende de todo meu esforço para desenhar Jonathan.

Ele assume o centro da sala com sua beleza estonteante. Às vezes precisamos pagar um divida por enxergar e acredito que estou pagando essa divida quando ele começa a desabotoar os botões de sua camisa verde bruguer. Cada músculo que surge e se define é como uma tortura psicológica.

"Por favor não faça isso ou terei que ser levada para o hospital". Imploro em silêncio.

— Peço que todos se concentrem. Vocês sabem que essa será uma das provas na competição. — A lider de sala comenta, antes de se sentar em frente ao seu próprio cavalete.

Claro que eu sabia. Havia lido e relido o edital até de ponta cabeça. Cada linha estava gravada em letras maiusculas na minha mente. Mas agora, com Jonathan com seus olhos fixos em mim é praticamente impossível.

Tudo se transformou em névoa cinza. Não sei o que ele está pensando e nem o que sua expressão quer me dizer. Como posso pintar alguém que me faz ficar apavorada e ao mesmo tempo querer fugir?

Estou constrangida e isso é tão visível que mal consigo segurar o pincel sem que ele escorregue entre meus dedos. Sou realmente uma artista? Ainda sei o que significa desenhar e misturar cores até que se tornem harmônicas? Me sinto tão pequena e incapaz.

"Artistas de verdade não se deixam levar por um homem sem camisa", penso com amargura.

Jonathan está tentando me desmotivar com seus olhos que não sabem desviar da minha direção. Em um último esforço, pego o lápiz com a mão trêmula e faço meus primeiros rabiscos na tela de forma desajeitada. Toda vez que desvio o olhar da tela para Jonathan, sinto que meus olhos vão queimar e não irei mais conseguir enxergar.

Ele ainda olharia para mim daquela forma se soubesse quem sou de verdade?

Muito improvável!

Ele nem reconheceria minha existência se soubesse que não sou rica e popular como Anne é. Nossos olhos não se encontrariam por mais de um segundo se ele soubesse que não possuo nada mais que um futuro indefinido. Sou apenas uma garota tentando sobreviver.

A pressão se torna insuportável. Estou incapaz de controlar minhas emoções revoltantes, então abandono a sala. A tela inacabada fica para trás.

Não consegui vencer a batalha hoje e talvez nunca mais consiga se Jonathan continuar aparecendo na minha frente.
Fugir é a única saída para escapar daquela tortura interna.

Não sei o que farei em relação a competição. Se não consigo encarar a realidade e nem assumir a responsabilidade do que fiz na noite anterior, talvez signifique que eu não esteja preparada para vencer competição alguma.

O arrependimento é só mais uma consequência.

Uma Farsa De AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora