VI

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Já fazia algumas horas que o sol tinha se escondido atrás das montanhas, e o cheiro de comida já tinha dominado meu quarto. Eu não tinha certeza do que era, mas pelo cheiro estava muito bom. Esperei com impaciência até o Filipe bater na minha porta para descermos.

Eu estava faminta!

Não tinha muitas pessoas quando chegamos a sala de jantar. Não sei se demoramos demais e quase todos já tinham comido, ou se talvez, tivesse poucas pessoas hospedadas.

De qualquer forma, havia mesas de sobra para escolhermos onde sentar.

Deixei Filipe escolher. Meu único foco era o imenso caldeirão há poucos metros.

Ele escolhe uma mesa perto da janela aberta. O ar gélido sopra as velas sobre a mesa, mas elas não apagam.

– Senta. Eu vou pegar nossa comida. – ele diz.

– Quê? Não precisa!

– Eu volto logo. – ele responde, quase revirando os olhos.

Ele não espera minha resposta, porque talvez não fizesse diferença. Sento na cadeira próxima a janela, de frente para a sala.

Um arrepio passa pela minha nuca, e por um segundo penso ser pelo ar da janela, até me dar conta que é um arrepio de alerta, como se meu corpo me avisasse que estou sendo observada.

Minha atenção vai imediatamente para o Filipe, mas ele está de costas para mim, concentrado na sua missão de encher dois pratos de comida.

Discretamente observo a sala. Tem um casal de idosos comendo num canto, uma mulher com uma criança no outro, dois homens conversando nas poltronas gastas, e...

ELE!

O cara que invadiu o meu quarto.

Como eu não o vi antes? Ele está literalmente na minha frente, e seu olhar está fixo em mim.

Seus cotovelos estão apoiados sobre a mesa, e suas mãos entrelaçadas escondem um sorriso.

Com a luz oscilante das velas, vejo que seu cabelo é castanho escuro na altura das bochechas, e seus olhos parecem pretos, mas não tenho certeza pela distância.

Ele usa dois anéis nos últimos dois dedos da mão esquerda. O anel do dedo anelar é liso, e o outro, do dedo mindinho, tem uma pedra oval avermelhada. Ambos são de prata.

O sorriso dele aumenta, e só então me dou conta que estou avaliando há tempo demais.

Desvio meus olhos, mas infelizmente de forma abrupta , o que só piora a situação, porque ele vai pensar que estou constrangida, algo que obviamente, não estou!

– Por que você está bufando? – Filipe pergunta. – Não gosta de guisado? – ele coloca os dois pratos sobre a mesa, e observo o vapor subindo.

– Amo. – é só o que respondo, antes de puxar meu prato para mais perto, e dar uma colherada.

O guisado queima minha língua, mas não ligo. Está tão bom, que vale a pena ter a língua queimada.

Comemos em silêncio, felizes demais com uma comida quente, forte e caseira. Quando termino o meu, imediatamente levanto para pegar mais. Preciso aproveitar! Não sei quando vou ter a chance de comer algo assim de novo.

Estou na segunda concha, quando ouço alguém se aproximar.

– Seu namorado não quis vir dessa vez?

Não olho para ele. Estou concentrada em algo mais importante:

Quantas conchas é o suficiente para encher o meu prato?

– Ele não é meu namorado.

– E ele sabe disso? – ele solta uma risada e eu reviro os olhos. – Quando foi a última vez que você comeu? – ele observa hipnotizado enquanto encho meu prato.

– Own! Está preocupado com a minha alimentação?

– Estou preocupado com quem ainda não comeu. Se você continuar aqui, só vai sobrar o caldeirão.

– Aí, nossa! Você já comeu? – finjo preocupação.

– Na verdade, não.

– Que pena! – sorrio, e então coloco mais duas conchas cheias e volto para a minha mesa com o prato quase transbordando.

– Quem é aquele cara? – Filipe não ergue o olhar, e mantém sua atenção no guisado.

Ele está no personagem. Afinal, um irmão no máximo ficaria intrigado em ver um cara conversando com sua irmã, mas não veria um perigo iminente. Algo que com certeza não é o meu caso. Ele precisa estar atento a todas as pessoas que se aproximam de mim.

– Algum forasteiro engraçadinho. – tomo uma colherada.

– Não baixe a guarda, Saddie. Não o subestime por ser bem-humorado. É muito fácil colocar um sorriso no rosto e ter piadinhas prontas na ponta da língua.

O guisado estanca na minha garganta enquanto analiso suas palavras.

Foi exatamente o que fiz: eu o subestimei.

Na primeira vez em que o vi, eu estava em alerta. Reagi rápido e me preparei para o ataque, mesmo que fosse com uma barra de sabão. Já nessa vez, em nenhum momento me preocupei com isso. Estava distraída...com a comida.

– Isso não vai se repetir. – respondo com convicção, e Filipe assente uma vez, satisfeito.

O vapor sobe pelo meu rosto, enquanto mexo o guisado de forma distraída. Meus olhos estão fixos no cara ao lado do cadeirão. Ele está de costas, então não vê que o estou analisando.

Eu poderia dizer que nada nele é suspeito. Ele é um típico rapaz de aproximadamente 23 anos, 1,85 cm de altura, e uns 90 quilos, talvez?!

Seu corpo não é o tipo esbelto. Ele tem músculos, mas não o suficiente para ser considerado perigoso. No máximo, vaidoso. Sua pele é bronzeada, e parece que em todas as vezes que o encontro, ele está com uma mecha ondulada caindo sobre os olhos. Virou uma espécie de gesto automático colocar a mecha atrás da orelha. Suas roupas também não são chamativas. É tudo muito neutro. Calça escura, bota surrada, e um pesado casaco por cima.

Acho que o que mais me chamou atenção foram seus olhos. Nunca vi olhos tão pretos como os dele. É como se carregassem a noite, e qualquer vislumbre de luz fosse sugado.

– Como vai sua avaliação ? – Filipe diz de repente, o que me arranca um suspiro de surpresa.

Ele terminou o guisado e está me encarando, e pela sua expressão, já tem um tempo.

Levo uma colherada do guisado já frio para a boca, e tento me recompor.

Estou cada vez mais demonstrando que foco não é o meu forte.

Eu deveria estar estudando formas de me defender dele se fosse preciso, e não reparar em suas roupas e em como seu cabelo cai sobre os olhos.

– E então? – Filipe ergue as sobrancelhas, esperando uma resposta.

– Seria moleza.

– Ah, é mesmo?! – ele parece surpreso, mas não convencido. – E o que você faria? Ele é bem mais alto do que você, e pesa uns 30 kg a mais.

– Fácil. – reviro os olhos, pensando em alguma resposta decente, já que todo o tempo eu só estava analisando o cara, e não como lutar contra ele.– Um chute bem dado entre as pernas.

Filipe revira os olhos, mas vejo um leve sorriso surgir no canto da sua boca.

– Foco! – ele me lembra.

Nesse momento o forasteiro passa para sua mesa, e meus olhos se voltam para ele novamente.

Não há nada de suspeito nele, e talvez seja isso que o torne o vilão perfeito.

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