Capítulo III

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Ofélia acordou desorientada. Não sabia por quanto tempo havia dormido. Olhou ao redor e percebeu que ainda estava no quarto de Celeste. Viu-a de pé, em frente a uma bancada repleta de potes e ervas, ao lado de uma silhueta masculina. Pelo manto roxo que usava, reconheceu ser seu pai. Sentiu um cheiro cítrico, levemente adocicado, vindo de algum lugar. Notou em seguida que o aroma estava em seu corpo, haviam esfregado algum tipo de óleo em sua testa, provavelmente para aplacar a dor e fazê-la dormir.

— Pai?

— Ah, finalmente. — Afastou-se da bancada e sentou-se ao seu lado, na cama. — Viu alguma coisa?

Ela negou, irritada. Toda vez que tinha algum desses acessos a primeira coisa que seu pai lhe perguntava era "Viu alguma coisa?", "Seus sonhos lhe disseram algo?" ou até "O que me diz, pequeno oráculo?". Claramente não se importava com seu bem-estar, com o peso torturante que morava em seu cérebro. Aderindo a uma vingança silenciosa, nunca lhe dizia nada, mesmo que visse a morte de um Marquês importante ou sonhasse com o nascimento de um primogênito aguardado. As coisas aconteceriam de qualquer forma, quer ela falasse, quer não. Recusava-se a ser mais um objeto manipulável nas mãos de uma Corte sanguessuga.

— Que pena. É melhor se levantar, está quase na hora do jantar.

Uma onda de raiva lhe subiu pela garganta, mas ela a reprimiu. Friamente, respondeu:

— Não estou com fome.

Ele nem mesmo pareceu ouvi-la. Retomou a conversa com Celeste que, embaraçada, respondia às suas perguntas de forma evasiva. Perguntava se era possível elaborar algum tipo de elixir que pudesse aflorar os dons da filha de alguma forma, ou até mesmo os seus, que andavam enfraquecidos. Ofélia, ao entender o que o pai almejava, desemaranhou-se das cobertas e saiu do quarto como um raio, deixando a porta aberta. Correu o mais rápido que pôde, fugindo da voz do pai que chamava seu nome com frustração crescente.

Atravessou corredores e desceu escadas mais rápida que uma sombra, desviando de membros da Corte, guardas e serviçais no caminho. Passou pelo Salão Principal e pela sala de jantar, evitando ser notada, e chegou às portas laterais. Abriu-as sofregamente e apenas respirou ao sentir o vento frio da noite cortar o seu rosto.

Ela olhou para baixo. As saias de seu vestido de cetim branco oscilavam ao vento como velas num mastro. As rajadas frias pareciam vir de todas as direções. Fechou as portas o mais rápido que pôde, antes que percebessem o assovio frígido no salão de jantar.

Correu pelos jardins até sentir uma pontada de dor entre as costelas. Suas pernas a guiavam para o único lugar para onde poderia ir. Recuperou o fôlego e, com uma mão pressionada contra o flanco, foi vencendo a distância.

À medida que se aproximava, foi diminuindo a velocidade. Lá estava ele: imperturbável, escuro e silencioso. Os sapos coaxavam ao longe, os grilos cricrilavam e, de vez em quando, um morcego rodeava as margens com seu voo desesperado. Mas nenhuma criatura se atrevia a perfurar aquela placidez. Ou talvez essa fosse apenas uma impressão sua. O lago, para ela, era uma entidade antiga e poderosa.

Lenta e cuidadosa, ela se aproximou. Não queria acordar a fera adormecida. Ajoelhou-se à margem, suas mãos tocaram a grama e a terra úmida. Estava escuro demais para ver qualquer coisa. Mas ela sentia seu cheiro.

Uma respiração profunda demais. Um soluço. Um choro irrefreável. Lágrimas molhavam seu pescoço e ela sentia o rosto retorcido pela tristeza que sentia de si própria.

Viu sua versão infantil, seu corpo tímido de dez anos de idade, adentrando a água congelante com pedras enfiadas no vestido. Ouvira vozes diversas, sussurradas, incessantes "Entre", "Entre logo, antes que achem você", "Mergulhe", "Nade até o fundo". Mas, dentre todas aquelas vozes estranhas e sobrenaturais, ouviu a sua própria, carregada de uma resignação desesperadora "Vai ser melhor quando acabar".

Ofélia: a Prisioneira dos SonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora