cap 10

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Kay estava machucado. O sangue quente escorria lentamente, misturando-se à poeira que cobria sua pele. O corte ardia, e ele sentia o peso da dor puxando seus músculos a cada movimento. Erin, mesmo tremendo de medo, insistiu em cuidar dele. Ela não podia deixar Kay assim, especialmente depois do que ele havia feito para mantê-la segura.

— Sente-se — Erin disse, a voz mais firme do que ela mesma esperava.

Kay hesitou por um segundo. Ele estava acostumado a lidar com tudo sozinho, a esconder suas fraquezas, mas o cansaço era inegável. Com um suspiro de rendição, ele se sentou em uma cadeira velha e rangente na sala. Erin se ajoelhou ao seu lado, pegando água e um pano. A sala estava silenciosa, exceto pelo som da respiração pesada de Kay e o farfalhar do pano sendo mergulhado na água.

Enquanto limpava a ferida, Erin observava cada movimento com atenção, seus dedos trêmulos, mas precisos. A máscara de Kay estava imóvel, escondendo suas expressões, e isso a deixava desconfortável. O que ele estava pensando? Sentia dor? Medo? A máscara parecia ser uma barreira não apenas física, mas emocional, separando-o do mundo ao redor. Era uma barreira que Erin desejava atravessar, mas não sabia como.

— Meu nome é Erin — ela disse de repente, quebrando o silêncio espesso. Suas mãos continuavam a trabalhar no corte, mas sua mente vagava em um turbilhão de pensamentos. — Acho que nunca te disse isso de verdade.

Kay ergueu o olhar. Ele sabia seu nome, é claro, mas ouvir Erin se abrir dessa maneira, com uma simplicidade que escondia uma profundidade de vulnerabilidade, fez algo dentro dele apertar. Ele acenou com a cabeça lentamente, permitindo que ela continuasse, sem pressioná-la.

Erin respirou fundo, seus olhos fixos no corte que estava limpando. Ela parecia estar escolhendo cuidadosamente as palavras, como se estivesse abrindo uma porta trancada por anos.

— Eu não sei muito sobre minha origem — começou ela, a voz baixa e trêmula. — Minha mãe sempre me dizia que eu era... estranha. Que eu não tinha sentimentos como as outras crianças.

Kay permaneceu em silêncio, seus olhos focados em Erin, absorvendo cada palavra. Ele podia sentir a dor oculta naquelas palavras, como se cada sílaba fosse um fragmento de um quebra-cabeça emocional que Erin estava tentando montar. Algo sobre isso o fazia se identificar. Ele também conhecia a sensação de ser "estranho", de não se encaixar.

— Eu sempre tive essa sensação de... vazio — Erin continuou, enquanto terminava de limpar a ferida e pegava uma bandagem para envolvê-la. — As outras crianças pareciam felizes, riam, brincavam... Mas para mim, tudo sempre parecia... distante. Como se eu estivesse assistindo a vida passar por uma janela, sem realmente fazer parte dela.

O silêncio voltou a preencher o ambiente, mas dessa vez era mais pesado, mais denso. Erin se levantou lentamente, terminando de enfaixar o ombro de Kay. Ele ainda não havia dito uma palavra, mas a maneira como ele a observava indicava que estava ouvindo cada detalhe, absorvendo cada fragmento de sua história.

— Minha mãe tentava... me entender — Erin disse, afastando-se um pouco e sentando-se em uma cadeira oposta. — Mas acho que, no fundo, ela tinha medo de mim. Ou talvez tivesse medo do que eu podia me tornar. Ela falava pouco sobre minha infância, mas lembro que sempre havia essa tensão entre nós, como se houvesse algo... errado.

Ela fez uma pausa, mordendo o lábio inferior, hesitando em continuar. Kay a observava com atenção, mas não a pressionava. Ele sabia que, quando se trata de segredos como esses, o tempo é necessário.

— As noites eram as piores — Erin murmurou, olhando para suas próprias mãos, que agora estavam entrelaçadas no colo. — Eu sempre tinha pesadelos. Sempre. Como se alguma coisa estivesse me perseguindo, algo que eu nunca conseguia ver completamente, mas que sabia estar lá, à espreita.

Kay, apesar da dor em seu ombro, inclinou-se ligeiramente para frente, mostrando que estava presente e ouvindo. Erin nunca havia falado sobre essas coisas antes. Nem para sua mãe, nem para qualquer outra pessoa. Era como se finalmente tivesse encontrado alguém que poderia, de alguma forma, entender.

— Uma noite... — a voz de Erin falhou um pouco, e ela parou, respirando fundo antes de continuar. — Eu acordei e vi um garoto no teto. Ele estava coberto de sangue. — Sua voz tremeu, as palavras saindo mais rápidas agora, como se fosse doloroso demais segurá-las. — Eu não conseguia me mexer. Estava completamente paralisada. Só podia... só podia olhar para ele. E ele me olhava de volta, como se estivesse... pedindo ajuda. Mas eu não podia fazer nada.

Aquela imagem ficou na mente de Kay. Um garoto coberto de sangue, no teto de um quarto, observando Erin. Era uma visão perturbadora, que parecia algo saído de um pesadelo, mas ele sabia que, no mundo em que viviam, os pesadelos eram muitas vezes reais.

— Depois daquela noite, as coisas só pioraram — Erin continuou, seu olhar distante, fixo em algo que Kay não podia ver. — Os pesadelos ficaram mais intensos, e eu comecei a ver coisas durante o dia também. A sensação de ser observada nunca ia embora. E então... houve a noite em que tudo mudou.

Kay sentiu que este era o ponto crucial da história, o momento em que tudo desabou para Erin. Ele permaneceu em silêncio, esperando que ela reunisse forças para continuar.

— Eu... ataquei minha mãe — Erin disse, a voz quase inaudível. — Não me lembro exatamente como ou por quê. Tudo o que sei é que, depois de um desses pesadelos, acordei e fui até o escritório dela. Ela estava trabalhando tarde. Eu a vi, e... e algo em mim quebrou. Eu me joguei nela, gritando coisas que não faziam sentido. E então... então ela estava no chão, e eu estava chorando sobre o corpo dela.

Kay sentiu um frio na espinha ao ouvir isso. Ele não conseguia imaginar o que Erin devia ter passado, a confusão, o medo, a culpa.

— Desde então, eu nunca mais vi meu irmão — Erin sussurrou, limpando uma lágrima teimosa que escorria por seu rosto. — Ele desapareceu, e eu não sei se ele era real ou apenas uma alucinação. E desde aquela noite, Sete Além parece me perseguir. Eu não sei se pertenço a esse mundo ou àquele. Tudo é tão... confuso.

Kay não sabia o que dizer. Ele entendia a sensação de estar perdido entre dois mundos, de não saber a qual pertencer. O passado de Erin era sombrio, assim como o dele. Ambos tinham segredos, ambos tinham cicatrizes invisíveis que carregavam. Mas, agora, estavam juntos, e isso parecia importar de alguma forma.

— Erin — Kay finalmente disse, sua voz baixa e suave, mas cheia de determinação. — Nós vamos descobrir isso. Juntos. Seja qual for o seu lugar, ou o meu, nós vamos enfrentar isso.

Erin olhou para ele, seus olhos brilhando com lágrimas que não haviam sido derramadas. Ela não sabia como responder, mas, naquele momento, soube que não estava mais sozinha em sua luta. Kay também estava enfrentando seus próprios demônios, e juntos, talvez, pudessem encontrar uma maneira de sobreviver a Sete Além e aos segredos que os cercavam.

O silêncio entre eles não era mais desconfortável. Era um silêncio de compreensão mútua, de um pacto não dito.

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