Capítulo II

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Da espada escorre o sangue
E do cavaleiro se esvai a vida.
Companheiros de rosto exangue
Sentem a úlcera da ferida

Ao seu lado o pardal voa
Em fuga ligeira e corrida
O Almirante, postado à proa,
Vê tempestade que se avizinha

No vilarejo uma criança acorda
Um prato se quebra na cozinha
O tocador de alaúde erra uma nota
Uma estrela cai na distante linha

Ofélia, apoiada na cama sobre um cotovelo, encarava o poema inacabado de Pavel, o príncipe do Reino Fae. Enquanto isso, Merida se entretinha com sua penteadeira repleta de maquiagens, acessórios e tinturas.

— Está melhor que o último — ela disse, fazendo-o resmungar.

Ele andava de um lado para o outro, beliscando seu único brinco. Costumava pedir a opinião dela sobre suas produções literárias e era sempre muito exigente. Seu viés artístico lhe rendera a alcunha de o Príncipe Poeta, apelido que ele fingia não ouvir, mesmo que fosse mais falado que o seu próprio nome. Ofélia sabia o motivo: no fundo, ele queria ser visto apenas como Pavel, o Poeta, mas sua linhagem o condenara. Seria príncipe antes de ser qualquer coisa. Ansioso para ignorar o fantasma da crítica, ele perguntou:

— O que veio me dizer, afinal?

Ofélia se soergueu e pulou da cama alta. Atravessou o cômodo a passadas largas, na tentativa de vencer a distância entre os dois mais depressa. Aquele quarto era, de longe, o maior. O mais, extravagante, opulento e majestoso. Parecia sempre haver algum detalhe novo a ser admirado, mesmo que ela o visitasse regularmente durante a semana. Além disso, contava com algumas câmaras e passagens secretas que ela suspeitava não conhecer em sua totalidade. Tudo ali emanava um halo dourado, como se as janelas estivessem sempre voltadas para o sol. A cama era enorme, suspensa por grossas cordas e coberta por longos dosséis. As tapeçarias, únicas e ricamente bordadas, continham cenas de rituais feitos pelas fadas. Até mesmo o aroma ali dentro era diferente, uma mistura de âmbar e baunilha.

Ela o entregou o envelope preto sem dizer nada, exibindo um sorriso cúmplice. Ofélia sabia o que ele iria dizer ao ler o convite, conhecia seu histórico com os Van Doren. Ou melhor, com Klaus Van Doren.

— Eu não vou.

Da penteadeira, Merida soltou uma risada alta. Pavel lançou-lhe um olhar irritado e tentou devolver o envelope à Ofélia, que já havia se afastado em direção ao espelho oval enorme que ocupava uma das paredes do quarto. Ele suspirou, aborrecido:

— Não sei como conseguiu um pra mim. Klaus me expulsaria de sua casa aos pontapés assim que me visse entrar pela porta.

— Klaus me entregou pessoalmente os convites. Disse que eu deveria distribuir todos eles. Todos, sem exceção.

O rosto de Pavel se contraiu em desconfiança. Ofélia o observou através do reflexo, cuidadosamente. A frente de seus cachos longos e escuros acortinava seu rosto confuso, mas, por trás deles, ainda era possível ver as sobrancelhas grossas franzidas sobre o seu nariz adunco. Num gesto automático, ele pôs uma mecha atrás da orelha, seus dedos resvalando na argola dourada. Os modos delicados de Pavel denunciavam sua sensibilidade; sua presença no ambiente era como a queda de uma pluma, ao mesmo tempo discreta e notável. Ela gostava de admirá-lo como se ele fosse um inseto frágil e raro. Gostava de sentir a maciez de sua pele marrom, sentir o perfume que parecia emanar de seus poros. Ao levantar o olhar, Pavel capturou o dela. E, sustentando-o, disse:

Ofélia: a Prisioneira dos SonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora