Capítulo 1

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Gerard era uma pessoa cheia de incômodos: barulhos de torneira pingando o deixavam nervoso, pessoas mastigando o tiravam do sério, meias apertadas o deixavam de mau humor. A lista de incômodos era, com certeza, infinita. No entanto, o sobretudo que vestia, por mais desconfortável que fosse, não o incomodava tanto assim.

Fazia um calor insuportável naquela semana em Los Angeles, mas, por sorte ou planejamento da produção, aquela era uma semana inteira de gravações no estúdio. A cena do júri. No caso, a cena. Gerard perdeu noites de sono pensando na melhor maneira de dizer aquelas falas, no gestual do seu personagem, no tom que queria passar. Ele sempre se preparava excessivamente.

Alguns anos depois de tentar o method acting, e se perder em si e nos personagens, ele sentia que precisava diferenciar quem era ele e quem eram aqueles a quem emprestava sua própria vida. Na verdade, isso se intensificou quando Ban, sua filha, nasceu. Ele realmente não podia ir para casa e continuar sendo o policial corrupto nº 3" com uma criança de três anos chamando "papai, papai" pela casa. 

A carreira de Gerard tinha extensos 25 anos de fracassos. Os palcos de Nova Iorque não foram gentis com ele, talvez porque ele realmente não conhecesse ninguém, então Gerard não viu outra alternativa senão mudar para o outro lado do país. No começo dos anos 2000, Los Angeles era realmente a terra prometida. Havia sempre um papel de corpo em Law and Order: Special Victims Unit, ou de algum doente à beira da morte em Grey's Anatomy.

Mas não foi para isso que Gerard trocou um mar pelo outro. Ele queria atuar em filmes relevantes, que percorressem os mais diversos festivais. Filmes de diretor, filmes assinados. Grandes filmes. Com o tempo, suas opções foram passando e, além de ter que servir mesas durante o dia e tentar se espremer entre audições, ser um corpo em uma série policial significava ainda estar no mercado.

Enquanto pensava que estava no auge, Gerard via sua carreira minguar. Quando chegou aos 40, fez um pedido: queria uma última chance. Ele ia desistir daquilo. Sua filha já tinha oito anos e era um ser humano completo, com suas próprias vontades e ambições. Parecia que Gerard era como um disco riscado no mesmo lugar, girando, girando sem fim, sem saber quando ia conseguir parar...

Só mais uma chance. Uma chance e ele faria tudo valer a pena. Ou, se a chance não viesse, ele desistiria. Tiraria o diploma de artes cênicas da gaveta e bateria à porta de alguma escola ou grupo de teatro para tentar ganhar a vida. A pressão de Lindsey, atual ex, mas esposa à época, também não ajudava.

Dá para entender um pouco... Lindsey tinha ela mesma aberto mão da sua carreira de pintora. Ela não entendia como o marido, depois de tantos anos, ainda insistia naquilo. Claramente ele não tinha talento ou, se tinha, não era percebido. E de qualquer forma, era um mercado cruel, uma máquina de moer gente. Todos os dias pela manhã ela se fantasiava de algo que não era, com um blazer cinza, um batom coral e um sorriso falso. Colocava as frustrações e alegrias dentro da maleta e saía batendo de porta em porta em consultórios médicos para vender os medicamentos da empresa para a qual trabalhava.

Carismática, Lindsey logo subiu a escada corporativa. Não demorou para que então ela se esquecesse que, no fim, era tão artista quanto Gerard, e um buraco se abrisse no chão entre os dois. Havia acordos silenciosos feitos pelo bem de Ban, havia muito do que não era dito, apenas vivido, que nunca veio à tona. Exceto na época do divórcio. Foi aí que Gerard soube o que ela realmente pensava dele.

A chance que Gerard pediu ao universo chegou, enfim. Enquanto seu casamento ruía e ele precisava achar um aluguel que coubesse no orçamento módico, com um segundo quarto para Ban, ele continuava tentando. Agora, pelo menos, conseguia se sustentar com o dinheiro que ganhava atuando. Ele era um dos que tinha conseguido.

à flor da pele [FRERARD]Onde histórias criam vida. Descubra agora