O banheiro de Valerian era frio e escuro, mas espaçoso.
Ofélia estava sentada na borda da banheira, com as saias levantadas, fixando o ferimento na perna. A marca da mordida era profunda e uma mancha arroxeada havia se alastrado por uma extensa área ao redor dela. Astrid provavelmente havia lhe administrado algum unguento ou erva medicinal cujo o efeito já se encerrara, pois a dor contida de antes agora se tornara debilitante. Na metade do caminho até o quarto, Merida tivera que praticamente carregá-la.
— Tudo bem aí dentro? — A voz da amiga atravessou a pesada porta, ansiosa.
Ela gritou um "Sim" esganiçado, sentindo ondas de dor irradiando pelos seus ossos. Suas unhas cravavam-se na parte posterior de sua coxa, como se assim pudesse arrancá-la e eliminar o latejar lancinante.
O suor frio se acumulava em suas axilas. Ela ergueu o pescoço, fitando o espelho de corpo inteiro na parede oposta a ela. Uma Ofélia desesperada a encarou de volta, os olhos semelhantes aos de um cervo ferido. Os cabelos cor de cobre, que em dias bons ondeavam pelas suas costas, se emaranhavam desgrenhados. O vestido vinho de seda, estonteante em outras ocasiões, parecia, agora, uma macia cama de sangue. As pernas brancas estavam marcadas por cortes, principalmente nos tornozelos. Seu corpo inteiro dóia; as pupilas dilatadas cobriam quase todo o verde de suas íris.
Lágrimas escorreram por suas bochechas, involuntariamente. Sentia arrepios por toda a pele, precisava de ajuda.
Sabia que Valerian provavelmente teria alguma coisa para ela. Seus hábitos belicosos e secretos lhe rendiam, com muita frequência, cortes, hematomas e ferimentos de variados graus de gravidade. Por conta própria, havia aprendido a tratar-se, especialmente quando percebeu que suas visitas constantes à enfermaria espalhavam comentários pela Corte. Chamou seu nome, incerta, apenas uma vez, e esperou que aparecesse.
Viu a porta deslizar e um rosto cor de alabastro aparecer entre o vão. As sobrancelhas, quase invisíveis de tão brancas, estavam cerradas sobre os olhos violáceos. Ao perceber o estado de Ofélia, apressou-se em sua direção para ampará-la. Trajava as mesmas peças escuras de sempre, com ornamentos prateados. O cabelo loiro-gelo estava penteado para trás, acentuando a ossatura afiada de seu rosto. Ela mal tinha reparado nele ao entrar no quarto, disparara em direção ao banheiro como se estivesse prestes a vomitar.
— O que você fez? — A nota dissonante na voz de Valerian perturbou Ofélia. Merida apareceu em seguida, levando as mãos à boca em choque ao ver o ferimento em sua perna. — Isso é... uma mordida?
Ofélia não respondeu, apenas assentiu. Em seguida, ele pressionou os dedos sobre sua pele, o que a fez urrar. Valerian cobriu sua boca num átimo.
— Se quer que eu te ajude, precisa me dizer o que houve.
— Mordida... — ela ofegou — de nixie.
Merida e Valerian trocaram um olhar confuso. A amiga tinha o rosto congelado numa expressão entre o nojo e o pavor. Ofélia olhou para baixo e viu que tinha voltado a sangrar.
— É venenosa — revelou o rapaz, agora completamente concentrado. — Traga aqui a maleta, Merida. Você sabe onde fica.
Demorou meio segundo até assimilar o comando e ir buscá-la. Valerian levantou-se para lavar as mãos nesse meio tempo, sem perder o foco em nenhum momento. Merida reapareceu com uma caixa de madeira em formato de pirâmide e a entregou sem olhá-lo. Tinha os olhos fixos nas marcas dos dentes que penetravam sua pele. O rapaz a abriu, revelando bandejas deslizantes repletas de frascos, instrumentos e potes de ervas.
— Vai doer. Tente não gritar.
Ela anuiu, sua cabeça rodopiava. Valerian tirou do pescoço o lenço que usava e o amarrou na parte mais alta de sua coxa, fazendo um torniquete. O latejar ficou mais forte. Ofélia ouviu o tilintar de um frasco e, em seguida, sentiu um líquido escorrer pela sua pele, queimando como querosene. Sufocou um grito, mordendo a língua até sentir gosto de sangue.
— Ela não estava assim antes — murmurou Merida.
— O quê?
— Ela estava bem há poucos minutos.
— Eu fui tratada. Não me façam mais perguntas — esforçou-se para dizer. — Valerian, termine isso logo.
Hesitante e contrariado pela teimosia, pegou um lanceta e um frasco de vidro pontudo. Fez um corte rápido e profundo na parte interna de sua coxa e inseriu ali a extremidade do frasco. Ofélia enfiou as unhas em seu pulso, mas ele nem pareceu senti-las. Em seguida, Valerian aplicou-lhe uma pomada que deixou suas pernas dormentes.
— Torniquete para interromper o fluxo de sangue, álcool para desinfetar, antídoto contra veneno de nixie e pomada de oleracea para analgesia. Seja lá o que tenha feito antes, salvou sua perna. E a sua vida. Não duraria uma hora com uma mordida dessas.
Ofélia o olhou, tentando assimilar as informações. A explicação óbvia era que Astrid tinha, de alguma forma, conseguido evitar sua morte e tratado seus ferimentos. Não imaginava que uma caçadora de trufas teria um antídoto contra veneno de nixie convenientemente guardado, mas, de qualquer modo, não fizera muitas perguntas. Agora, porém, lembrava-se da sensação de formigamento que sentira nas pernas enquanto andava sozinha pela floresta, em direção ao castelo. Escolhera enfrentar o medo de sair desacompanhada a aceitar as insistentes ofertas de Astrid; tinha medo de que as encontrassem juntas, o que certamente traria problemas.
— Merida, me ajude a levantá-la. Precisamos levá-la para a cama.
A garota assentiu, ainda um pouco pasma. Os dois a ergueram pelos ombros, um de cada lado, e a guiaram mancando até a cama, onde desabou.
— Vamos fazer um curativo. Tente não se mover. E suba as saias.
Disse isso sem rodeios, como se estivesse repassando um comando qualquer. Ofélia não se constrangeu, mas Merida arregalou os olhos, espantada. Ela levantou o vestido, tensionando os músculos quando o tecido resvalou na ferida, e o observou enquanto pegava uma outra maleta, dessa vez retangular.
Sentou-se na cama, ao seu lado, e começou a tirar dali ataduras, chumaços de algodão e um vidro com um líquido amarronzado em seu interior. Estava etiquetado como "extrato de barbatimão", um cicatrizante conhecido. Tentou relaxar, sabendo que o pior já tinha passado. Merida apertava seu ombro, na intenção de demonstrar apoio, mas apenas conseguindo evidenciar o seu nervosismo.
Bateram à porta duas vezes antes de abrirem sem esperar pela licença. Ofélia só teve tempo de abaixar o vestido até o joelho enquanto Valerian endireitava-se na cama, ocultando a maleta com o próprio corpo. Merida permaneceu extática com a mesma expressão de espanto.
Uma cabeça muito semelhante à de Valerian, exceto pelo longo cabelo branco, invadiu o quarto. Era Viviane, sua irmã mais nova. Seu rosto exibia um semblante impaciente que intimidava, além de um corte vermelho atravessando seus grandes zigomas.
— Está atrasado para a aula de Línguas. O que está fazendo?
Merida e Ofélia se entreolharam, mas Valerian manteve o olhar fixo nela. Sem respondê-la, mudou de assunto:
— O que houve com o seu rosto?
— Vasili errou a mira na esgrima.
— Era pra ter acertado o seu olho? — brincou. A irmã corou sem rir e a expressão em seu rosto se suavizou.
— Venha logo.
Fechou a porta. Valerian esperou um segundo antes de virar-se novamente para Ofélia e terminar seu curativo sem lhe dirigir palavra. Deu um nó apertado e, como se desse o diagnóstico final, disse, se levantando:
— Tome cuidado com o que faz se não quiser chamar atenção. E obrigado pelo convite.
Sua voz baixou de volume na última frase. Ofélia olhou em direção à cômoda onde havia deixado o convite antes de disparar para o banheiro e percebeu o envelope aberto. Assentiu, sem saber exatamente o que dizer.
— Van Doren, hein? Eles ainda vão nos trazer problemas.
ζζ
oie! o que acharam do capítulo? gostaram de Valerian? estão curiosos sobre os Van Doren?não se esqueça de votar e comentar!⭐️💭
até a próxima <3
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Ofélia: a Prisioneira dos Sonhos
FantasyOfélia é uma figura chamativa no Reino Fae. Seu pai é o Conselheiro Real, seus amigos colecionam os títulos de maior de importância da Corte e sua correspondência vive repleta de convites para festas, bailes e saraus. Todos a querem ter por perto pa...